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ROSA MARIA GOULART
Ilha morena
TOMÁS DA ROSA
Ilha Morena
Horta, Núcleo Cultural, 2003

Este é um livro de contos inéditos que o autor preparara para publicação, como esclarece Manuel Tomás Gaspar da Costa nas «Notas lntrodutó rias». A este professor se deve, aliás, a forma acabada que a colectânea agora conhece.

A louvável iniciativa do Núcleo Cultural da Horta de publicar os textos inéditos de Tomás da Rosa permite ao público leitor, sobretudo do Pico e do Faial, o conhecimento destes contos do autor picoense que muitos se habituaram a respeitar como professor no antigo Liceu Nacional da Horta ou Liceu Manuel de Arriaga, hoje Escola Secundária com o mesmo nome.

Para além da tarefa de apuramento textual levado a cabo por Manuel Tomás Gaspar da Costa - facultado, como o próprio anota, pelo trabalho prévio de Tomás da Rosa -, ficamos ainda a dever-lhe, na introdução que faz aos contos em apreço, fecundas linhas de leitura, pela panorâmica que fornece sobre o respectivo conteúdo geral bem como sobre a estética que norteia a escrita do seu Autor.

É esta colectânea composta de um total de catorze contos, de índole predominantemente regionalista (como também se nos dá a entender na introdução): «O Começo da Noite»; «O Porto»; «O Assombro»; «O Sacrifício»; «llha Morena»; «A Ardósia Pequena»; «A Anoneira»; «O Balcão»; «O Darro»; «O Saco de Milho», «O Pachola»; «O Sonho»; «A Dívida»; «A Porta e a Janela». Digamos que, em termos de conteúdo narrativo, o conto inicial, que abre com uma cena de violência (situação que não é única; veja-se, por exemplo, «O Saco de Milho» ), adquire significação retrospectiva no cômputo geral da colectânea, como indício do universo que marca estes contos e, nomeadamente, da atmosfera que neles se cria. Perpassa, com efeito, em quase todos eles uma certa rudeza, fruto da expressão natural de personalidades forjadas (dir-se-ia, de forma naturalista)
em consonância com o meio e, certamente, a educação. Seria, porém, errado circunscrevermo-nos assim a essa leitura de superfície. Por detrás dela não podemos deixar de descortinar a visão mais ampla de um Autor que, por meio da ficção, perscruta atitudes e analisa sentimentos humanos: de nostalgia, dor, desilusão, consciência amarga das realidades da vida, ânsia de justiça, mediante um conhecimento que ele terá ido buscar ao meio rural que bem conhecia e de que terá captado o que, em seu entender, melhor o tipificaria.

Por estas narrativas breves transitam personagens que protagonizam episódios de um ambiente rural localizado e de notória referência empírica. Será esta uma forma de enraizar a ficção no real, incluindo-a em espaços geográficos do mundo empírico, produzindo, deste modo, o «efeito do real» a que se referiu Roland Barthes. A este propósito, uma questão de pormenor - e deixando de parte uma ou outra gralha, que, não raro, acontecem em trabalhos desta natureza -, mas que nos surpreendeu, por termos diferente experiência de infância no Pico: sempre conhecemos a designação «dia do Ajuntamento», que ainda hoje se mantém, aplicada ao dia 22 de Setembro e não ao «dia de S. Mateus» (que é a 21), como em «Ilha Morena» (p. 48) vem escrito. Lapso? Variação de data de freguesia para freguesia? Não se trata já, com certeza, do Monte ou do Pico de agora em todas as suas vertentes, mas daqueles que Tomás da Rosa um dia terá mais ou menos conhecido. E, para quem só tenha presente a faceta culta e citadina do Professor de Português, Latim e Grego, não deixará de surpreender a maneira como ele transfigura em arte da ficção essa outra realidade que nas freguesias se vivia, sendo bem visível a acção do espaço na determinação do modo de ser e de viver dos que nele habitam, aqui projectados nas personagens ficcionalmente inventadas e na linguagem que as caracteriza.

