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BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

Maria Margarida Maia Gouveia:
PEDRO DA SILVEIRA : CONTRIBUTOS PARA O ESTUDO DA LUSO-BRASILIDADE

Gouveia, M. M. M. (2006), Pedro da Silveira: contributos para o estudo da luso-brasilidade. Boletim do Núcleo Cultural da Horta , 15: 105-114.
Sumário : É objectivo principal deste trabalho fazer uma leitura do ensaio de Pedro da Silveira Os Últimos Luso-brasileiros. Sobre a Participação de Brasileiros nos Movimentos Literários Portugueses do Realismo à Dissolução do Simbolismo , no qual o autor destaca o papel desempenhado por alguns autores brasileiros “menores” na literatura portuguesa do século XIX. O presente texto procura sublinhar a actividade cultural brasileira, sendo também sua intenção relevar o lugar de Pedro da Silveira no quadro dos estudos luso-brasileiros.
Gouveia, M. M. M. (2006), A contribution by Pedro da Silveira to the Luso-Brasilian study. Boletim do Núcleo Cultural da Horta , 15: 105-114.
Summary : The main purpose of this paper is to present the essay of Pedro da Silveira Os Últimos Luso-brasileiros. Sobre a Participação de Brasileiros nos Movimentos Literários Portugueses do Realismo à Dissolução do Simbolismo, in which he shows the role played by some Brazilian minor authors in Portuguese literature of the nineteenth century. This article suggests a review of the Brazilian cultural scene and it intends also to emphasize the Luso-Brazilian setting of Pedro da Silveira’s thought.

Maria Margarida Maia Gouveia – Departamento de Línguas e Literaturas Modernas – Universidade dos Açores – Campus de Ponta Delgada. Apartado 1422. 9501-801 Ponta Delgada.

Palavras-chave : Pedro da Silveira, Estudos luso-brasileiros, Realismo, Simbolismo. Key-words : Pedro da Silveira, Luso-Brazilian studies, Realism, Symbolism.

“Só haverá Lusofonia se ultrapassarmos o patamar dos
tratados proclamatórios e retóricos […]. Ou se tudo isso
for apenas platónico, e houver além disso muito mais.”
Paulo Ferreira da Cunha, Lusofilias.

“[…] a literatura de língua portuguesa é uma unidade
irrecusável e uma realidade imponente.”
Vitorino Nemésio, Conhecimento de Poesia .

Se falar de luso-brasilidade se tornou quase lugar comum, cabe acrescentar que a face cultural desta problemática foi sempre bastante esquecida ou pouco lembrada no quadro de uma política governamental que desde há muito se impunha fomentar. A criação da Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa (CPLP) pode fazer-nos pensar em propósitos de redimir o lugar de outras culturas que, por preconceitos colonialistas, foram tidas como inferiores e que merecem uma particular e justa valorização, como é o caso do Brasil. Mas será a comunidade luso-brasileira “um mito inventado unicamente pelos portugueses”, “um sonho falso”? Esta é a questão levantada por Eduardo Lourenço, que não se coíbe mesmo em afirmar que desde há muito que os portugueses “perderam” (porque por lá se “perderam”…) o Brasil. Mas mesmo quando responsabiliza Portugal por esse afastamento, ao mesmo tempo desdramatiza tal facto, profundamente convicto de que “não há razão para não sonhar a sério – mesmo com os perigos de delírio que comporta – uma comunidade de raiz portuguesa” (L OURENÇO , 1999: 165), adequada porém à realidade presente, o que significa banir a ideia de império à Albuquerque ou à Vieira!… Nesta perspectiva de intensificação de laços Portugal-Brasil, contributos de intelectuais não podem nem devem ser esquecidos, pese embora empenhamentos ideologizados que têm dado azo a alguns mal-entendidos (“miragens” para uns, “delírios” para outros, ainda no dizer de Eduardo Lourenço). Este é um tempo de fecundo e salutar diálogo intercultural. É essa perspectiva (também transcultural) que nos tem levado, a nós, portugueses e brasileiros, ao conhecimento e divulgação das duas culturas e respectivas literaturas. Hoje, contamos com um número considerável de estudos sobre o tema e alguma investigação original. Pertinente se torna, no entanto, interrogarmo-nos sobre a forma como tem sido pensada a luso-brasilidade em Portugal.

