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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Açores e Madeira vistos por Marcelo Caetano em 1938
CARLOS ENES

Sumário

Summary

Introdução

Visão de Marcelo Caetano

Bibliografia

Visão de Marcelo Caetano

No Documento 1, Marcelo Caetano não desperdiçou a oportunidade para definir a sua posição face às «politiquices» locais. Dentro da União Nacional eram constantes as guerras entre grupos que se digladiavam para controlar o aparelho político-administrativo. Infelizmente, só se conhece a opinião relativa à Horta, porque não foram encontradas as cartas sobre Angra e Ponta Delgada. A perspectiva de Marcelo Caetano acabou por vingar no seio do governo, que apoiou os dirigentes locais considerados mais fortes e «susceptíveis de regenerar».

Para uma melhor compreensão do conteúdo da carta, refira-se que Freitas Pimentel, médico, natural das Flores, residindo na Horta, era apontado pelos adversários como um «vermelho do coração» e um homem ligado ao «reviralho». Todavia, isso não impediu que, ainda antes da viagem de Marcelo, tivesse sido dirigente da União Nacional, governador civil substituto e que até tivesse sido proposto pelo governador civil, Silva Mendes, para Grande Oficial da Ordem de Cristo, em 1937. Mas nesse preciso momento, havia caído em desgraça, ao ser acusado de ter caluniado o eng. Nobre Guedes por um desfalque na União Nacional. Para apuramento dos factos, foi aberto um inquérito em que foram ouvidas todas as personalidades da Horta e nada ficou provado contra ele. Contudo, foi afastado dos cargos que exercia até ser regenerado nos anos 40. A partir de então, foi representante dos municípios açorianos à Câmara Corporativa e governador civil [1953 a 1973]. Do seu grupo fazia parte Álvaro Soares de Melo, comandante militar, e ambos eram apoiados em Lisboa pelo coronel Linhares de Lima.

O outro grupo era liderado por Manuel Francisco Neves Jr. (1870-1953), médico e Guarda-mor de Saúde. Velha raposa política, transitou do Partido Regenerador para a República, ligando-se ao Partido Nacionalista. Em 1924, fundou o Partido Regionalista e adesivou ao Estado Novo. Esta facção era apoiada, em Lisboa, pelo Director Geral do Ensino Primário, Manuel Cristiano de Sousa. Nele se incluía António Terra, presidente da Câmara da Horta e dirigente da União Nacional, mas fora demitido dos cargos ainda antes da chegada de Marcelo Caetano. No inquérito entretanto levantado, apurou-se que António Terra havia falseado uma acta e que eram infundadas as calúnias contra Freitas Pimentel.

No Documento 2 Marcelo Caetano mostra ter-se esforçado por compreender a realidade insular. Captou de forma correcta as linhas essenciais da economia de cada uma das ilhas, salientando a falta de articulação do espaço económico açoriano, os bloqueios estruturais ao desenvolvimento, bem como situações conjunturais que afectavam algumas delas. Neste campo, não apresentou soluções, mas denunciou a existência de barreiras alfandegárias anacrónicas entre algumas ilhas. O caso mais grave opunha Graciosa e Terceira, em que para servir interesses de «capitalistas terceirenses» se dificultava a importação de aguardente da Graciosa. Uma situação que levou, aliás, anos a resolver, pois só na década de 60 foram abolidas essas barreiras.

No relatório de Marcelo, ficam bem evidentes as diferenças profundas entre os três distritos, com destaque para o de Ponta Delgada, detentor de receitas superiores às dos outros dois. Sem deixar de realçar a extrema pobreza de vastos sectores da população, resultante de uma má distribuição da propriedade, Marcelo revela um certo deslumbramento pela capacidade de execução de obras públicas, em que a Junta Geral empregava 36% do seu orçamento. Nos outros distritos tal não acontecia, por serem escassas as verbas, mas também porque eram outras as prioridades. No de Angra do Heroísmo, 40% do orçamento era gasto na educação, contra 25% em Ponta Delgada. Por este facto, como o próprio refere, os níveis de alfabetização eram bastante mais elevados do que em Ponta Delgada.

