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Casimiro de Brito
Tríptico da Paz
outra maneira de desejar um Feliz Natal

A PAZ

Se eu te pedisse a paz, o que me darias

pequeno insecto da memória de quem sou

ninho e alimento? Se eu te pedisse a paz,

a pedra do silêncio cobrindo-me de pó,

a voz limpa dos frutos, o que me darias

respiração pausada de outro corpo

sob o meu corpo?

 

Perdoa-me ser tão só, e falar-te ainda

do meu exílio. Perdoa-me se não te peço

a paz. Apenas pergunto: o que me darias

em troca se ta pedisse? O sol? A sabedoria?

Um cavalo de olhos verdes? Um campo de batalha

para nele gravar o teu nome junto ao meu?

Ou apenas uma faca de fogo, intranquila,

no centro do coração?

 

Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,

o teu corpo de cinza. Falo de mim,

entrego-te o meu destino. E a morte vivo

só de perguntar-te: o que me darias

se te pedisses a paz

e soubesses de como a quero construída

com as matérias vivas da liberdade?

 
AMOR SOLAR

Cansado dos homens afasto as nuvens

Em busca de uma árvore onde eu possa

Beber em paz e em paz

Construir o meu ninho. Ali

No tronco mais silencioso da grande casa

Não sou cidadão de país nenhum

Pai de nenhuma família

Sou apenas o cão mais humilde

Do mundo que há para além do mundo

Onde se medem ao milímetro

O bem e o mal. Nesse pátio

Já não estou afastei-me

Quando perdi o sentido do peso

E das medidas - quando alguém me disse

E eu vi

Que numa gota de vinho há dez mil anos

De amor solar.

 
DAS QUEDAS

  Quem amou ainda ama,

vai ouvir a vida inteira a canção furtiva,

vai ouvi-la e cantá-la

ao acaso dos ventos que trazem

do Ocidente e do Oriente

árvores e respirações animais

que supuram a febre do mundo - quem amou

ainda ama, vai cantar

a vida inteira

o ninho de mulheres onde se reúnem

a terra e o céu, vai aceitar

o domínio das águas sedentas

sobre o osso e a pedra: o grande ofício

é transformar a terra em osso

e o osso em carne

desamparada. Quem amou

não sabe nada, vai cair

a vida inteira. Mas que força é essa, se não é

um saber? Um saber de bocas invisíveis

e do enigma das águas que são álcool

da carne e pássaro que regressa

ao ninho da mãe. Quem amou

vai amar

a vida inteira.