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A CONSTRUÇÃO DO VIAJANTE (1)
José Nobre da Silveira

Ralph Roger Glockler
CORVO. UMA VIAGEM AÇOREANA

Lisboa, Hugin, 2001

A verdade não reside, na ‘interiori homine', na auto-suficiência asfixiante da interioridade,
mas no confronto desta com o outro, com as coisas, os odores, os factos, a comida,
as funções fisiológicas, o suor e os calos nas mãos.

A interioridade deve ser virada conta se, fosse uma luva e atirada ao mundo, como o ideal de cavalaria de Dom Quixote, que se mistura com a promiscuidade do real, tornando-se, desse modo, ainda maior.

Claudio Magris, Déplacements

 

Corvo – Uma Viagem Açoreana nasce da obsessão de um nómada. Já aqui, neste mesmo lugar e a propósito da edição portuguesa de Viagem Vulcânica, referi o percurso deste autor exactamente nos mesmos termos, mas explico-me agora, à distância de alguns anos e a pretexto da tradução portuguesa deste novo livro, anterior no tempo da sua escrita, mas que só agora aparece a público.

A relação de Ralph Glockler com Portugal começa em finais dos anos 70, com o projecto de um doutoramento sobre Fernando Pessoa. É comum, entre os estrangeiros que nos visitam e que acabam por se acolher à desordem e à luz deste lugar, atributos que atraem e geram fascínio, que o começo seja esse (pense-se em Tabucchi, por exemplo), porque Pessoa era então e, em certa medida ainda é, um poeta por fazer, toda uma literatura por fazer, recolhida num tempo do passado e que surpreendentemente se solta desse passado, com uma intensidade que não é vulgar entre as obras por revelar.

Mas é também compreensível que os projectos iniciais se modifiquem, se apurem e se cruzem com outros, precisamente ao abrigo desses estímulos da desordem misteriosa e da luz que nos marcam. Foi o que aconteceu com Ralph Glockler: Pessoa deu origem a alguns belíssimos textos de poesia do autor – Das Gesicht Ablegen (2001) – fruto de uma actividade mais livre do que aquela que a academia nos permite, e Portugal, no seu todo, constituiu-se como espaço para a expansão de uma condição pessoal, melhor, de um desejo que parece definir o perfil de uma identidade, aquela que vive da afirmação de um nomadismo intrínseco, da vontade de permanentemente viajar, de estar em trânsito, de fixar, por momentos, lugares que se cruzam e suspendem na relação com outros lugares, reais e imaginados, da vida e da literatura.

Tudo isto pode parecer um projecto de existência inconsistente, mas, como é evidente no caso de Ralph Glockler, ele pode, de facto, alimentar a vida e sobretudo a literatura que dela vai nascendo; entregue ao curso do tempo ela vai apurando e definindo contornos e assim se transforma no outro lado de uma existência ainda mais real.

O Pessoa do provável projecto académico deu origem a Portugal für Keener (1980), um livro de viagens, mas não um guia convencional, onde o retrato de um país é, mais do que uma visão de roteiro, a imagem contaminada por um olhar inquiridor, fascinado e estranho (no sentido daquele que olha de um outro lugar), que não separa momentos nem atitudes, mas antes os deixa permanecer numa espécie de totalidade mista, marca do humano que vê sempre no quadro de um tempo que mais do que passagem é sedimento da diversidade, tratando-se, portanto, de um texto híbrido, entre a informação e a impressão, a que se seguirá Reise ins Licht (1984), um romance que, uma vez mais, toma Portugal como cenário e, em tempos mais próximos, aquilo a que poderemos chamar o ciclo dos escritos açoreanos. De facto Viagem Vulcânica , O Corvo – Uma Viagem Açoreana e um terceiro volume em preparação, constituem uma trilogia inconvencional sobre os Açores, como território de variadas travessias, que mais não faz do que dar corpo e expandir esse nó inicial do desejo de viagem, do olhar em trânsito, desenvolvido nas diversas matizes de aproximação a um mundo raro, que se procura fixar, enquanto se procura fixar a incerta imagem de um sujeito.

Esse apuramento dos laços que unem o que se vê a quem vê, aquilo que realmente é olhado ao que se pode imaginar ou sonhar, vai constituindo o lugar de uma escrita fortemente individualizada, que, tomando a viagem como território de eleição, em última instância a transforma numa pura metáfora, símbolo de uma condição que, para se entender, se toma poética.

