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ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA
Correspondência Científica de Arruda Furtado
Correspondência Científica de Francisco de Arruda Furtado
Introdução, levantamento e estudo de Luís M. Arruda
Ponta Delgada. Instituto Cultural, 2002

Uma das mais intrigantes figuras da cultura açoriana, Francisco de Arruda Furtado, cientista autodidacta micaelense (1854-1887), acaba de ser definitivamente recuperada para a conversação cultural açoriana e portuguesa graças à publicação da sua correspondência científica coligida em espesso volume, sob a responsabilidade do Professor Doutor Luís Arruda.

O percurso biográfico de Arruda Furtado tem tanto de notável como de singular. Amanuense na Repartição de Fazenda de Ponta Delgada, foi aos 22 anos convidado por José do Canto a trabalhar como escriturário na sua casa comercial. Colaborou com Carlos Machado e um grupo de naturalistas açorianos afiliados ao Museu de Ponta Delgada. Com cerca de trinta anos foi para Lisboa trabalhar no Museu de Lisboa, na Escola Politécnica.

O seu encontro com a teoria darwinista (The Origin of Species fora publicado quando Arruda Furtado tinha cerca de 5 anos) deslumbrou-o. Como se terá familiarizado com a obra de Darwin é pormenor que a sua nota biográfica não contempla, mas o fascínio por ela exercido na mente do jovem Francisco impele-o, aos 26 anos, a escrever em francês a sua primeira carta ao cientista inglês. Revela-lhe que após a leitura da sua obra a atracção natural que sentia pela zoologia o levara a ocupar-se da malacologia açoriana, no intuito de conhecer melhor a introdução das espécies malacológicas nos Açores e de as comparar com a fauna continental americana e europeia, a fim de fazer alguma luz sobre a origem das espécies açorianas. Envia-lhe juntamente alguns artigos breves, dá-lhe notícia de uma pequena descoberta sua e acrescenta ainda que tenciona divulgar a teoria darwiniana naquelas “paragens exiladas do mundo científico”. Afirma que lê todos os dias algumas páginas da famosa obra e declara-se sumamente feliz por se contar entre os discípulos de Darwin. Fica aguardando instruções sobre como proceder nas suas pesquisas e coloca-se inteiramente ao serviço do naturalista.

Na resposta, Charles Darwin diz considerar afortunado para a ciência o facto de existir num grupo de ilhas um homem como ele, Arruda Furtado, que não se limita a coleccionar e descrever espécies pertencentes a esquecidos grupos vários (“embora isso seja um bom e valioso trabalho”) mas que levanta questões filosóficas. De seguida, apresenta uma lista programática de sete sugestões do que ele “próprio faria se habitasse as belas ilhas” de Arruda Furtado.

São seis ao todo as cartas do jovem micaelense a Darwin e quatro as respostas deste. A última do açoriano é datada de 21 de Novembro de 1881, cerca de cinco meses antes do falecimento do cientista inglês.

O organizador do volume inventariou um total de 345 documentos, na sua grande maioria cartas trocadas com 78 correspondentes, 67 dos quais estrangeiros (sendo Gustavo Le Bon o mais famoso deles, para além de Darwin evidentemente), de países que vão da França à Alemanha, dos EUA à Bélgica e à Suécia. São todos cientistas, muitos deles ocupando lugares de grande relevo em sociedades e instituições científicas diversas. Os outros correspondentes são portugueses, destacando-se de entre eles José Leite de Vasconcelos e Teófilo Braga.

A personalidade de Arruda Furtado é deveras rica e invulgar. A rede de cientistas com quem se carteou em tão curto espaço de tempo (1880-1887), a bibliografia científica a que conseguiu ter acesso, a preocupação de rigor com que se envolveu nas suas pesquisas diversas, a extensão da sua actividade, (veja-se por exemplo esse espantoso exemplo de rigor empírico Materiaes para o Estudo Anthropológico dos Povos Açorianos. Observações sobre o Povo Michaelense ) tornam-no merecedor de um estudo biográfico. Mas um retrato seu fica solidamente estruturado neste volume a diversos títulos notável, com um nível por tradição pouco comum no género dentro do meio cultural português. A simples lista das várias facetas deste trabalho do Professor Luís Arruda quase ocuparia o espaço destinado a esta resenha crítica. Trata-se de um empreendimento que exigiu ao organizador e à sua equipa de colaboradores um aturado esforço, visando sempre proporcionar ao leitor a informação necessária para a contextualização da correspondência (cada núcleo de cartas é precedido de uma nota biográfica sobre o correspondente, bem como sobre quaisquer personalidades referidas). O volume inclui além disso: um sumário dos documentos organizados cronologicamente (o que facilita imenso as consultas); uma lista alfabeticamente ordenada dos nomes científicos incluídos nos documentos; um elenco bibliográfico das obras mencionadas nos documentos; e, finalmente, um índice remissivo. Se alguma vez foi possível falar-se de profissionalismo numa edição crítica de correspondência, neste volume temos sem dúvida um sério contendente ao direito a tal classificação. O Professor Luís Arruda prestou um valioso serviço aos Açores e à cultura portuguesa em geral, onde muito há ainda a fazer no domínio da disponibilização de fontes de trabalho segundo critérios rigorosos e dentro dos padrões internacionais hoje em vigor.