A primeira grande linha de fundo que importa registar pode ser documentada com autores que reivindicam uma real política cultural. E isso acontece, por exemplo, com Vitorino Nemésio, “brasileiro” pelo coração, que reclama a urgente criação de “Uma República das Letras para Portugal e Brasil” (título de uma carta que escreve ao romancista nordestino José Lins do Rego) ( N emésio , 1943), uma mítica República (comum...) que ganharia maior expressão nos seus escritos da década seguinte. Com efeito, nos anos 50 produziria dois textos-charneira sobre a história da cultura na sua bilateralidade e também na sua unidade possível na cultura luso-brasileira. Trata-se da conferência Portugal e Brasil na História , proferida em 1952 no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e da “lição de sapiência”, pronunciada quatro anos mais tarde na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, uma aprofundada reflexão sobre Problemas Universitários da Comunidade Luso-Brasileira. Esta é, pois, uma linha de doutrinação de recomendações emergentes de uma boa reflexão teórica.

Nos anos 50 e 60, em crónicas resultantes de viagens ao Brasil ( O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos e Caatinga e Terra Caída ), e constituindo agora um plano de prática da luso-brasilidade, assume-se “histórico peregrino da América” ou “peregrino ilhéu da América” (expressões dele próprio), empolgado na busca de traços de lusitanidade e de romanidade, convencido de que “toda a nação é sempre a lembrança das empresas em que a história a meteu” ( ibidem ). As persistentes reminiscências da cultura portuguesa encontram expressão nesta síntese lapidar, que uma viagem por Minas Gerais lhe suscita: “O Brasil faz o milagre dos tempos e lugares fundidos. Portugal desdobrou-se e fez-se ucrónico” ( N emésio , 1998: 207). Quis também o acaso que, por motivos não intencionalmente culturais, mas em função da história política portuguesa, se viessem a encontrar no Brasil intelectuais portugueses com pensamento crítico relevante (antes e depois da chegada). Na verdade, as “exigências” políticas e ideológicas do Estado Novo, a partir de 1940 (e sensivelmente até 1974), obrigaram a exilar-se naquele país homens como Agostinho da Silva, Jaime Cortesão, Vítor Ramos, Manuel Rodrigues Lapa, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Fidelino de Figueiredo, Eudoro de Sousa, João Alves das Neves, Miguel Urbano Rodrigues, entre outros.

Manuel Rodrigues Lapa, que a literatura e a filologia portuguesas não podem nunca esquecer, nos anos que viveu no Brasil foi professor na Universidade Federal de Minas Gerais e prestou uma contribuição importante à história literária brasileira. Estes homens, portanto, acabaram por formar um “movimento” sem movimento planeado, constituindo um escol de portugueses que, no Brasil, deu corpo a uma autêntica cultura luso-brasileira. Em qualquer dos casos anteriores (seja por razões culturais ou por razões políticas), estamos perante imagens do outro que, não raras vezes, se não sempre, são também imagens de nós , temática que tem motivado um significativo número de textos, em prosa ou em verso, mesmo de escritores vivendo em Portugal. Por um lado, o encarecimento da terra brasileira deflui de valores ideológicos, do sentimento de solidariedade histórica e cultural; por outro lado, é a vibração emocional que domina a escrita, tendendo a uma reelaboração do ufanismo, à hiperbolização estética do real. “As verdades desfecham em hipérboles” ( Barros, 1923: 33), assim definia João de Barros a visão brasileira de Euclides da Cunha. O mesmo se poderá dizer da poesia do próprio autor de Ansiedade e de tantos outros poetas portugueses…

Uma terceira linha, claramente enquadrada nos estudos comparatistas, tem procurado reflectir sobre as interfaces entre literatura portuguesa e literatura brasileira, relevando convergências e interligações entre as duas literaturas. Nesta perspectiva se inserem diversos ensaios: uns de longo fôlego (1), outros não aspirando a serem mais do que, e parafraseando Fernando Martinho, olhares cruzados, algumas leituras e escritas cruzadas dos dois lados do Atlântico, constituindo, no entanto, tal como no caso anterior, contribuições qualitativas para a inteligência da luso-brasilidade.

