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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Discursos sobre memória e identidade, a propósito do
V Centenário do Descobrimento dos Açores

Maria Isabel João

Sumário - Summary

Introdução

Conjuntura do Centenário Açoriano

Celebrações Oficiais

Discursos Identitários

Considerações Finais

Bibliografia

Conjuntura do Centenário Açoriano

Ora, o V Centenário do Descobrimento dos Açores realizou-se em 1932, um ano antes da aprovação da nova Constituição que instituiu o Estado Novo, num período marcado por restrições orçamentais e por um discurso fortemente nacionalista. O centenário açoriano teve um antecedente próximo no da Madeira, realizado dez anos antes, numa data que não foi pacífica entre os investigadores. Também no caso dos Açores não havia a certeza sobre o ano do descobrimento e o nome do provável descobridor. As opiniões dividiam-se e a polémica foi intensa nos jornais, com António Ferreira de Serpa a evidenciar-se como opositor das celebrações naquela data (Republica, 1932: 7). Na sua opinião, a descoberta tinha sido anterior, provavelmente no reinado de D. Afonso IV, e não se sabia o nome do autor da proeza.

Havia quem defendesse que os Açores eram conhecidos desde a Antiguidade e atribuísse a proeza a marinheiros fenícios. Uma nebulosa história de moedas fenícias que teriam sido encontradas na ilha do Corvo, no século XVIII, vinha corroborar tal hipótese. Mais vulgarmente, contudo, admitia-se que uma parte das ilhas do arquipélago era conhecida desde o século XIV, porque apareciam referenciadas em várias cartas daquela época assinaladas pelo erudito Verlinden ( Lisboa, 1994, I: 12). Os nomes não correspondiam aos actuais e derivavam do italiano, apontando assim para o papel que os navegadores provenientes da península itálica, provavelmente genoveses ao serviço de Portugal, poderiam ter tido no descobrimento. Outro elemento vinha ainda juntar-se à polémica: a carta de Valsequa, de 1439, onde constava o nome do descobridor – Diogo de Sunis ou Silves, segundo a leitura paleográfica mais consensual – e a data da descoberta – 1427. A posição geográfica das ilhas que aparecem nesta carta já é a correcta, muito distinta do enfiamento norte-sul que era tradicional nas cartas anteriores e que parece apontar para uma representação imaginária ou, então, muito imprecisa do arquipélago. Este documento acabou, mais tarde, por se impor para a datação do descobrimento oficial dos Açores, na época do Infante D. Henrique.

Todavia, no início dos anos 30, não foi essa a posição adoptada. Apesar das dúvidas e indefinições que continuaram a pairar sobre o descobrimento dos Açores, prevaleceu a data indicada por Gaspar Frutuoso para a chegada de Gonçalo Velho Cabral à ilha de Santa Maria, 15 de Agosto de 1432. O parecer da Secção de História da Sociedade de Geografia reconhecia como provável o conhecimento pré-henriquino dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, apesar de terem continuado fora das rotas dos navegadores e desabitados. Por isso, no século XV, houve um trabalho de redescobrimento e de povoamento que realmente os integrou na geografia humana, o que legitimava a realização do centenário na data indicada. Por sua vez, o almirante Gago Coutinho, uma reconhecida autoridade nestes temas, defendia que «Gonçalo Velho é aquele companheiro do Infante que mais razões tem a seu favor para lhe ficar pertencendo esta façanha» (Comemoração do Descobrimento dos Açores, s.d.:10). Ainda houve quem defendesse que em vez de centenário do descobrimento se falasse do povoamento dos Açores, visto que era essa a única certeza que podia inferir-se da crónica de Frutuoso (Diário da Manhã, 1932: 9). Mas a ideia não colheu muitos adeptos e os organizadores preferiram continuar a referir-se ao descobrimento.

Um dos primeiros a defender a ideia do centenário foi Gervásio Lima, escritor terceirense e colaborador assíduo da imprensa regional, logo em 1924 (Portugal, Madeira e Açores, 1924). Propunha, na altura, que se erigisse uma estátua de Frei Gonçalo Velho na primeira ilha desvendada, Santa Maria. A ideia da comemoração foi retomada mais tarde por outras figuras públicas, nomeadamente pelo marechal Gomes da Costa que estava deportado na ilha de São Miguel (Correio dos Açores, 17.7.1929). Na capital, o Grémio dos Açores associou‑se à iniciativa, vendo nela uma boa oportunidade para chamar a atenção do governo para os problemas insulares e para dar publicidade ao arquipélago. Em 1929, constituiu-se uma grande comissão para preparar as comemorações do centenário, na ilha de São Miguel, sob a presidência do governador civil. A larga representação das autoridades locais e a forma como muitas personalidades da vida micaelense se associaram à iniciativa mostravam bem o interesse que havia na organização do evento (Ibidem, 3.12.1929).