Arruda Furtado sobe assim, e muito justamente, à ribalta das grandes figuras açorianas (e portuguesas) do século XIX. No seu adequado prefácio ao volume, José Guilherme Reis Leite afirma que Arruda Furtado foi “abandonado à sua sorte e o seu nome esquecido pela intelectualidade açoriana” (p. 12). Correcto, mas não completamente exacto. Na verdade, Arruda Furtado foi deixado demasiado tempo no esquecimento. Eu próprio, nos meus verdes anos nos Açores apenas dele ouvi falar a propósito do debate sobre a origem da pronúncia micalense. A resposta de Luís Ribeiro à teoria proposta por Arruda Furtado vinha em anexo à edição dos Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade, que o Instituto Açoriano de Cultura editou nos anos 60. Foi só nos Estados Unidos, através de George Hicks, um antropólogo americano professor na Brown Universty e interessado nos Açores, que me encontrei com o precioso Materiaes para o Estudo Anthropológico dos Povos Açorianos. O Povo Michaelense. Desde então, nunca mais deixei de o referir como fonte básica para entender os Açores. Referi-o e citei-o no meu A Profile of lhe Azorean (1980) e também em Açores, Açorianos Açorianidade (1989); a Arruda Furtado aludo (até com pequena nota biográfica, ao lado de outras célebres personalidades açorianas), na minha peça No Seio desse Amargo Mar (1991). De resto, mais de uma vez o trouxe à colação nas “conversas” que mantive na RTP- Açores. Recordo-me também de ter chamado a atenção do Professor António Frias Martins, da Universidade dos Açores, para a necessidade de se dar atenção ao seu espólio, que eu consultara na biblioteca da Faculdade de Ciências de Lisboa, e para o qual fora alertado pelo número especial da revista Prelo , inteiramente sobre Arruda Furtado (n° 11, 1986). O Professor Frias Martins aceitou a sugestão e realizou mesmo um congresso na Universidade dos Açores, tendo sido publicado depois o volume das actas.

Mas é pouco, convenhamos. Tenho há muito a intenção – e considero urgente levá-la à prática – de preparar a reedição, com estudo introdutório, do precioso folheto O Homem e o Macaco que Arruda Furtado publicou em Ponta Delgada em 1881, em defesa do evolucionismo, como resposta a um padre que pregara contra a então emergente teoria. E bem pode o surgimento deste volume de correspondência despertar alguém para levar avante esse meu projecto. Importa igualmente reeditar os já referidos e extraordinários Materiaes. Obviamente com uma introdução a contextualizar a sua abordagem, hoje completamente rejeitada pela biologia. Arruda Furtado era um discípulo de Paul Broca, cujas investigações também quis prolongar nos Açores, tendo mesmo realizado impressionantes trabalhos de medição de crânios, na linha de uma pesquisa revolucionária para altura. Mas nem por isso deixam de ser pertinentes ainda hoje muitas das suas observações. Não faltarão susceptibilidades ilhoas a ressentirem-se de algumas afirmações do cientista, mas os espíritos mais serenos saberão admirar o fôlego e a garra da figura ímpar que foi Arruda Furtado, distinguindo-o do que nele é fruto do paradigma científico dominante na sua época.

À parte todos os méritos atrás apontados, este levantamento do Professor Luís Arruda bem poderá ter outras boas repercussões, para além das óbvias que advêm de dispormos hoje de um acervo epistolar verdadeiramente único, não apenas nos Açores mas em todo o país. Tão valioso empreendimento merece ser divulgado e devidamente aplaudido. Onésimo Teotónio Almeida.

Onésimo Teotónio Almeida - Brown University - Department of Portuguese and Brazilian Studies- Box 0 - Providence, Rhode Island 02912 - U.S.A.