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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

"DO DESENCANTO À REVOLTA"
Ana Isabel Vasconcelos

Norberto Ávila
Do Desencanto à Revolta / Os Deserdados da Pátria
Lisboa, Novo Imbondeiro, 2003

 

O dramaturgo Norberto Ávila é um militante na escrita de textos essencialmente destinados a uma arte, que tanto deles precisa. Estou naturalmente a referir-me ao TEATRO.

Apesar do aparecimento de tendências que sobrevalorizam as várias linguagens cénicas, quase preterindo o texto dramático, a verdade é que essas modas não o conseguiram sequer «descentrar», continuando, agora, até com mais vigor, a ser o âmago, o «caroço do fruto» (nas palavras de Gaston Baty) daquilo a que chamamos «o fenómeno teatral». Neste sentido, é importantíssimo que surjam textos de teatro e, sobretudo, bons textos de teatro, que nos propiciem um prazer estético quando os vemos representados, mas que igualmente nos deleitem quando decidimos saboreá-los num particular momento de leitura.

Como alguém outrora notou, o primeiro contacto que temos com uma obra é essencialmente físico: «as mãos sopesam o volume, percorrem as páginas, perpassam pelas folhas, ásperas ou lisas. O cheiro forte ou ténue da tinta de impressão ou do papel é apreendido pelo leitor quase inconscientemente. Os olhos acompanham o percurso, vêem a mancha gráfica [tão elucidativo no caso do texto dramático], o recorte dos caracteres, o tipo de letra» ( Silva, 1988: 11), enfim, todo um contacto de natureza essencialmente sensorial.

Mas a primeiríssima relação que o leitor estabelece com a obra começa especificamente pela observação da capa que, neste caso, tem como imagem de fundo o famoso e estranhíssimo tríptico de Hieronymus Bosch, intitulado «As Tentações de Santo Antão», quadro que se encontra hoje no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.

É indiciadoramente envolvido por este tríptico que se encontra o díptico da autoria de Norberto Ávila – objecto desta apresentação –, composto por dois textos da mesma natureza, que, mais do que se complementarem, se completam. Como o autor explica numa breve introdução à obra, estes dois textos tinham já sido escritos (embora permanecessem inéditos) havia alguns anos e, na sua versão primeira, constituíam uma só obra. Aliás, foi nessa primeira versão que tive a oportunidade e a sorte de o ler e, por uma acto de generosidade do seu autor, foram algumas das suas páginas incluídas na Revista Discursos (1997: 143-173), num número que então organizei. É assim com redobrado gosto que vejo agora a obra editada, em novo formato, uma vez que, devido à sua dimensão, decidiu o autor dividi-la em duas, autónomas mas com uma estreita relação cronológica e factual, e que intitulou «Do Desencanto à Revolta» e «Os Deserdados da Pátria», respectivamente.

Trata-se de dois dramas que me atrevo a apelidar de «históricos», género que pessoalmente muito aprecio e que, como a designação indica, resulta da confluência de duas disciplinas – a História e a Literatura – que, à partida, se situam em esferas, se não opostas, pelo menos de difícil articulação. A própria designação – drama histórico – denota alguma conflitualidade na relação dos seus termos que, apesar de associados, nos remetem para contextos referenciais diferentes – o real e a ficção, ou seja, o «mundo das verdades históricas» que aqui qualifica e compromete determinado universo de produção ficcional.

Um dos pontos comuns ao historiador e ao autor dramático é a representação de algo que lhes é exterior. A problemática advém, então, da questão fundamental da compatibilidade entre a «leitura histórica», da responsabilidade dos historiadores, e a «construção literária», o que equivale ao raciocínio aristotélico da verdade individual e concreta da História e de uma verdade bem mais geral e com menos restrições que é a da Literatura, ou seja, a bifurcação entre o particular e o universal.

