VIAGENS NA CIMBEBÁSIA / O RIO CUNENE
PADRE CHARLES DUPARQUET
28-07-2003 www.triplov.com
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mulher_bushman

Mulher bushman

Sábado, 31 de Julho - O snr. Severino, um dos portugueses do Humbe, vem visitar-nos logo de manhã. Traz-nos presentes da sua capoeira, algumas dúzias de ovos e metade dum leitão. Passa o dia inteiro conosco. Espera dum momento para o outro trezentos carregadores de Moçâmedes. Os Portugueses do Humbe são em número de quatorze, todos empregados no comércio. Lamentam-se muito por se acharem à mercê dos indígenas, que muitas vezes os insultam e os roubam. Vivem como que numa espécie de escravatura, mas suportam todas essas misérias para poderem continuar o seu negócio. Não são ricos, mas vão vivendo. Só um deles, o snr. Celorico1 é que adquiriu certos haveres : é o grande capitalista do lugar. Ao chegar a estação seca, todos estes comerciantes atravessam o rio e se espalham pelas diversas tribos do Ovampo, levando consigo aguardente, espingardas e missangas. Têm muitas queixas também destes pequenos régulos que lhes fazem suportar toda a espécie de vexames e dissabores; mas, no fim e apesar dos prejuízos sofridos, chegam a tirar alguns lucros. Dentro de alguns anos o único comércio do Ovampo será o do gado; e, como os Ingleses do Cabo não podem aproveitar-se dele por causa das dificuldades do seu transporte, é evidente que o monopólio do comércio está reservado aos Portugueses de Moçâmedes. Estes mandam o gado para toda a costa oeste, até ao Gabão, que dali recebe todos os seus fornecimentos de víveres frescos.

À tarde regressou o snr. Dufour, que ontem à noite tinha ido ao Humbe e nos anuncia a chegada dos primeiros carregadores com toda a caravana.

Houve perturbações em Ongambué : o soba desta região matou uma família completa de Portugueses. Dizem que este massacre teve lugar por engano. É um facto muito lamentável.

O snr. Dufour calcula a latitude do lugar. O nosso acampamento em Ololica está em 16º 50'; a residência do rei fica a oeste, na outra margem, mas na mesma latitude, o que é devido à direcção sudoeste do rio. Iquera (Ombandja Grande) está em 17º 8'. Há portanto daqui a Iquera, em linha recta, vinte milhas inglesas ou sete léguas francesas. É dia e meio de carro ou cinco horas de marcha.

Domingo, 1 de Agosto - O rei Chahongo mandou-nos cerveja, mas mostra-se muito irritado com a importância que, diz ele, os Portugueses assumem perante a expedição: - Foi por minha causa ou por causa deles, pergunta, que viestes cá ? Tinha proibido ao snr. Almeida que atravessasse o rio no vau da Hunda ; proíbe agora, e de forma peremptória aos Portugueses que nos visitem. Soube que o pobre Severino veio aqui ontem; mandou-o chamar e proibiu-o de voltar ao acampamento. Quer ser ele a indicar-nos os bons lugares de caça, que conhece melhor que os Portugueses. - Se eles conhecem os lugares onde estão os elefantes - diz ele ironicamente - porque não pegam nos seus cavalos e nos seus vagões e vão caçá-los ? Ora ele sabe muito bem que os Portugueses não têm nem uma coisa nem outra.

Segunda-feira, 2 de Agosto - Os snrs. Dufour e Anderson partem para o reino do Evare. Chahongo manda dizer ao snr. Erickson que o espere para conversar com ele. Como os Portugueses estão proibidos de voltar à margem esquerda, aproveito a ocasião para ir ver o rei e pedir-lhe licença para ir eu visitá-los. Quando cheguei à margem do rio, atravessaram-no a nado uns quinze bois, com um indígena que nadava atrás deles e os empurrava para a margem oposta ; parece que os bois estão habituados a passar assim o rio. Três são para o snr. Erickson e os doze restantes destinam-se a Iquera. Vejo com prazer que este bom rei Iquera está em excelentes relações com os seus vizinhos, tanto com o Humbe, como com o Cuambi. Apenas contra a tribo dos Oncuacua é que ele mantém algum ressentimento. Acusa-os de lhe terem querido roubar gado e queria levar o snr. Erickson a fazer-lhes guerra; mas este declinou com a maior prudência a sua proposta.