O próprio título, Ilha Morena, instaura no cerne destas narrativas breves um espaço geográfico reconhecível que constituía a sua terra de nascimento, por onde Tomás de Rosa reiteradamente circulava e que, naturalmente, transportava dentro de si, mesmo quando vivia fora dela. E um processo de a fixar indelevelmente, na memória e para além dela, seria, pois, a respectiva transposição para esse mundo alternativo que a ficção nos propõe -até porque, a literatura, sendo arte, instaura precisamente a duração no efémero da vida.

E porque da Ilha Morena (a lembrar a própria Ilha do Pico, que também dá pelo nome de Ilha Negra) se trata, será de destacar, em primeiro lugar, o conto que duplica o título em causa e onde se exalta a abençoada terra natal, onde os emigrantes, após terem conhecido a dureza da vida noutras pátrias, nela vêm repousar das amarguras experimentadas. Morenas são, portanto, a Ilha e a casa, como se esta, no aconchego proporcionado, fosse um modelo reduzido daquela: «Ilha abençoada e amiga! Cantinho de sossego para eles, que tinham palmilhado parte do mundo, de um mundo asfaltado e mecânico -, para sorverem sempre o seu quinhão da amargura que a vida reserva, implacável, a todos os homens» (p. 51 ).

Também a casa que recebe o nome de Ilha Morena, a bela casa «moderna, colorida, com o seu pórtico de colunas elegantes [ ...] numa elevação donde se avistavam o mar, os Ilhéus, as araucárias da vila e a cidade em frente» (p. 52), serve para Paulino e Mariana, regressados do Canadá, afogarem mágoas passadas. Casa e Ilha surgem, portanto, como uma espécie de regaço materno onde vêm acalentar os seus cansaços, as suas amarguras e os seus lutos. Este é também, na verdade, um dos raros momentos em que a terra, aqui representada no microcosmo da casa, aparece nimbada de felicidade, de uma felicidade que vem muito menos da vida vivida do que daquilo que a própria natureza proporciona.

É, aliás, em «lha Morena» que encontramos das mais belas descrições deste livro, o que nos parece deveras significativo. Sendo o conto - e estes não fogem à regra - um género narrativo caracterizado pela contenção, ele não comporta nem uma complexa teia de acções nem longas descrições. Atendendo, portanto, a que, nesta estética da brevidade, são privilegiadas as acções condensadas ou centradas em episódios singulares, são diminutas as pausas descritivas. No entanto, a que se reporta à casa baptizada de Ilha Morena constitui uma das notáveis excepções: aí se descreve com minúcia, embora com a economia de meios que o espaço textual exige, o prédio rústico, com o pátio que o rodeia, as árvores de sombra e de fruto, a horta, o cerrado, e, numa visão panorâmica, a própria ilha, como se vê nesta passagem que não resistimos a transcrever:

«Numa larga faixa desde a beira-costa até às ramagens densas dos primeiros matos, desenrolavam-se campinas vastas, acidentadas de maroiços e colinas, em que, entre os salpicos de verdura, - vinhas, figueiras, pinheiros, faias e incensos - rastejava num chão velho, hostil e rochoso, a misteriosa cor morena do corpo da sua ilha, posto que de inverno, ilha branca, se envolvesse em toalha de neve na Montanha.» (p. 51). Sublinhado do texto).