Impressionado com o progresso material, não se coibiu de elogiar a acção dos micaelenses, pelo seu dinamismo e pela qualidade dos quadros técnicos que geriam os diversos organismos. Para as outras ilhas, lamenta o imobilismo, a falta de preparação e a má gestão dos serviços, dando exemplos dos erros cometidos e que era urgente sanar. A sua preocupação centrou-se na procura de uma maior eficácia dos serviços, evitando sobreposições e procurando definir os que ficariam ou na órbita do Estado ou na das Juntas Gerais.

A sua filosofia baseava-se no princípio de que cada um deve gastar conforme o que possui. Para tal, alterou alguns malabarismos orçamentais, nomeadamente no distrito de Angra, que incluía como despesas obrigatórias o arranjo de estradas. E Marcelo Caetano foi peremptório: «A rede de viação aumenta-se quando o dinheiro chega». Deste modo, os orçamentos passaram a ser feitos na lógica do menor gasto possível, de acordo com as receitas locais, evitando o endividamento à banca. As Juntas ficaram assim cada vez mais dependentes do Poder Central que definia não só o montante das comparticipações, como também a prioridade dos investimentos. Essa dependência acentuou-se com a criação dos planos trienais a elaborar pelas Juntas e a aprovar pela Presidência do Conselho.

Com a redução da autonomia política das Juntas Gerais, estas continuaram a exercer o papel de «tesoureiros-pagadores» como já acontecia desde 1928, embora Marcelo Caetano considerasse este regime bastante útil. Paralelamente, propôs uma maior fiscalização dos serviços, a ser realizada por funcionários continentais que se deslocariam temporariamente às ilhas. Esta desconfiança sempre existiu e baseava-se no princípio de que os meios pequenos são mais propícios ao facilitismo, dada a relação de proximidade entre todos. Foi nesta perspectiva, que propôs a deslocação de polícias do continente para as ilhas, para uma maior eficácia na fiscalização.

As considerações lisonjeiras de Marcelo Caetano em relação aos Açores, com destaque para São Miguel, contrastam com as que proferiu para o Funchal. Por um lado, denuncia a inexistência de um «escol madeirense» que «só agora começa a revelar alguns dirigentes dignos desse nome»; por outro, constata a existência de uma enorme massa populacional «inculta e rude». Um relato que revela bem o atraso existente na Madeira, apesar do relativo desafogo económico da Junta Geral, devido ao movimento do turismo, onde a falta de infra-estruturas básicas era mais evidente do que nos distritos açorianos. Perante esta realidade, o estatuto de 1940, incluiu cláusulas específicas para a Madeira quanto às freguesias, onde não havia Junta mas apenas um regedor.

Com esta viagem aos arquipélagos, Marcelo Caetano colheu os dados que considerou importantes para arrumar a casa e fê-lo à sua maneira através do estatuto de 1940: um estatuto minucioso a controlar todos os passos das Juntas Gerais e fortemente centralizador, de acordo com a filosofia da época.

A «contestação» limitou-se quase sempre a aspectos meramente formais, relacionados com o funcionalismo das instituições. Veja-se, por exemplo, o relatório de José Bruno Carreiro, em resposta a um convite do ministro do Interior, em 1939, para analisar o projecto do novo regime administrativo. Sem nunca pôr em causa a filosofia global do projecto, restava-lhe a esperança de que voltassem para o Estado as despesas de alguns serviços para que as Juntas Gerais, aliviadas desses encargos, pudessem elaborar planos de obras e melhoramentos. A reivindicação da autonomia política havia-se esboroado lentamente. Os velhos autonomistas «rezingões» ou já haviam desaparecido ou se submetiam às regras impostas pelo ditador.