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JOSÉ CASQUILHO::::......::::

 Do tempo sagrado

À memória dos meus pais, Mário e Lucília

 

 





 

 

(foto: les noces des cerfs, Ivan Generalic)

Mircea Eliade conta-nos que o homem religioso conhece duas espécies de tempo, profano e sagrado: uma duração evanescente e uma sequência de eternidades periodicamente recuperáveis durante as festas que constituem o calendário sagrado [1] - os participantes da festa tornam-se contemporâneos dos deuses e dos seres semidivinos e o calendário sagrado regenera periodicamente o Tempo, porque o faz coincidir com o tempo da origem, o tempo forte e puro. O autor usa a expressão homo religiosus para abarcar todos aqueles que atribuem um cunho sagrado ao passar do tempo e recorda que em várias culturas aborígenes, sejam os yuki ou yokut da América do Norte, diz-se que o mundo passou para referir que passou um ano, enquanto que os dakota dizem expressamente: o ano é um círculo em volta do mundo.

Acontecimento

Einstein, numa conversa com Carnap, diz textualmente: o tempo não está na física. Prigogine acrescenta a afirmação de que [2]: escolhendo o ponto de vista da física o tempo enquanto irreversibilidade é uma ilusão e portanto não pode ser objecto de ciência. Davies refere-nos que para os físicos o tempo não flui, apenas é [3].

Um objecto físico é alguma coisa que tenha energia [4] e a categoria dos objectos físicos não inclui os objectos da matemática, lógica ou semântica modal ou mais geralmente qualquer objecto idealizado.  Existem os que afirmam que a informação é física [5] reclamando que existe sempre algum suporte material e energético nos processos informativos, mas já Saussure, um século antes, tinha feito a distinção entre significante e significado [6], e se o primeiro é de ordem física e suporta o segundo, este é de ordem mental e não é redutível ao primeiro, aspecto que releva do quadro de uma dualidade interna de todas as ciências que operam sobre valores.  

O espaço onde podemos comunicar reporta-se ao domínio no qual os sujeitos de uma cultura experimentam a significação [7]: semiosfera, e admitimos aqui que o campo próprio para falar do tempo é metafísico podendo proporcionar incursões físicas, biológicas ou matemáticas.

 

Metafísica e ciência partilham do objectivo de explicar a natureza fundamental do mundo [8], mas enquanto que a segunda procede empiricamente ou a posteriori a primeira procede a priori, e assim distinguem-se no método. Ainda temos os planos poético e filosófico se quisermos abranger outras dimensões da semiosfera:  Kierkegaard definia o instante como o ponto onde o tempo e a eternidade se tocam [9].

 

Platão considerava o instante uma coisa estranha e Aristóteles dizia que era o elo do tempo, o que separa o antes do depois, ligado ao tema da mudança de qualidade [10], onde as qualidades apostas a qualquer porção material neutra constituem uma substância; e assim o movimento constitui necessariamente uma mudança de estado em vez de ser um estado. O termo substância em Aristóteles comporta quatro acepções, a saber [11]: a essência, o universal, o género e o substrato.

 

Para Saussure a língua é forma, não uma substância. O acontecimento é a manifestação do tempo. Zilberberg [12] define três modos a propósito do acontecimento: 1. o modo de eficiência, que articula o sobrevir e o conseguir; 2. o modo de existência, que articula a focalização projectiva e a apreensão retrospectiva; 3. e o modo de junção, que articula a concessão e a implicação, sendo estas as modalidades em que se expressa.

 

Figuras do tempo

 

Os acontecimentos podem cristalizar-se em formas. É assim na biologia, onde dominam as hélices e espirais dos moluscos ou das árvores [13]  ou na mineralogia onde surgem os sólidos e as malhas cristalinas de silex.

 

Na descrição matemática das formas o tempo é geralmente representado por uma variável real: um número unidimensional que percorre um conjunto ordenado que incorpora os números racionais e os irracionais, aí incluídos os transcendentes, numa amplitude, ou extensão, que vai desde menos infinito a mais infinito. Essa variável, o mais das vezes designada pela letra t, chama-se parâmetro quando toma valores num certo intervalo e serve de argumento a funções reais. Neste exemplo de espirais [14] temos uma convolução de curvas parametrizadas por uma variável real.

Na catástrofe borboleta [15] vimos como só se acede à bolsa que comporta os três equilíbrios quando o parâmetro t - a variável real tempo - se torna negativa, associando-se este modelo morfogenético ao processo de preencher, esvaziar ou receber, quando interpretado no tempo [16]. Recorde-se que se designa por catástrofe, no âmbito dos sistemas dissipativos [17], o desaparecimento de um equilíbrio estável e o aparecimento doutro, consecutivos a uma modificação contínua do potencial.