Em passagens como esta é mesmo notório um certo pendor lírico, quer pelo estatismo temporal a que a descrição se presta, quer pelo modo encantado como a textualização dos espaços do mundo empírico é feita, quer pela projecção subjectiva do exterior no interior de quem descreve. E, nestas circunstâncias (porventura o lado mais feliz deste livro ), apraz-nos ver o trabalho de linguagem que o próprio Autor, por interposto narrador, leva a cabo, e onde nitidamente se percebe o prazer subjacente ao acto descritivo.
Embora diversificados nas suas histórias e nas peripécias vividas pelas personagens, ressalta destes contos um tom dominante, disfórico, onde as vidas felizes não fazem história. É, efectivamente, a vida dura do trabalhador rural, as, por demais conhecidas, travessias do canal nos barcos de cabotagem, em luta com as ondas alterosas, os sonhos não realizados e silenciosamente acalentados. Tal acontece, por exemplo, no conto que tem precisamente «o Sonho» por título, mas também noutros, como «o Balcão», em que o mundo sonhado de Valentim, que saíra para continuar estudos no Continente português, acaba no regresso à terra donde partira, o lugar de fuga para a vida simples, «de ar lavado», do passado. Um sonho guardado pela vida fora é também aquele que em «A Anoneira» se vive.

Aquele é, aliás, a nosso ver, igualmente um dos contos bem conseguidos desta colectânea, pelo modo contido como exprime as vivências mais íntimas das personagens bem como pelo investimento aí feito na descrição. Não se esquecerá, porém, que a aldeia não é apenas o espaço idílico dos pinheiros e da horta, dos gorjeios matutinos de canários e pintassilgos. É também o espaço onde se vazam os pequenos ódios, as questiúnculas e desavenças, próprios dos espaços restritos onde todos se conhecem e de seres que, alheios à sofisticação da lei, se regem por uma espécie de justiça natural, exercida no calor das emoções e à margem do código penal vigente. É este, porventura, o lado menos atraente, mesmo se de intuito realista, destes contos. Ou talvez por isso mesmo, porquanto as manifestações tardias de uma determinada estética perdem, geralmente, a frescura e a eficácia que tiveram na altura própria.

Será justo, no entanto, destacar, goste-se mais ou menos das histórias aqui narradas, o domínio da técnica narrativa revelado por Tomás da Rosa, especialmente no modo como se conjuga o discurso do narrador com a perspectiva das personagens (destaque-se, neste aspecto, como também Manuel Tomás já apontara, a técnica do discurso indirecto livre ao serviço da retrospecção) e como conjuga habilmente as descrições breves, em obediência às características do género, com a narração.

Veríamos, no entanto, com agrado, se tal pudesse ter sido feito (mas compreendemos que, numa edição póstuma, se respeite a intenção do autor), uma expurgação do que menos ilustra (ou que mais deslustra) esta colectânea, qualquer que tenha sido a respectiva motivação. E aqui não podemos deixar de referir o último conto, que destoa do tom geral do livro, quer pela linguagem, quer pelo conteúdo.

Terão, certamente, ainda estes contos um valor histórico, na medida em que já não traduzirão exactamente o modus vivendi do espaço rural picoense, muito mais aberto às interferências do viver urbano e a um outro modo de cultura. E para quem aprecie menos, no tempo presente, esse regionalismo -em nossa opinião, demasiado exposto -, será grato vislumbrar, por detrás do ruralismo das personagens, a linguagem culta do Autor colada às parcas, e discretas, inter venções de um narrador que não resiste, uma ou outra vez, a distanciar a sua voz da voz das personagens cujo discurso pretende representar.

Dir-se-á, finalmente, que o leitor familiarizado com a leitura dos grandes contistas contemporaneos, nacionais e estrangeiros (sublinhe-se que se trata de um género altamente revalorizado na actualidade, quer na praxis, quer na teoria literária), não terá grandes motivos para deslumbramento. Isso não impede, todavia, que um texto como este mereça o nosso reconhecimento como trabalho artístico que, efectivamente, é. Acresce que, para o leitor açoriano, disponível para a leitura e para o reconhecimento dos seus, esta publicação será, assim o cremos, vista como um enriquecimento da, já vasta, literatura açoriana.

 

 
ROSA MARIA GOULART
Ponta Delgada, Outubro de 2003
 
Rosa Maria Goulart – Departamento de Línguas e Literaturas Modernas, Universidade dos Açores. Rua da Mãe de Deus. Apartado 1422. 9501-801 Ponta Delgada Codex