Na verdade, a utilização do passado histórico na criação dramática leva a que se tenha precisamente que particularizar e restringir o conteúdo de uma forma de produção que é, na sua essência, tendencialmente universal. Encontramo-nos, por esta razão, perante um conflito que advém do facto de se pretender encaixar a particularidade de um determinado momento ou figura históricos na universalidade inerente aos assuntos ficcionais. Esta contingência não implica, contudo, que o drama tenha que perder potencialidades estéticas. Cabe ao criador dramático saber trabalhar os elementos que lhe chegam do passado, tornando-os universalmente aplicáveis, logo mais condicentes com a sua utilização numa estrutura ficcional. Não se espera, naturalmente, que o autor adultere os dados que a História apurou, mas que trabalhe esses acontecimentos por forma a destacar a «exemplaridade» dos factos que utilizou.

Este difícil entrelaçar da História na Ficção é feito de uma forma que posso adjectivar de magistral, nestes dois dramas de Norberto Ávila e veremos, ainda que brevemente, de que forma o faz.

 

Entramos no primeiro texto a bordo da nau São Jorge, propriedade do armador Baltasar de Montemor, que se encontra ancorada no porto de Antuérpia, pronta a rumar a Portugal. Bernardim de Montemor despede-se de Damião de Góis e regressa a Lisboa, onde lhe fora prometido o cargo de Reitor do Colégio Paulo III. A intriga centra-se fundamentalmente nas «nefastas» influências do luteranismo nos humanistas portugueses, facto vigiado e perseguido pelos Jesuítas. Já percebemos então que a acção deste díptico tem como painel de fundo a época de D. João III, mais concretamente o período de 1540 a 1546, e que se passa entre Antuérpia e Lisboa. O ponto de vista predominante é o dos «estrangeirados», ou seja, dos que vivem, ainda que temporariamente, longe da Pátria, tendo a sua formação académica sido completada em grandes universidades europeias. A política até então seguida pelo monarca fora a de apoiar este tipo de formação, aproveitando o contributo apreciável que o regresso destes humanistas daria certamente à sociedade portuguesa.

No momento em que Bernardim de Montemor regressa a Portugal, depois de completados os estudos no Colégio de Santa Bárbara, em Paris, já sopram ventos adversos de mudança. O texto preocupa-se em revelar esse processo, fornecendo, de uma forma extraordinariamente didáctica, até porque muito clara, elementos contextuais históricos que vão explicando a evolução dos acontecimentos.

A personagem emblemática desta obra é Damião de Góis, uma plasmação literária da figura histórica que todos, melhor ou pior, conhecemos, e que neste universo construído funciona como amigo íntimo da personagem que podemos considerar como a principal – Bernardim de Montemor, estabelecendo com este uma permanente interacção verbal. Apesar de nem sempre presente em cena, Damião de Góis é a referência, em termos intelectuais, embora o símbolo de resistência e de defesa do valor e do princípio de liberdade seja Bernardim. É através desta personagem que vivemos o drama, ou melhor, a tragédia provocada pela mentalidade preconceituosa dos jesuítas, que, sabendo do seu relacionamento com o futuro cronista e com as doutrinas de Erasmo e de Lutero, logo o afastam do cargo que lhe tinha sido prometido, colocando nesse lugar o Padre Simão Rodrigues, um jesuíta que a História indica como tendo denunciado Damião de Góis à Inquisição.

A estrutura destes dois dramas assenta em vários «quadros», que se vão cronologicamente sucedendo, e que, devido à frequente mudança, quer de cenário, quer de constelações de personagens, favorecem a fluidez da própria acção. Ora estamos em Antuérpia, em casa de Baltasar de Montemor, ora estamos em Lisboa, na loja do mercador, nas arcadas do Terreiro do Paço ou na própria Torre de Belém. O mesmo acontece com as personagens que têm entre si equilibradamente distribuídas as intervenções verbais, denotando esta organização textual um grande sentido de quem está a escrever para o palco, e não para a gaveta.

É aliás introduzido, com a maior naturalidade, um momento de humor, trazido por uma «meretriz», que sugestivamente se apresenta como Felícia do Rego. O quadro no qual esta «personagem do povo» dita uma a carta a Bernardim tem, como poderemos comprovar, um sabor vicentino:

Felícia

«As lágrimas que por ti tenho chorado – meu saudoso marido – creio que seriam bastantes para encher, bem pelas bordas...»

Bernardim

«... bem pelas bordas...»

