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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

RUI DORES
Da Condição Humana em As Coisas da Alma
JOÃO DE MELO
As coisas da Alma
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2003

Para além de um estilo próprio, há em João de Melo a expressão poética de uma linguagem. É com esta convicção que saio da leitura deste seu último livro, que reúne 15 contos (lúcidos e lúdicos) que se lêem com infinito prazer.

Nestes contos são projectados, sobre a tela da escrita, homens e mulheres que nos contam histórias sobre as geografias da infância e o mito do regresso aos lugares primordiais, a crise da identidade pessoal, a inquietação amorosa e os novos modos de amar, a navegação dos corpos, a hipocrisia conjugal, as novas mitologias do quotidiano, o desencanto social, o imaginário profundo da nossa portugalidade...

Para isso, João de Melo serve-se dos (apuradíssimos) dispositivos retóricos da sua prosa, numa narrativa em que a poética e a melodia andam de mãos dadas. Para este autor, literatura é, ainda e sempre, espaço de linguagem, lugar de resistência e afirmação da condição humana. Todos os seus livros dão conta da condição humana. E este não constitui excepção.

A condição humana está nas lágrimas daquela mulher que penhora as jóias da família (no conto «Ouro em Pranto»); está na rotina do viver funcionário dentro das paredes de um escritório («O Vinho»); está na indigência de José António e na lástima da sua vida de tóxico-dependente («O Fogo, a Lenha»); está nas desavenças conjugais entre uma linda mulher e um homem soturno («Olhos Cor de Lima»); está na viúva beata que chora pela salvação do mundo e que reza pela redenção dos pecados («Carpe Diem») [...] E está nas magníficas qualidades e capacidades da esposa do narrador («A Esposa»). E está no amor entre mulheres («Branca e Gabriela»). E está naquela cega que, casada com um açoriano, vem visitar as ilhas e logo ao desembarcar afirma ao marido que «vê» laranjais no mar («Algo Como um Regresso a Casa»)...

Outros contos remetem-nos para memórias do vivido e do sentido. Por exemplo, o mar (símbolo eterno de um regresso ao ventre materno), a infância insular (paraíso irremediavelmente perdido), o Menino Jesus e o sortilégio do Natal... Aqui também se fala da emigração açoriana, das impressões de Paris, até porque este é um livro de partidas e de regressos.

Tocou-me de perto o conto «O Gémeo e a Sombra», por nele saber que há algo de autobiográfico. Aqui o narrador vive a angústia do eu, pois sente que há um outro eu que habita dentro de si – e que não é mais que a sombra, a presença e a realidade do seu irmão gémeo («um duplo em mim») que morreu em tenra idade...

As Coisas da Alma é o quarto livro de contos de João de Melo, género que sempre dominou na perfeição. Basta ler «O Repúdio» (onde Fernando Pessoa desata a falar da sua impossibilidade de amar as mulheres...), ou «O Conto de Mim Mesmo» (em que há uma personagem que apoda o narrador de «lacaio da burguesia», numa narrativa de grande dimensão onírica) para sabermos que estamos na presença de uma escrita de altíssima qualidade.

Em declarações ao Jornal de Letras (12/11/2003), João de Melo (o escritor que em Portugal mais utiliza o adjectivo «diáfano») fala sobre a «carnalidade da escrita». Ora, é precisamente esta «carnalidade da escrita» que, na minha opinião, dá a este autor uma voz própria e é marca de uma diferença literária.

Há três anos desempenhando o cargo de conselheiro cultural da embaixada portuguesa em Madrid, João de Melo, 54 anos de idade, continua a surpreender. Neste momento está a concluir uma novela a que chamará O Mar de Madrid, «uma história de amor e estranheza entre um português e uma espanhola». Por isso mesmo deve continuar a merecer a nossa melhor atenção e consideração.

Victor Rui Dores – Escola Secundária Manuel de Arriaga. Rua Vasco da Gama. 9900-849 Horta