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MEMÓRIAS DO LAGARTO CABOVERDIANO
Maria Estela Guedes
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Carta de Serpa Pinto
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Favor pequeno, mas com repercussões internacionais. Paul Gervais soube aproveitar também a minha descoberta. Adiante se verão as consequências do pedido de BB, em trecho de Carlos França, que fala de Paul Gervais, conservador, e de Milne-Edwards, entomólogo do museu de Paris.

Quanto ao texto de Hopffer, trata-se da cópia de documento publicado sem dúvida no Boletim Oficial de Cabo Verde, que o autor envia com outro e idêntico manuscrito, na tenção de assegurar BB da minha efectiva existência no ilhéu Raso:

Entre os repteis envio alguns ineditos do ilhéu Raso e aves não estudadas da mesma procedencia, denominadas Jabejabe (1). Estes exemplares estão sendo estudados no reino por alguns professores, a quem remetti identicos.

Deus guarde a V.Sª VilIa da Ribeira Grande, 3 de fevereiro de 1875.
(Assignado) Dr. Francisco Frederico Hopffer.

A colaboração dos funcionários ultramarinos com os museus não era espontânea, obedecia a um plano político, que atingia de preferência os governadores, médicos e farmacêuticos militares. Não espanta, assim, ver o que Hopffer solicita ao secretário-geral do governo, na mesma cópia, em 30 de Novembro de 1875:

Tenho a satisfação de communicar a V.Sª, para conhecimento de S.Exª o governador geral, que os exemplares ornithologicos e erpéthologicos por mim remettidos ao vice-presidente da academia real das sciencias, o sabido zoologista portuguez dr. Barboza du Bocage, ainda mais uma vez foram causa da descoberta de especies novas, cuja descripção se lê no Jornal das sciencias mathematicas, physicas e naturaes, publicado sob os auspícios da academia real das sciencias de Lisboa, n. 18, junho de 1875 (2). Peço que por vantagem publica esta minha participação seja inserida no Boletim oficial.

Finalmente, a carta de Hopffer para Bocage, a que anexou as cópias transcritas, enviada num período já tardio, no momento em que BB se preparava para publicar, em 1896, uma lista dos répteis de Cabo Verde, e a cautela o obriga a confirmar a minha residência no Ilhéu Raso:

Exmº Sr. Conselheiro Barbosa du Bocage,
Meu Respeitavel Mestre.
Pelos documentos juntos extrahidos de peças officiaes, verá V. Exª que fica assente em bases authenticas quanto affirmei na anterior carta que dirigi a V. Exª em resposta à de 20 do corrente.

Repito: os repteis da 1ª remessa eram do ilheo Branco e os da 2ª remessa procedentes do ilheo Raso.

Cessa pois todo o motivo para hesitações.
Com o maior respeito sou
De V. Exª
creado amº obg.dº
26/2/96 ......................F. Frederico Hopffer

Bocage estudara os animais, verificando pela dieta e estrutura dentária que eu era herbívoro -

Dos três exemplares que recebemos vivos, dois sucumbiram ao cabo de alguns meses, porém o terceiro, o maior de todos, viveu durante quasi quatro annos, alimentando-se exclusivamente de vegetaes, regimen que o exame dos dentes nos fizera presumir ser-Ihes peculiar.

- e, em consequência do exame dos dentes, reconhecera que Duméril e Bibron me haviam classificado mal; muda-me então o nome para Macroscincus coctei, alusão às minhas grandes dimensões na designação genérica, e deixando a homenagem a Cocteau na específica. Só bem mais tarde - vinte e dois anos mais tarde, como se nota -, refere a minha residência no ilhéu Raso.

Figuram actualmente na nossa colecção doze exemplares do Macroscincus Coctei: tres do Ilheo Branco, remettidos em 1784 ao Gabinete da Ajuda pelo naturalista Feijó; quatro (3) d'esta mesma localidade que o dr. Hopffer nos offereceu em 1873; dois do Ilheo Raso tambem offerecidos pelo dr. Hopffer em 1874; enfim tres magnificos exemplares vivos, egualmente do Ilheo Raso, que acaba de nos enviar de Cabo Verde o nosso celebre explorador Serpa Pinto, actualmente governador d'aquella provincia ultramarina.

Citei o artigo «Reptis de Algumas Possessões Portuguezas d' Africa que Existem no Museu de Lisboa» (1896), o único, entre nacionais e estrangeiros, em que jamais vi o meu retrato em corpo inteiro, uma excelente litografia de Felix de Brito Capello. Devo esclarecer que aquele bicharoco com o meu nome, representado em The Doomsday Book of Animais, de David Day, não sou eu. Nem eu nem nenhum primo, aquilo não é gente da minha família. E a procelária com quem o autor diz que eu vivo maritalmente, ou
coisa ainda pior, juro que nunca a vi pintada em dias de vida. Em sítio nenhum de Cabo Verde aparece a Oceanodroma leucorhoa. A Oceanodroma castro, bem, seria outra conversa. Essa, sim, nidifica nos dois ilhéus, conheço-lhe perfeitamente os ovos, e mais não digo pois parece mal.