Assim se marca também, e com a nitidez que, por vezes, acontece nos avanços e recuos dos processos literários, o caracter obsessivo de uma vontade e de um destino: quando Ralph Glockler descobre os Açores, não mais deixa de imaginar projectos de textos, viagens pelas ilhas, reportagens fotográficas. É o domínio do viajante solitário (quase um tema obsessivo nos seus livros) que aqui encontra, mais do que um espaço constituído e de contornos definidos, a hipótese de um cruzamento a que poderíamos chamar programático, com toda a incerteza que os programas podem ter: de um lado a disponibilidade de um lugar inexplorado e estranho, do outro a natureza de um sujeito em busca de uma constituição como ser no interior da linguagem, um terreno, portanto, de aproximações e tentativas, o que sendo comum a todo o ser e a toda a literatura, só pode marcar-se de forma individual e imprevisível.

Mais do que simples matéria de toda a escrita, construir esse percurso de união, entre o mundo que escolhemos para ver e a linguagem que nos vai constituindo como sujeito, pode então transformar-se numa obsessão, de sinais variáveis, pela forma como se explicita, mas sempre cumprimento de um destino, com tudo o que lhe dá origem. No caso de Ralph Glockler e dos seus livros vai-se justamente tornando cada vez mais visível a presença de um olhar nascido da antropologia, do tempo dos seus estudos de Tübingen, com toda a sedução pelo peso dos mitos ancestrais do homem, a que se foi juntando uma certa herança literária de escritores de viagens, sobretudo americanos, que, ao integrarem outros níveis temáticos, permitem acentuar o caracter misto e mais exposto de qualquer projecto contemporâneo de escrita.

De facto, quem tenha partilhado com Ralph Glockler o nascimento de alguns dos seus textos, a sua reconstrução, a divisão em unidades mais curtas, as constantes leituras de alguns autores, que desviam propósitos iniciais e os reformulam, percebe como a condição do escritor é sempre obsessiva e insegura e como, por vezes, o curso de uma ideia só se torna mais nítido no acaso de uma saída inesperada. O ciclo das narrativas açoreanas do autor, separadas no tempo e entrecortadas pela escrita e edição de poesia, teatro, traduções, tem vindo a constituir-se, no seu desenvolvimento autónomo, como o projecto mais maturado do autor, uma presença que, arrastada de longe, toma corpo no interior do processo de lentas articulações que venho referindo.

O primeiro texto escrito será precisa mente Corvo – Uma Viagem Açoreana e, desse modo, fará todo o sentido verificar como em Viagem Vulcânica (o livro que se lhe segue, editado há já alguns anos) os propósitos do olhar do antropólogo, do viajante filósofo, se cruzam com o desenho de um sujeito que de um modo ainda mais intenso, imagina a realidade e se imagina para poder conhecer, numa expansão quase total. Será esse segundo texto o alargamento do que aqui em Corvo – Uma Viagem Açoreana se anuncia já, no domínio sobretudo, e como venho marcando, de um território móvel, de um registo progressivamente mais híbrido, misto, propositadamente fragmentário e, de certo modo, suspenso.

Vejamos, porém, com outra proximidade, o que constitui a narrativa que aqui nos ocupa. Trata-se de uma viagem que se abre e se fecha no ar, no interior de um avião militar, o que também simbolicamente permite os voos do alto e esse olhar poético de um sujeito com uma intenção determinada de visita. As nuvens que se fundem com a montanha ou se espelham no mar atlântico são a metáfora de um universo fechado, uno e indivisível, circular no seu próprio destino e, por isso, um provável sinal que aponta para o que se procura: a tradição do comunitarismo pastoril, a construção de uma identidade quase à margem do mundo.