Felícia

«... a talha maior que temos na cozinha. – Mulher mimada que fui – mil vezes feliz contigo – meu trabalho era bordar toalhas e toalhinhas. – Oh, tempo! – Agora, para bem sentir que estou cumprindo o meu dever de esposa – procurei acompanhar-te – em pensamento, meu querido Lucas – com algum trabalho fora de casa – para que não fosses tu apenas, meu boizinho manso...»

Bernardim

«...boizinho manso...»?

Felícia

Isto é nome que eu lhe dou, porque sou mui ternurenta, sabeis vós? (Pausa.) Mas continuemos. «Para que não fosses tu apenas a suar as estopinhas – para manter esta casa...» (Precisando, intencionalmente.) Digo «esta casa», como se dissesse a «nossa casa», minha e dele, como se deixa ver. Casa essa que, por sinal, é aqui bem perto, no Beco das Alcaparras, junto ao Lagar de Azeite. Digo isto porque... pode Vossa Mercê precisar de descansar um bocadinho destas escrevinhadelas, ou escrituras... (Aliviando o decote do corpete.) Já Vossa Mercê me entende, não é verdade? (pp. 76-77)

Este primeiro texto termina com uma interpelação directa aos espectadores, agora «hipotéticos circunstantes da época», que, pretensamente, vão usufruir dos serviços de Bernardim. Num monólogo um pouco mais extenso, este ex-candidato ao lugar de Reitor denuncia ironicamente a sua situação, através da qual vislumbramos a situação do próprio país. Encontrando-se nas arcadas do Terreiro do Paço, Bernardim redige as cartas que outros lhe ditam:

Bernardim

[...] Mas é só um momento! Um de cada vez, por favor! Atenderei a todos, minhas senhoras e meus senhores! E quanto pagareis vós pelo meu trabalho? Pois não pagareis 30 reais, nem 10, nem 5! Porque todo o meu trabalho será absolutamente gratuito! Porque há-de ser esta a minha maneira de mostrar a todos o regozijo que tenho pelo meu feliz regresso a este País!, que adoro!, – logo depois de Deus, bem o posso afirmar! E digo isto para tranquilizar algumas orelhas mais compridas que porventura me escutem! Não, não pagareis nada pelo meu trabalho! É esta a minha maneira de servir Portugal!, escrevendo cartas, petições, requerimentos!, nas arcadas do Terreiro do Paço!, depois de haver concluído os meus estudos no famoso Colégio de Santa Bárbara, de Paris! (p. 81)

Quando se inicia acção de Os Deserdados da Pátria, passaram já dois anos e encontramo-nos em Antuérpia. O conjunto de personagens que por aqui passa pertence a um mesmo universo, no que diz respeito à problemática em causa: todas são, de uma forma directa ou indirecta, vítimas do estabelecimento da Inquisição. Aliás a este respeito, isto é, à organização do elenco de personagens, em termos de forças em confronto, verificam-se dois grupos, de peso desigual no que concerne ao seu posicionamento ideológico. Temos, por um lado, D. Fradique Alvarenga e o Padre Simão Rodrigues, defensores dos processos inquisitoriais, e, por outro, as restantes personagens, todas elas declaradamente contra esse regime de opressão. Directa ou indirectamente, todas sofrem, com este «momento de particular transtorno e dificuldade». Como constata a personagem Bernardim: «Parece alastrar-se um execrável espírito de vingança, que leva muitos a denunciar inimigos ou pessoas com quem simplesmente não simpatizam. Outros, levados por um cego fanatismo religioso, não hesitam em indiciar à Inquisição os próprios parentes e amigos» (p. 152). Por outro lado, a divisão um pouco maniqueísta deste universo quinhentista não poupa, até pelo ridículo, as duas personagens sobre as quais recai todo o odioso da situação:

D. Fradique

Em Março de 1500 voltei a ser testemunha de outro acontecimento histórico neste lugar: a partida da armada de Pedro Álvares Cabral para o descobrimento do Brasil. E ali estava, uma vez mais, o venturoso Rei D. Manuel, com toda a sua Corte! A preparação e o apetrechamento de uma das naus eram da conta de meu saudoso pai – Deus lhe dê o Céu! – associado no negócio com um banqueiro florentino.

