MEMÓRIAS DO LAGARTO CABOVERDIANO
Maria Estela Guedes
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O lagarto sobrevivente da Atlântida...
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Volto a Angel; noutro artigo seu, também de 1935, resultado do estudo dos lagartos colhidos por Chevalier no arquipélago, já não há qualquer alusão à minha embalsamada, grelhada e esventrada espécie. Mas pode ser que Chevalier não tenha ido aos meus ilhéus (1).

De Viena, em 1901, Franz Werner escreve a Bettencourt Ferreira, discípulo de BB, dando conta do material que tem para permuta, e pedindo exemplares de mim. Para os lados da Atlântida, muito gostava de saber quem me buscava ingloriamente, em 1916, como se depreende de um ofício do Governo de Cabo Verde, assinado com um simples rabisco, e endereçado ao director da Escola Politécnica de Lisboa, que delidamente reza:

Muito me obsequeia V. Exª se puder enviar-nos uma lista completa dos produtos da Fauna de Cabo-Verde existentes no museu da Escola Politécnica.

Com bastante pena participo a V. Ex.a que visitei em Janeiro o ilheu RAZO/entre S. Nicolau e Santa Luzia/ não encontrando um só exemplar dos notáveis lagartos tão apreciados no mundo scientífico.

O ilheu é desabitado, não tendo agua, soube porem que, em 1915, pescadores de Santo Antão, que permaneceram uns dias no RAZO, deixaram ali alguns cães, a que se atribue a devastação completa dos referidos lagartos.

Com os meus prévios agradecimentos, teria muito prazer em que este governo podesse ser util à Escola, de cujo corpo docente fazem parte alguns mestres e amigos que muito preso.

SAUDE E FRATERNIDADE.
Governo da Província, na cidade da Praia,
8 de Julho de 1916.

Em 1900, um dos mais importantes exploradores portugueses, Francisco Newton, ainda escrevia a BB: Do Razo vão bastantes exemplares de Macroscincus coctei e vários outros répteis (2). BB parece ficar satisfeito (ou não lhe agradava acumular mais provas da minha existência nesse local, por o obrigarem a rever toda a sua estratégia científica de silêncio?), pois em carta de 1901 Newton concorda em não enviar mais. Já o mesmo não acontece com Peracca, que, lembrarei pela eternidade fora, já tinha pelo menos quarenta. É assim que, em 1902, Newton comunica haver recebido convite do barão de Rothschild e conde de Peracca para visitar algumas ilhas do Atlântico. Morto por aceitar, mas só o podendo fazer na condição de o dispensarem da exploração em curso, vai explicando ao governo, através de BB, que a proposta é tentadora: o Macroscincus coctei, por exemplo, ser-Ihe-ia pago a cinco francos cada, por um insaciável Peracca, desejoso de muitos exemplares.

Hesse, Allee e Schmidt, em 1937, enganando-se embora no meu nome (é o costume), conhecem-me suficientemente para exemplificarem com o meu caso o facto curioso de haver uma relação entre a insularidade e as grandes dimensões, e também eles falam de mim como se eu ainda não me tivesse extinguido (3):

The large scincid lizard of the Cape Verde Islands, Mabuya coctaei, and the large geckos and skinks of New Caledonia suggest that a real connection between insularity and large sizes exists, at least in some animais.

Por sua vez, Carlos França (1908), no elogio de Bocage, falecido no ano anterior, dá conta da minha condição de super-star:

Les recherches du professeur de Lisbonne avaient tellement attiré I'attention sur ce curieux Lézard, que Milne-Edwards, pendant les campagnes du Talisman, s'est décidé à courir les plus grands dangers pour chercher à en obtenir des exemplaires et Paul Gervais a transcris dans le Journal de Zoologie le travail de Bocage en I' accompagnant d'une planche ou se trouve représenté le crâne conservé dans Ia Galerie d' Anatomie comparée du Muséum de Paris (4).

Já agora, querem ir ver-me a Paris? Ainda lá estou, com o número de catálogo 8299, de acordo com a gentil referência de Daget e Saldanha. Para terminar, já não é sem tempo, e como principiei, citando Baltasar Osório (1909), agora do elogio histórico tecido igualmente em honra de Bocage. Pela primeira vez, publicamente, põe-se o problema da minha história noutros termos, diversos dos de Angel e Mertens, que me consideram endémico, e dos de BB, que mal falou do assunto, por receio de se espalhar. Ora é justamente para louvar a prudência e seriedade de Bocage que Baltasar Osório escreve, algo tonto (4) como sempre (os alunos davam-Ihe a alcunha de «Batráquio», se bem que os peixes fossem mais a sua especialidade), mas com notável instinto para pôr o dedo nas feridas, mergulhando sem escafandro nas águas matriciais. Nem refere o ilhéu Branco, onde ainda há o alibi das gramíneas, vai directo à bem maior falta de vegetação do Raso. E ultrapassa essa questão menor para entrar, mesmo pela via platónica, tal como Milne-Edwards, na zoogeográfica. Gosto disso, tiro-lhe o meu chapéu:

Uma outra vez, em Paris, sabendo-se que era erpetologista distincto, mostraram-lhe no Museu um reptil... mas de que os naturalistas francezes desconheciam a proveniencia. Bocage conheceu-o logo, havia individuos eguaes no Museu que tinha começado a fundar em Lisboa... Como os naturalistas francezes, ignorava tambem onde vivia, mas na volta para Portugal investigou, e veio a saber que se encontrava apenas n'um ilheo... que faz parte do archipelago de Cabo Verde. Este archipelago, assim como o dos Açores, o das Canarias, as ilhas d' Ascenção, de Tristão da Cunha, de Santa Helena, etc., são d'origem vulcanica. A fauna das ilhas vulcanicas é caracterisada por esta circumstancia interessante, mas facilmente explicável, não compreende reptis.

Barboza du Bocage poderia ter dado varias explicações acerca da existencia dos lagartos no Ilheo Raso, e entre ellas podia afirmar que existindo sómente reptis nos continentes e nas ilhas continentaes (por terem feito parte de continentes, como por exemplo a ilha de S. Thomé), a existencia do Euprepes n'um pequeno ilheo, no meio dos oceanos só poderia explicar-se, admitindo a hypothese antiga, mas que muito modernamente voltou a discutir-se, da existencia d'um grande territorio desaparecido, outr'ora lançado entre a Europa e a America, de que as ilhas a que aludimos são as partes mais elevadas e que ficaram insubmersas após o cataclismo que o fez desaparecer.

A mais velha noticia sobre a famosa Atlantida, provinha d'uma inscripção que certo philosopho antigo encontrou n'um templo mais antigo do que elle; a descoberta de Barboza du Bocage vale mais que esse velho e talvez desaparecido documento; pois nunca aventou essa hypothese, contentou-se em conservar-se dentro dos limites especiaes da sciencia que cultivava, creando todavia o genero Macroscincus, e com toda a rasão, por saber que estava erradamente collocado no genero Euprepes, esse lagarto que se mantem n'uma area tão limitada como outros animaes, por exemplo o bisão da Europa, o Bonassus Europeus tão vulgar outr'ora, hoje confinado apenas n'um dominio imperial d'uma floresta da Lithuania. Deixou a outros colher a parte mais brilhante, mas tãobem a menos segura da sua descoberta. Ficou-se com a gloria de ter redusido a uma só duas especies que Cuvier, e Dumeril e Bibron, sabios de comprovada autoridade, principalmente o primeiro, tinham creado, por ter a sua observação recahido em exemplares incompletos, cabendo ainda mais ao nosso naturalista a descoberta do habitat d'uma especie por muitos motivos interessante para a sciencia.

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NOTAS

(1) Repito que Chevalier alarga o habitat da espécie para a ilha de Santa Luzia.

(2) As cartas de Francisco Newton, incluídas as enviadas de Cabo Verde, estão em linha no seu site: http://geocities.yahoo.com.br/francisconewton/ e no TriploV.

(3) Eles não estão enganados. Em tempos bem mais próximos de nós, há zoólogos que consideram Macroscincus coctei uma espécie recém formada, a partir de uma Mabuya alterada.

(4) Crânio que Cuvier identificou como sendo o do scinco de língua azul da Austrália, Lacerta scincoides Shaw. Ainda não vi nenhum outro trabalho sobre o crânio, mas ele deve estar ainda no Museu de História Natural de Paris. É ou não do lagarto australiano?
(5) Os textos de B. Osório estão muito gralhados - uma das gralhas é evidente no extracto aqui publicado, acerca de São Tomé ser uma ilha continental - e as suas publicações foram arrumadas de forma tão confusa que, para citar correctamente esse elogio histórico, seria preciso considerá-lo um tema da ictiologia, pois faz parte do número (único) das Memórias do Museu Bocage sob um título geral de ictiologia. Donde Bocage era um híbrido de peixe... Insisto em que neste artigo os naturalistas me enfiaram todos os barretes possíveis, e o maior deles é a prática deliberada das gralhas. Truque genial, pois o leitor que sabe do código decifra a mensagem. O que não sabe, toma o autor por tonto e ignorante, excluindo-se a si mesmo da esfera do conhecimento.