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MEMÓRIAS DO LAGARTO CABOVERDIANO
Maria Estela Guedes
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Não ligo às gralhas...
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Sintetizarei os enigmas da minha vida, citando algumas linhas que Baltasar Osório dedica aos Macroscincus coctei (Sauria, Scincidae), nas Maravilhas da Natureza, de Brehm:

OS MACROSCINCOS - No Museu de Paris existe uma pelle d'um animal a que Dumeril e Bibron deram o nome de Eupropes de Cocteau e cuja proveniencia era desconhecida. O sr. Barbosa du Bocage em 1873 reconheceu que não podia ser mantido no genero Eupropes e fez com elle o typo do genero Macroscinco. Com effeito não tem dentes no paladar; além dessa particularidade única até agora nos Scincoidianos, os dentes que ornam as maxillas têem a corôa muito comprimida, ligeiramente arredondada e dentada muito distinctan1ente nos bordos; esta disposição lembra a que se vê nas Iguanas.

Sabe-se que esta espécie vive no ilheo branco, pertencente ao archipelago de Cabo-Verde, situado perto da ilha de Santa-Luzia. Segundo o sr. Barbosa du Bocage n'uma epocha anterior, o Manrroscinco devia ter um habitat muito mais extenso. Encontra-se confinado no seu ultimo refugio, mas alli mesmo ser-Ihe-ha impossivel resistir durante muito tempo à perseguição que deve às qualidades que o fazem procurar como alimento.

Este Reptil vive n'uma ilhota vulcanica, absolutamente deserta que como vegetação não encerra se não algumas gramineas; mette-se debaixo das pedras grandes; alimenta-se quasi exclusivamente de vegetaes, hervas, fructos polposos de todas as qualidades.

Não ligo às gralhas, sobretudo às do meu nome (se me chamassem simplesmente lagarto, como na minha terra, já nada disto acontecia), assento é numa pergunta ingénua: se no meu habitat não há vegetação, tirando as tais gramíneas, onde arranjaria eu os frutos polposos de todas as qualidades, para comer? Eis o primeiro enigma, policial, gerado na aparência pelo facto de se confundir o meu comportamento em cativeiro com o que apresento no meu nicho ecológico privativo. Por estas e por outras, vou juntar as peças da história que os sábios contaram a meu respeito, nela se vê quanto sou mais misterioso do que o próprio basilisco.

Em 1808, o primeiro duque de Abrantes, general Junot, assinava o documento que permitiu a Geoffroy Saint-Hilaire escolher os exemplares mais valiosos do Gabinete da Ajuda, então sob a direcção de Domingos Vandelli (1735-1816), e levá-los para França. Se benefício houve neste abuso napoleónico, foi a minha ida para o museu de Paris, onde me estudaram e tentaram classificar.

Sucedeu assim que, trinta anos depois, em 1839, Duméril e Bibron publicavam, no T. V da Erpétologie Générale, a descrição de um escincídeo de grandes dimensões, corpo lacertiforme, gordo, membros robustos, dorso mosqueado de amarelado sobre fundo cinzento mareado de castanho, ventre branco-amarelado, 64,7 centímetros de comprimento total, 30 centímetros de cauda, cuja residência lhes causou muito embaraço:

La patrie de cette espèce ne nous est pas connue, mais nous Ia supposons originaire des côtes d' Afrique; le seul individu de cet Euprèpes que nous ayons été dans le cas d'observer appartient à notre musée national, ou il a été apporté de Lisbonne, en 1809, avec d'autres objets d'histoire naturelle provenant du cabinet de cette ville.

De onde viera eu? - eis o mistério que despertou a curiosidade cientí fica por uma criatura de que durante décadas só se conhecerá o exemplar de Paris. Duméril e Bibron baptizaram-me com o nome de Euprepes coctei (1), em homenagem a Cocteau, um herpetologista que morrera jovem, e erraram a determinação. Eu não pertencia ao género Euprepes, como Bocage veio a demonstrar. Era um género novo para a ciência, com uma única espécie, provável relíquia, apenas existente em dois ilhéus de Cabo Verde.

Duméril e Bibron só viram a minha pele, e não referiram essa circunstância. É certo que nessa época a sistemática assentava quase exclusivamente nos caracteres mais conspícuos da morfologia externa. Em todo o caso! Só à custa de uma investigação mais detectivesca do que zoológica, foi possível a Bocage descobrir por que motivo eu tinha sido mal classificado. Duméril e Bibron deviam ter dito que me faltava o esqueleto quando me contaram as escamas, me analisaram a coloração e mediram a cauda. Por falar nela, eis mais uma encrenca para a ciência da época. Peracca (1891), após a ferroada de dizer que BB não examinara espécimes vivos (é a descoberta dos espécimes vivos que o leva, em 1873 e 1874, a descrever o Macroscincus coctei, e os artigos são pequenos, portanto Peracca deve é estar surpreendido por BB menosprezar uma informação preciosa, mas cuja conflitualidade o italiano nem adivinha), descreve-me o rabo com todos os condimentos:

Nelle code riprodotte le scaglie sono sempre piu grandi delle normali. Una
particolarità interessante, sfugitta al sig. Barboza du Bocage che pur ne esamino dei vivi, si e che Ia coda e preensile.

Questi sauri, dai movimenti poco vivaci, sono abili arrampicatori, e Ia loro
coda concorre a render piu sicura Ia marcia sulle roccie e sui tronchi d'albero, aderendo strettamente ad ogni asperità su cui prende un punto d'appoggio.

Gli esemplari a coda intera, lunga per conseguenza, possono rimaner sospesi per Ia coda alia mano, tenendo Ia coda piegata ad arco, a mo' di gancio. Malgrado cio Ia coda e di una grande fragilità; sopra 40 esemplari esaminati ben pochi presentano una coda integra.

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NOTA
(1) Euprepes de Cocteu; o nome específico como adjectivo, "coctei", aparece mais tarde.
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