Padre Simão

Muito viram os vossos olhos!

D. Fradique

Mas não cuideis que me limitei a assistir a tão notáveis acontecimentos! Eu próprio andei nas partes da Arábia, nas guerras que permitiram a conquista de muitas cidades! E prezo-me de ter ajudado a incendiar algumas mesquitas – oh magníficos edifícios, todos forrados de azulejos! – e também me orgulho de ter cortado as orelhas e os narizes a umas boas centenas de seguidores de Mafoma! – Oh, glória!

Padre Simão

Bem poderíeis deixar, por escrito, para ensinamento aos vindouros, o vosso testemunho de tanta grandeza! (pp. 126-127).

Entre este diálogo e o momento que há pouco referi passado em Antuérpia fomos transportados para Lisboa, onde assistimos a uma das cenas mais significativas desta segunda obra. Refiro-me ao encontro entre os futuros Inquisidores e um Judeu, proprietário de uma loja de quadros. Procurando peças de arte para ornamentar as salas do Colégio de Santo Antão, o Padre Simão e D. Fradique Alvarenga apreciam o tríptico de Bosch que o judeu possui na loja e que, num truque de encenação, aparece projectado em transparência, simulando a presença do próprio quadro.

Esta mesma imagem, «As Tentações de Santo Antão», Santo que, nas palavras do Padre Simão, «tudo venceu com orações e penitências», volta a ter um lugar de destaque no último quadro, o epílogo que, em didascália, se indica como sendo «quase onírico» e para onde, «por mera convenção teatral», o autor faz confluir personagens que se encontram em locais e tempos diferentes, abreviando assim o desenlace: Catarina e Bernardim, «deserdados da Pátria», navegam em busca de uma ilha deserta, onde finalmente possam encontrar paz; Damião de Góis, dispensado agora do lugar de preceptor do príncipe, permanece numa pátria que o não entende, nem aceita; e a dupla D. Fradique Alvarenga/Padre Jesuíta que, assumindo a forma dos monstros saídos do quadro de Bosch, continua a «santa cruzada da Santa Inquisição».

Eis-nos chegados ao fim da dramatização de uma situação, sobretudo assente na memória histórica. Aqui, as pessoas, indivíduos que foram reais, passaram a um plano de personagens construídas e tudo se consubstanciou em situações dramáticas, próximas dos acontecimentos tidos por históricos, mas sobretudo significativas no quadro de referências criado. Este sublinha o facto de, seis anos volvidos sobre o início da acção, Portugal ter mudado radicalmente o seu rumo. De país progressista, passou a um «apertado e sinistro cantinho da Europa», onde se vigia e se pune qualquer discordância de cariz religioso.

Este foi o momento do nosso passado que Norberto Ávila decidiu trabalhar e recriar, constituindo estes textos, não uma visão derrotista da História, mas antes um hino à liberdade e ao progresso, que bem merece ver as luzes do palco.

Numa época em que ninguém sabe se o Teatro Nacional está efectivamente (já nem me atrevo a dizer «eficazmente») a funcionar, isto é, se o edifício que ocupa o topo norte do Rossio se encontra fechado ou em funcionamento, com uma política cultural definida, com programação atempada, elegendo textos portugueses para serem representados e admirados… numa altura em que não percebemos o que se passa em matéria de política teatral, chegam-nos não só duas belíssimas peças de teatro, como uma proposta concreta, vinda do próprio autor: por que não representá-las em dias alternados, uma vez que, como já se disse, temos em mãos dois textos complementares. Poupar-se-ia até, nos magros tempos que vão correndo, em guarda-roupa e cenografia…

Será, sem dúvida, uma possibilidade.

Outra, e esta é da minha «lavra», consistirá numa noite teatral, em duas partes, com um pequeno convívio gastronómico pelo meio, devolvendo desta forma ao teatro não só o papel que durante tantos anos também e tão bem desempenhou, como um propósito: a prática social de convívio.

Muito obrigada e os meus sinceros parabéns.

Ana Isabel Vasconcelos

 

Ana Isabel Vasconcelos – Departamento de Língua e Cultura Portuguesas. Universidade Aberta. Rua da Escola Politécnica, n. o 147. 1269-001 Lisboa