Os organizadores contavam que o poder central viesse a colaborar nos festejos e, por isso, a comissão reuniu com o Delegado Especial do Governo nos Açores, o coronel Silva Leal. Este era de origem açoriana e mostrou-se muito receptivo ao projecto (Ibidem, 11.12.1929). Comprometeu-se a tratar com o ministro das Finanças a questão do financiamento do centenário e a preparar com os outros distritos açorianos a melhor forma de articular os respectivos programas. Além disso, o Presidente da República já fora convidado a visitar as ilhas açorianas por altura das comemorações, previstas para meados de Agosto de 1932.

A deslocação do chefe de Estado era uma das grandes apostas dos promotores do centenário que viam nela uma excelente oportunidade para sensibilizar o poder central para as dificuldades do arquipélago. Por isso, o convite do coronel Silva Leal foi reafirmado com a deslocação dos representantes dos três distritos açorianos ao palácio de Belém para o mesmo efeito, em Maio de 1932. O general Carmona manifestou, na altura, o seu desejo de visitar as ilhas açorianas, mas referiu que esta deslocação teria de ser rápida porque a situação política não lhe permitia ausentar-se durante muito tempo da capital ( Portugal, Madeira e Açores , 8.6.1932) . Idêntico convite já tinha sido feito ao governo e as autoridades locais manifestaram, expressamente, interesse que os ministros da Marinha, da Agricultura e do Comércio integrassem a comitiva presidencial. Em princípio, os convites dos governadores civis dos distritos açorianos tinham sido aceites pela presidência e pelo governo. Mas a evolução da situação política inviabilizou a deslocação prevista e uma conjunção de factores adversos reduziu muito o alcance das comemorações. De tal modo que, em Julho, uns versos publicados pela imprensa local diziam em jeito de chacota (O Telégrafo, 9.7.1932):

Festinhas do centenário

(em tão pobres condições)

quem vos metesse no armário

das não-realizações!...

Vale a pena recuarmos um pouco para compreendermos a situação das Ilhas e os seus motivos de agravo contra os governos. Depois do movimento autonomista que congregara também a Madeira, a ilha de São Miguel manteve acesa a chama das reivindicações político-administrativas em relação ao poder central. Em 1925, as eleições foram disputadas por um Partido Regionalista que contava com o apoio dos sectores mais conservadores: Centro Católico, Causa Monárquica, Partido Radical, comissão política do Partido Nacionalista e vários independentes ( Enes, 1996a: 74). Uma campanha bastante radical e de nítida oposição ao regime político vigente conseguiu mobilizar importantes sectores da população micaelense e eleger dois deputados - Filomeno da Câmara e Herculano Amorim Ferreira.

Nos outros distritos açorianos não se verificou a mesma mobilização em prol da autonomia. Em Angra do Heroísmo, as eleições decorreram dentro dos padrões habituais. Na Horta, o Partido Nacionalista metamorfoseou-se em Partido Regionalista e apresentou a candidatura do seu líder local, Manuel Francisco Neves Jr. Mas as eleições foram ganhas por um independente apoiado pelos Democráticos. São Miguel continuava a ser o epicentro das reivindicações autonómicas do arquipélago, tal como já acontecera no movimento autonomista do século xix.

Com o estabelecimento da Ditadura foi possível obter uma revisão do estatuto administrativo dos distritos insulares que vinha ao encontro das reivindicações mais moderadas. O decreto 15.035, de 16 de Fevereiro de 1928, alargou as competências e as fontes de receitas das Juntas Gerais, mas a subida ao poder de Salazar reduziu a margem de manobra financeira destes organismos, no quadro da política geral de contenção dos gastos públicos (dec. 15805, de 31 de Julho de 1928) (ver Enes, 1996a: 77-80). A breve trecho, os membros das Juntas Gerais constataram que a sua margem de autonomia estava cerceada pela falta de verbas. Em 1929, a comissão administrativa da Junta Geral de Angra do Heroísmo demitiu-se por considerar que não tinha condições para realizar as obras e os serviços necessários para o desenvolvimento do distrito e, no final de 1931, o presidente da Junta Geral de Ponta Delgada, Luís Bettencourt, tomou idêntica atitude ( Idem, 1996a: 81).

No início da década de trinta, a situação social e económica das ilhas era muito difícil, devido não só às precárias condições estruturais mas também à grave conjuntura de crise que afectou duramente todo o mundo ocidental. O desemprego e a miséria das populações insulares causavam preocupação às autoridades locais. O encerramento da emigração no pós-guerra e os cortes orçamentais, que obrigaram a paralisar muitas obras públicas, deixaram elevado número de famílias sem possibilidade de garantir a subsistência. Alguns sectores da economia tinham de enfrentar grandes dificuldades para escoar os seus produtos, debatendo-se com a retracção dos mercados provocada pela crise, com a baixa dos preços e com as consequências negativas da aplicação das políticas financeiras e monopolistas dos governos.