Chaongo concede-nos imediatamente a permissão para ir visitar os Portugueses e designa um guia para me conduzir junto deles. Com grande surpresa minha reconheço neste guia Quesongo, o mesmo que me tinha levado no ano passado à residência do Quipandeca e se tinha encarregado do meu correio para Moçâmedes.

Parto imediatamente, com três Ovampos, Inani, Condoro e Chicongo. Este último é um jovem professor, educado pelos missionários finlandeses da Ondonga. Acompanha a expedição como professor de Chacopi, a quem ensina a ler. Este rapaz parece-me dotado dum excelente carácter ; infelizmente é luterano. É infinitamente lamentável que o protestantismo tenha precedido os missionários católicos nesta região.

Ao fim de quatro horas de marcha, chegamos a casa do snr. Freitas. Acabavam de chegar de Moçâmedes quatro Portugueses, acompanhados de carregadores. Abriram-se as caixas e ofereceram-me aguardente e figos do Algarve. Da casa do snr. Freitas fui a casa do snr. Severino, onde passei a noite. Este bom senhor deu de cear à minha gente e preparou-me uma excelente cama.

Terça-feira, 3 de Agosto - Logo de manhã cedo fui sucessivamente a casa dos snrs. Almeida, Andrade e Hispanhola. Os irmãos Almeida têm uma bela granja, com grande número de vacas, burros, cabras e porcos. Têm também uma capoeira magnífica, cheia de galinhas da Cochinchina, no meio das quais se criam vários patos e outras aves aquáticas do rio. Estas estão perfeitamente domesticadas.

O snr. Hispanhola habita as ruinas duma espécie de fortaleza, que tinha sido construída pelos Portugueses quando ocuparam a região. Estas ruinas estão situadas num ângulo formado pelos rios Caculovar e Cunene. Aqui habitava, segundo me informam, o snr. Mata, mas a guarnição estava na margem direita do Caculovar, como vem indicado nas cartas portuguesas. Desço até ao Caculovar, cuja água é esbranquiçada e lamacenta. Este curso de água parece insignificante e contudo vem das alturas da Huíla. Do outro lado deste pequeno rio habitam vários portugueses. Quereria visitá-los também, mas apercebo-me de que todos estes Portugueses estão visivelmente assustados e embaraçados por me verem assim no meio dos indígenas. Temem alguma coisa desagradável da sua parte, tal como aconteceu no ano passado com os Boers. Vendo a intranquilidade desta pobre gente, decido-me a voltar ao acampamento. Na altura da minha partida enchem-me de presentes, dando-me os mais belos exemplares das suas capoeiras e o snr. Almeida empresta-me um burro excelente para me transportar até ao rio. Alguns dizem ter-me conhecido em Moçâmedes em tempos e um deles lembra-se de me ter acompanhado da fortaleza de Capangombe a casa do snr. Brochado.

Pelo meio dia encontro-me nas margens do rio, depois de ter recebido o mais benévolo acolhimento por parte dos indígenas, cujas senzalas atravessei sósinho, o que me leva a crer que as apreensões dos portugueses carecem de fundamento. A região deste lado do rio é, em tudo, parecida com o resto do Ovampo ; são as mesmas culturas, a mesma vegetação, as mesmas habitações e os mesmos costumes. Os imbondeiros são abundantíssimos, parecendo formar, por vezes, verdadeiras florestas. O algodão americano desenvolve-se aqui maravilhosamente ; vi pés magníficos nos arredores das lavras. Penso que poderia tentar-se já nestas regiões a cultura das plantas tropicais, mas por enquanto não foi ainda efectuada a menor experiência nesse sentido; nem sequer se encontram laranjeiras ou limoeiros, que certamente se dariam bem.

O rio, nesta margem, não é barrado por cliffs como na margem oposta; de maneira que se espraia para longe, o que obriga os portugueses a estabelecerem-se a uma distância considerável para se pôrem ao abrigo das inundações. E daqui resulta que, durante a estação seca, só têm para beber a água do Caculovar, que é detestável. A margem esquerda com o seu platô elevado seria muito mais saudável.

1. Alcunha do comerciante António José de Almeida.