Se, na generalidade, toda a investigação e estudo desenvolvidos em torno da luso-brasilidade ganham em pertinência e significado, não esgotam, porém, a problemática no seu todo. Neste contexto, Pedro da Silveira, com a sua infatigável atitude de investigador e erudito, consegue neste Últimos Luso-brasileiros motivar o leitor para aspectos que permanecem em debate até aos nossos dias. O estudo, a despeito das suas escassas três dezenas de páginas, merece mais atenção do que alguns trabalhos mais longos. Avalorizá-lo está ainda o cuidado na recolha de informação e descrição dos dados recolhidos, patente nas numerosas e, por vezes, extensas notas do texto.

Partindo do pressuposto de que as leituras da luso-brasilidade têm-se concentrado sobretudo no que o próprio autor chama de “intercâmbio cultural”, ele propõe-se reflectir sobre a circulação recíproca entre as expressões literárias de Portugal e Brasil. O objectivo está claramente definido nas primeiras páginas:

Ocupar-me dos brasileiros que estiveram ligados ao movimento parnasiano e ao do Simbolismo em Portugal, combatentes nas lutas que os impuseram, menos […] por lhes descobrir notáveis qualidades criativas do que por outra coisa: o vislumbrar neles, uma vez retornados ao Brasil, possíveis propagandistas das estéticas literárias que tinham cultuado na Europa ( Silveira , 1981: 11).

É, pois, sobre um corpus vasto e pouco visitado pela crítica, diria mesmo, pouco conhecido e divulgado, que versa este trabalho de Pedro da Silveira. Justificada está a organização do campo documental em três períodos, assim enunciados: “Do ‘microcosmos’ d’A Folha a 1880”, “Quando o Parnasianismo já era assim chamado” e “De 1889 à negação do Simbolismo”. A questão das “influências” não é, todavia, simples nem linear. Porém, Pedro da Silveira visa realçar a actuação de brasileiros nos movimentos que em Portugal e no Brasil surgiram nas últimas décadas do oitocentismo e início do século XX (sua presença em periódicos e publicações em editoras portuguesas), sem grandes preocupações teóricas. O que não impede que até se detenha, por breves linhas, sobre conceitos de Parnasianismo, de Simbolismo, aproximações e diferenças entre os dois movimentos nos respectivos espaços ou ainda na tão polémica questão da naturalidade dos autores e sua pertença a uma literatura. Quanto a este último aspecto, talvez por comodidade de encadeamento da argumentação, Pedro da Silveira adopta as palavras de Valentim de Magalhães, quando este diz que considera Filinto de Almeida brasileiro, apesar de ter nascido em Portugal, e Gonçalves Crespo português, apesar de ter nascido no Brasil, pois que “a nacionalidade dos escritores e artistas é determinada pela naturalidade do seu espírito” ( ibidem : 20). Embora questão muito importante, por emergir das motivações e das temáticas recorrentes de um autor, este conceito de nacionalidade por naturalidade espiritual esbarrará muitas vezes nas lutas de reivindicação nacionalista histórico-literária. Mais aceitável e funcional será o que diz de Gonçalves Crespo, quando afirma que, portador de uma dupla nacionalidade, portuguesa e brasileira, contribuiu para o arranque do Parnasianismo em Portugal e no Brasil. Com efeito, Miniaturas (embora menos lido em Portugal que os Nocturnos ) é um livro que “inaugura” o Parnasianismo nos dois países – o que nos interessa agora no ponto de vista da luso-brasilidade em causa.

No espaço das preocupações luso-brasileiras que a erudição de Pedro da Silveira torna mais visíveis, avulta o cuidado a ter com o rigor, correcção e precisão da linguagem que, segundo aquele investigador, terá mesmo sido maior do lado de lá do que do lado de cá . Na verdade, fica-se a dever ao seu cuidado, paciência e rigor, os marcos postos ao longo deste caminho de investigação de interesse luso-brasileiro.