A existência de números negativos em matemática foi um problema que demorou muito tempo a ser resolvido; eles apareciam nos cálculos como contrapartida algébrica necessária para garantir a consistência das operações e obter um resultado, mas não lhes era reconhecido estatuto de números na cultura ocidental, antes eram considerados artefactos operatórios.

Tal derivava da tradição grega do problema da medida, onde as áreas ou comprimentos tinham existência física, portanto positiva, sendo os números negativos considerados como representantes de objectos impossíveis. Ainda mais impossível aparecia o cálculo da raiz quadrada de menos 1, a unidade imaginária [18], pois não há número real que satisfaça essa operação, e no entanto a sua existência impôs-se por exemplo no cálculo de uma raiz cúbica real [19], justificando a afirmação de que por vezes o caminho entre duas verdades no campo real passa pelo plano complexo.

Gauss escrevia em 1831: tivessem sido +1, -1 e \sqrt{-1}  designados unidade directa, inversa e lateral, ao invés de unidade positiva, negativa e imaginária e não teria subsistido tanta obscuridade no assunto [20]. Já em 1806 o abade francês Buée tinha publicado um extenso artigo onde concluía que \sqrt{-1} era o signo da perpendicularidade, e formulou o tempo como expresso através daquela entidade.

O tempo solar é simplesmente cíclico: nunca exactamente iguais, as estações e os dias que se repetem são sempre semelhantes aos dos anos passados. A fita de Möbius, descoberta em 1858, é uma boa figura de um tempo que regressa ao longo de uma espiral, numa superfície não orientável, com fronteira [21], em que se percorre os dois lados para descobrir que é um só.

(foto: fita de Möbius, wikipédia)

Referências:

[1] Mircea Eliade. 1957. O Sagrado e o Profano – a essência das religiões. Martins Fontes, São Paulo, 2001.

[2] Ilya Prigogine. 1988. O Nascimento do Tempo. Edições 70, Lda, Lisboa, 1990.

[3] Paul Davies. 2002. That mysterious flow. Scientific American 287 (3): 24-29

[4] Brian Ellis. 2006. Physical Realism. Metaphysics in Science (ed: A. Drewery). Blackwell Publishing, pp: 1-13

[5] Dénes Petz. 2008. Quantum Information Theory and Quantum Statistics. Springer-Verlag.

[6] Ferdinand de Saussure. 1916 (1971). Curso de Linguística Geral. Publicações Dom Quixote, Lda., Lisboa, 1999.

[7] Jacques Fontanille. 2003. Semiótica do Discurso. Editora Contexto, São Paulo, 2007.

[8] Alice Drewery. 2006. Introduction in Metaphysics in Science (ed: A. Drewery). Blackwell Publishing, pp: vi-xiv.

[9] Ernani Reichman. 1981. O Instante – texto e notas. Editora Pedagógica e Universitária Lda, Curitiba.

[10] Thomas S. Kuhn. 1977. A Tensão Essencial. Edições 70 Lda, Lisboa, 1989.

[11] Raphael Zillig . 2007. Sobre os múltiplos sentidos de substância: Nota acerca de Metafísica Z3, 1028b33-34. Journal of Ancient Philosophy Vol. I 2007 Issue 1 pp:1-14. http://www.filosofiaantiga.com/documents/Zillig-nota-2007-1.pdf

[12] Claude Zilberberg. 2007. Louvando o acontecimento. Revista Galáxia, São Paulo, n. 13, p. 13-28,  http://200.144.189.42/ojs/index.php/galaxia/article/view/5619/5112

[13] Theodore Andrea Cook. 1914. The Curves of Life. Dover Publications Inc., NY, 1979.

[14] http://www.interact.com.pt/interact2/casq1.html

[15] http://www.triplov.com/casquilho/2009/Tempo-inverso/index.html

[16] Vagn Lundsgaard Hansen. 1993. Geometry in Nature. A K Peters Ltd, Wellesley.

[17] Ivar Ekeland. 1984. Le Calcul, l’Imprevú – les figures du temps de Kepler à Thom. Éditions du Seuil, Paris.

[18] http://en.wikipedia.org/wiki/Imaginary_unit

[19] Bento de Jesus Caraça. 1946. Conceitos Fundamentais da Matemática. Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1984.

[20] Paul J. Nahin. 2007. An Imaginary Tale – the  story of \sqrt{-1}.  Princeton University Press, New Jersey.

[21] http://mathworld.wolfram.com/MoebiusStrip.html

José Pinto Casquilho. Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL), Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
josecasquilho@gmail.com
(CECL/UNL).