Para enriquecer a minha biografia, tive a sorte de descobrir a carta de Serpa Pinto, dirigida a Bocage, na qual acusa o envio daqueles preciosos três exemplares de mim (4), de uma região que ainda hoje alguns especialistas ignoram que eu tenha também habitado, detidos somente no ilhéu Branco.

Aí vai ela:

S. Vicente 6-2-96
Meu Exmº Amigo
Em resposta ao seu presado favor tenho a diser o seguinte.
Cagados ha, que eu já vi, rãs disem que ha na Varsea da Companhia na Praia, e sapos disem que não ha.
Eu ainda não vi sapos, nem ouvi coachar rãs.
Já dei ordens para me trazerem os cagados e para caçarem as rãs e procurar os sapos, mas tenho poucas esperanças de obter estes ultimos por que toda a gente afirma que os não ha.
Na Guiné ha muitos e como d'antes Cabo Verde e Guiné era tudo um, talvez o Lopes de Lima se confundisse com isso.
O que aqui ha e muito curioso são os lagartos do ilheo Razo que disem ser uma especie desaparecida de qualquer outra parte do mundo. Não sei se é verdade, porque de lagartos não entendo nada.
Ahi vão trez que mando a V. Exª por mão do Capitão do vapor Bissau. Um macho e 2 femeas. Vão vivos n'uma gaiola, mas ao mesmo tempo entrego ao capitão alcool para elle meter n'elle algum que morra pelo caminho.
Uns que foram d'aqui para Genova reproduziram-se ali.
Elles são omnivoros, mas mais herbiveros do que carnivoros. São muito mansos, não mordem mas arranhão com as finissimas garras.
Pegase-Ihe com 2 dedos pelo pescoço e elles não fasem mal.
Dentro de 1 mez o que cá houver de cagados, rãs e sapos ira para Lisbóã.
Escrevo ao Carlos.
Meus respeitos à Exmª Snrª D. Theresa e V. Exª mande.
O seu creado obsº
Serpa Pinto

Esta delícia epistolográfica requer algumas explicações. Lopes de Lima, nos Ensaios sobre a Estatística das Possessões Portuguesas no Ultramar (1844-1862), presta muitas informações, em parte deficientes e erróneas, sobre a fauna. Em Cabo Verde, contra o que afirma, não há anfíbios (4). Só há lagartos, tartarugas e bebés de tartarugas, confundidos estes com cágados por Serpa Pinto, no entender de E. G. Crespo, herpetologista consultado sobre este e outros assuntos pela minha biógrafa (5). Ora lagartos é bicho que também não devia existir. A nossa existência ali é precisamente o mais fabuloso dos meus enigmas. Quanto a Teresa Roma, era a mulher de Bocage, e Carlos o filho, político como o pai; BB por duas vezes foi ministro, da Marinha, e dos Negócios Estrangeiros e do Ultramar - esteve directamente empenhado na questão do «mapa cor-de-rosa» e Ultimatum, explosão cujas chamas o próprio BB apagou, com a apaziguação do seu interlocutor inglês, Lord Salisbury. Sabe-se quanto Portugal ficou humilhado e como a alta intelectualidade foi aos arames, num dos mais veementes manifestos de indignação. Bocage era um homem contido e prudente, dominava-o em demasia o medo de saltar.

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NOTAS

(1) Confirme no manuscrito que a palavra está escrita com outra caligrafia.

(2) No manuscrito, esta passagem está gralhada e emendada, no número do jornal, e escrita com outra caligrafia.
(3) Afinal agora são quatro? Mas Hopffer só enviou três... Nunca Bocage falou em 5 exemplares enviados por Hopffer, e este também não...
(3) Triângulos amorosos, até com aves.
(4) Esta informação faz corar as pedras de vergonha: foram descobertos sapos em Cabo Verde, nos anos 70 do século passado, por investigadores do Centro de Zoologia (Inst. Invest. Tropical, Lisboa), que nada publicaram sobre o assunto. A notícia só se tornou pública quando investigadores estrangeiros incluiram Bufo regularis, uma espécie africana muito vulgar, no catálogo da fauna cabo-verdiana. Esta é assim uma das inúmeras espécies de que havia registo antigo, sem capturas durante quase um século, se não for mais, e que têm vindo a ser redescobertas nos nossos tempos.
(5) Estas informações sobre espécies que não existem em dado local devem ser sempre recebidas com reservas... Em São Tomé também não havia cágados e foram redescobertos em finais do século XX. Serpa Pinto garante que viu os cágados.