Em 1931, o caso do «monopólio das farinhas» esteve na base da revolta dos madeirenses e do apoio popular ao levantamento militar promovido pelos deportados ( Reis, 1990; Enes, 1980: 29-38). O movimento estendeu-se aos Açores, onde também viviam muitos opositores que tinham sido desterrados para as ilhas pela Ditadura. Apesar da agitação, a revolta dos deportados não teve a adesão das populações que se verificou na Madeira. Nesta ilha tinha-se constituído uma Junta Revolucionária, presidida pelo general Sousa Dias, que enviou ao Presidente da República um telegrama dizendo que assumira o governo da Madeira e que só reconheceria um governo que restabelecesse no país a normalidade constitucional. A notícia chegou às ilhas açorianas e houve um movimento de solidariedade com a Madeira, ao mesmo tempo que crescia a esperança numa mudança da situação política, com a extensão do rastilho da revolta ao continente. Com o apoio de algumas chefias militares, foram tomados quartéis e estabelecimentos oficiais nas ilhas de S. Miguel e da Terceira. Em seguida, foram criadas Juntas Revolucionárias em Ponta Delgada e Angra do Heroísmo. O governo ditatorial reagiu de forma rápida e eficiente, e depois de controlar a agitação no continente, enviou contingentes militares para as ilhas dos Açores, onde a situação foi dominada praticamente sem resistência. Cerca de um mês depois do início da sedição, o comando militar da Madeira reconheceu a superioridade numérica e material das forças governamentais e decidiu também render-se para evitar mais vítimas civis.

A memória destes acontecimentos ainda estava bem fresca e as celebrações do centenário poderiam ser o ensejo para aproximar as autoridades centrais dos problemas açorianos. Em 1932, duas questões de fundo estavam na ordem do dia: a unificação da moeda e o projecto de desenvolvimento do turismo. A moeda insulana ou fraca possuíra um valor, em média, 25% inferior à que circulava no continente. Desde o final do século xix que havia o projecto de unificar a moeda, mas este propósito esbarrava na resistência das populações em pagarem os impostos mais altos, isto é, de acordo com o valor da moeda forte. Porém, a diferença de valor causava transtornos nas relações comerciais com o continente, devido às constantes oscilações dos câmbios, e havia sectores da sociedade açoriana interessados na resolução definitiva do problema. Por isso, o decreto 19.869, de 2 de Junho de 1931, que unificou a moeda acabou por ser facilmente imposto por Salazar, apesar da conjuntura económica desfavorável para a maior parte dos contribuintes açorianos ter justificado medidas adicionais. O decreto 21.189, de 2 de Maio de 1932, estabeleceu uma dedução nas contribuições e impostos pagos nas ilhas, nomeadamente para aqueles que, por lei ou contrato, estivessem referidos à moeda insulana.

Por outro lado, o desenvolvimento do turismo era uma velha aspiração dos açorianos. Na ilha de São Miguel, o exemplo da Madeira era seguido com atenção pelos empresários e as autoridades locais que viam nesta nova indústria uma alternativa para a economia insular. Precisamente, no mês da publicação do decreto que unificou a moeda foi nomeada uma comissão para estudar o problema e propor as medidas necessárias para o aproveitamento daquela ilha como centro turístico ( Enes, 1993: 516). O relatório dessa comissão procurou enquadrar o turismo no âmbito das competências das Juntas Gerais Autónomas e reavivar a questão das atribuições de verbas destinadas aos corpos administrativos dos distritos insulares. Nos termos da proposta, competiria à Junta Geral mobilizar os meios financeiros para lançar as infra-estruturas necessárias ao arranque do turismo, inclusive através da construção ou adaptação de edifícios com essa finalidade. As receitas públicas serviriam, assim, para dinamizar os investimentos necessários ao desenvolvimento da actividade turística, substituindo-se à iniciativa privada que temia o elevado risco financeiro do projecto. Mais tarde, no caso de haver empresas interessadas, os edifícios adaptados ou construídos passariam para a gestão privada, a troco de uma indemnização compensatória para as Juntas (Comércio dos Açores, 1932). Em torno da questão do turismo desencadeou-se uma campanha que mobilizou a população da cidade de Ponta Delgada e agitou os ânimos.

Aliás, o ambiente político estava bastante tenso naquele ano. Ao nível nacional, a crescente supremacia política do ministro das Finanças levou o presidente do Ministério, general Domingos de Oliveira, a pedir a demissão a 24 de Junho. O governo que o substituiu já era presidido por António de Oliveira Salazar, o primeiro civil a ocupar o cargo desde o golpe militar de 1926. Nestas circunstâncias, o Presidente da República decidiu cancelar a sua visita aos Açores. Os governadores civis de Ponta Delgada e de Angra do Heroísmo foram substituídos na sequência das mudanças políticas (Correio dos Açores, 29.7.1932). A organização das comemorações parecia, deste modo, estar comprometida pela falta de interesse do poder central que não tinha disponibilizado verbas para o efeito, pelo cancelamento da visita presidencial e pela desmotivação das forças vivas locais que viam reduzir-se o alcance da sua iniciativa.

A 5 de Agosto, um abalo de terra, que afectou a ilha de São Miguel, provocando a derrocada de casas e alguns feridos, ainda veio piorar as coisas. O concelho da Povoação foi o mais atingido pelo sinistro e as comemorações ficaram irremediavelmente ensombradas. Tudo parecia conjugar-se para criar obstáculos às comemorações do descobrimento do Açores.