Estas preocupações com a linguagem, de resto, até poderiam ter sido herdadas do período neo-clássico. Num estudo recente, José Aderaldo Castello afirmou a propósito da poética parnasiana:

Ela promove o culto da forma em geral, ‘versificação e elocução’, acentuado a partir da década de 1880. No exame e correção da linguagem poética ‘reside o ponto fundamental’ da proposta ou do programa do parnasianismo brasileiro (Castello, 1999: 301-302).

Acrescenta ainda, recorrendo à opinião de Alberto de Oliveira sobre “O culto da forma na poesia brasileira”:

A expressão exata – ou ‘expressão perfeita’ – para a ideia a ser transmitida, conforme a ‘Profissão de fé’ de Bilac na citação de Alberto de Oliveira, constitui […] talvez a maior preocupação parnasiana. Exigia-se, portanto, conhecimento e respeito da língua, repúdio aos epítetos gastos e imprecisos, às imagens vulgarizadas, às monofonias, em suma, ‘elevação, pureza e distinção da linguagem poética’ ( ibidem : 302).

Lembraríamos também, até, que os parnasianos foram mergulhar noutras raízes (pequenas ou grandes são raízes), citando a opinião, já antiga, de Duarte de Montalegre, de que “não oferece dúvidas a influência de Castilho sobre os Parnasianos brasileiros”, no que toca, por exemplo, à “pureza vernacular”, “culto meticuloso dos cânones linguísticos”, “perfeição inexcedível” ( Montalegre, 1945: 31).

Dos dados fornecidos pelo ensaísta, merece especificação o nome de Luís de Andrade. Crítico e cronista em vários periódicos do Rio de Janeiro nos anos 80 ( Gazeta de Notícias , Diário Popular , Gazeta da Tarde ), aí encontrou espaço para a divulgação das novas estéticas que tivera oportunidade de conhecer em Portugal (então nos primórdios do Realismo), nomeadamente pelo seu companheirismo com Guilherme de Azevedo, Cesário Verde, Guerra Junqueiro. Este último seria até o prefaciador do seu livro Caricaturas em Prosa , que provocaria a crítica contundente de Sena Freitas, que toma a livraria que o editou, e citando Pedro da Silveira, como “foco de infecção, porque corrompe a sociedade com as suas publicações”. Mas – conclui o mesmo ensaista – trata-se de “um livro que se impõe ter presente ao tratar-se dos primórdios do Realismo em Portugal”.

Se o arrolamento destes Últimos Luso-brasileiros disponibiliza informação importante para um melhor conhecimento dos parnasianistas brasileiros, nomeadamente o traço “classicizante” que caracteriza esta poética no Brasil, o mesmo se poderá dizer dos simbolistas. Na História da Literatura Brasileira, o Simbolismo talvez seja uma época que, pela complexidade da sua “geografia” e pelo nem sempre fácil acesso a todos os documentos, enferme de uma panorâmica ainda lacunar (2). Em todo o caso, e encurtando razões e variáveis, não nos parece que nas linhas fundamentais da poesia simbolista no Brasil seja questionável uma presença franco-belga, e, paralelamente, citando Massaud Moisés, também não seja “difícil surpreender na tradição poética luso-brasileira, ao menos de forma embrionária, exemplos que atenuam a fisionomia imitativa que os referidos ‘ismos’ assumiram ou assumiriam” (Moisés, 1973: 10). Ainda mais: as investigações desenvolvidas por este consagrado ensaísta levam-no a concluir que “eram lidos e benquistos dos nossos simbolistas [os brasileiros] os poetas portugueses do tempo, como Antero de Quental, António Nobre, Guerra Junqueiro e João Barreira” ( ibidem : 89). Bastaria, pois, este argumento para justificar o nosso interesse pelos elementos aduzidos da pesquisa de Pedro da Silveira, para mais acrescida do nosso já antigo interesse por leituras de teor comparativista.

Assim, é útil ao alargado objectivo de valorizar a luso-brasilidade e as “parcerias” intelectuais de portugueses e brasileiros, a referência que faz ao brasileiro Francisco Bastos, provavelmente menos conhecido e citado colaborador da importante revista Os Insubmissos para a qual desempenhou mesmo o papel de responsável pela edição, ao lado de Eugénio de Castro.