Os diversos capítulos que constituem a narrativa serão então a viagem interna em busca de uma história única, mas também o retrato de um sujeito em expansão, que acabará por projectar o desejo de conhecer e a estranha determinação que o invade, no olhar que lança a esse mundo perdido no atlântico. Daí também que o carácter do inquérito, como processo inicial, não seja conclusivo e nada apresente de linear na formulação de um argumento. A visita à caldeira, a conversa com os velhos no largo do outeiro, o encontro com o Presidente da Câmara ou a conversa com António dão permanentemente lugar aos saltos de uma imaginação interpretativa, a um jogo entre alguns flashes visíveis da realidade (um gato, as vacas na encosta da montanha, os aparelhos de comunicação via rádio) e a palavra que transfigura essa realidade, não para a formar, numa imagem total e fechada, mas antes para a suspender, num sentido que a aproxima do crescente fascínio do viajante.

Igualmente, a longa carta imaginada que o agente de autoridade do porto poderia escrever ou ter escrito, onde se estabelece o confronto entre uma ordem ancestral, exclusiva de uma comunidade e a visão que as disposições gerais, oficiais e uniformizadoras das administrações regional e nacional encerram, está já para além do desenho de qualquer realidade concreta, ou é simplesmente o sonho que a literatura pode emprestar a essa mesma realidade: um autor imagina e imaginando interpreta, deixando as marcas de uma ligeira melancolia, pela utopia que não se cumpre.

Também a conversa com o Presidente, integrada no discurso-pensamento do narrador é, mais do que o relato pormenorizado de um projecto económico ou social viáveis, a expressão de um desejo em que o próprio narrador participa: reconstruir uma forma de passado perdido (o do comunitarismo), no interior de um tempo que se transforma e é já outro, pode ser apenas a inscrição do nó de uma utopia partilhável, mas é precisamente a isso que se quer dar voz.

Todo este relato sincopado, nos seus variados registos de linguagem, na fragmentação do seu tom (da quase neutralidade de uma voz em busca de uma expressão, á incisão de um olhar que deseja prender o mundo), será então, entre a crónica, o testemunho e a ficção, uma tripla viagem no tempo: um tempo real imobilizado de uma ilha esquecida no mar, um tempo de uma vivência colectiva perdida, quase fora da História e o tempo de uma utopia unificadora, entre o passado e o futuro, entre o que, possivelmente, nem foi desse modo (o comunitarismo) e o que nunca poderá ser. Um tempo redondo e quase mágico, mais ao jeito do que a literatura pode imaginar, do que propriamente aquele que dá forma real às coisas, e que é, como sabemos, sempre imperfeito na sua estreiteza de limites.

Este sentido de uma matéria difusa, entrecortada de factos e de desejos, que o leitor conquista, em definitivo, no final, foi-se insinuando, no curso da narrativa, através de lapsos (as inscrições da adesão do sujeito ao fascínio irrecusável do lugar, a sobreposição dos planos, das vozes e das suas tonalidades, o jogo entre a presença quase neutra da reportagem e a clara vontade de criação), nascidos, no fundo, da natureza própria das palavras, ou, pelo menos, do modo como elas aqui se assumem. Porque elas serão sempre a tentativa de um esboço, de um desenho suspenso, a afirmação do brilho de uma luz que cria outra nitidez de contornos, mas que igualmente transporta consigo a fragilidade de uma união, entre quem olha e o que é olhado, como se pode verificar no capítulo com o título “Notas do primeiro dia da criação”.

Esse tempo, a que aqui chamei redondo e mágico, entre duas viagens de avião, num lugar que é um presente, marcado por um passado quase mítico, será, justamente, o perfeito lugar para um encontro: o encontro daquele que se solta de si em direcção ao conhecimento de uma realidade, onde se encerra todo o fascínio da utopia de um comunitarismo ancestral, e que, desse modo, se tenta tornar matéria no interior de uma linguagem um pouco convulsa e solta, incerta, mas aberta à experiência, num movimento que só poderá fixar o irregular em que toda a escrita converte o mundo e assim converte quem a ela se entrega. De um modo muito preciso esta narrativa será a história do nómada em direcção a outros destinos, que sendo o seu próprio destino, literário e pessoal, só interessam pelo princípio da pura viagem transfiguradora, tal como Kavafis, num célebre poema, entendeu o destino de Ulisses, isto é, de todos os homens, na sua sombra.

José Nobre da Silveira

 

(1) Texto lido na Casa dos Açores, em Lisboa, no dia 30 de Maio de 2003, na apresentação de Corvo - Uma Viagem Açoreana de Ralph Roger Glockler.

José Nobre da Silveira - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade. 1600-214 Lisboa