Esta vertente brasileira da importante revista fica assim posta a descoberto, com a importância que possa ter no plano cultural. Sendo aquele autor brasileiro menos conhecido, Pedro da Silveira entendeu, e bem, transcrever o poema “Madrigal nocturno”, que sublinha como documento inovador do uso do alexandrino – o alexandrino trímetro –, composto de um octossílabo e um quadrissílabo, acentuado, com ou sem cesura, nas 4.ª, 8.ª e 12.ª sílabas. Vejamos um exemplo:

Passam de manso as virações ainda olorosas

Dalgum pomar ou laranjal por onde andaram

É mesmo opinião do investigador que estamos a homenagear de que o brasi leiro foi o introdutor do referido alexandrino trímetro, embora reconheça o conceito bem divulgado da mestria de Eugénio de Castro no que toca à prática deste tipo de verso, e sem esquecer outro grande poeta português de alexandrinos que foi Junqueiro, autor da incomparável «Lágrima» (“E o velhinho andrajoso e magro como um junco, / O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco…”).

A sua investigação meticulosa, aliada a sensibilidade literária, leva-o ainda a fazer-nos reparar numa informação minudente, que é a de relevar a produção literária de Francisco Bastos que, sendo menos conhecido, é também autor do poema em prosa «Fugiu», composição que “apresenta a particularidade de incluir esboços de versículos” e prenunciar em 1889 o versilibrismo de Eugénio de Castro. É intenção de Pedro da Silveira – recordemos – inventariar partícipes brasileiros em movimentos portugueses (“esquecidos” da história, na sua maioria…) também com o intuito de deixar nas entrelinhas a possibilidade de problematizar um eventual contributo no respectivo país de origem, uma vez a ele tornados. Ora, constitui dado irrefutável a presença interventiva de Portugal no processo simbolista brasileiro, que, tal como em momentos outros, decorre naturalmente do quadro cultural que o caracterizava. De tipo “bacharelesco e oratório” assim considera Massaud Moisés o ambiente então vivido, não resistindo o mesmo crítico a precisar tal juízo com as seguintes palavras: “[…] as estéticas literárias nos países de cultura receptiva e incriadora, como o nosso, as mais das vezes decorrem da imitação de outras, nascidas em meios culturais mais adiantados, emissores e criadores” ( Moisés, 1973: 75). Neste capítulo sobre a “influência” portuguesa M. Moisés recorre a Araripe Júnior e a José Veríssimo no sentido de ilustrar uma leitura que considera, de algum modo, fruto de uma generalização excessiva ou deformadora, enfermando de lacunas ou contradições. No entanto, não contesta que a literatura brasileira (e nesse caso o Simbolismo) se possa aquilatar por uma teia de relações com vários interlocutores, entre os quais os portugueses.

O mais curioso deste estudo sobre Os últimos Luso-brasileiros está precisamente no facto de procurar desenhar, a traços largos, hipóteses de divulgação das novas estéticas por brasileiros que as conheceram e a elas aderiram aquando da sua permanência no nosso país. Nesse sentido, mais alguns autores secundários , “humildes das letras” (no dizer de A. Muricy), não escapam à sua lente microscópica, agora voltada especificamente para o Simbolismo. Embora en passant , descobre Ortigão Sampaio, a sua convivência com Gonçalves Crespo e João Barreira, este último autor de Guaches (1891). Reconhece em ambos (Ortigão Sampaio e João Barreira) um maior pendor para as artes plásticas do que para a literatura, mas mesmo assim, o certo é que Silveira (talvez mesmo sem total consciência disso!...) acaba por lançar os dados para uma interessante perspectiva de análise das relações entre os dois movimentos, em Portugal e no Brasil. Andrade Muricy, que tão aprofundadamente estudou o Simbolismo no outro lado do Atlântico, não parece ter dúvidas quanto à repercussão que lá teve Barreira:

Foi através dessa obra [ Gouaches ] talvez mais do que de Missal , de Cruz e Sousa, que o poema em prosa entrou na nossa vida literária. (As Canções sem Metro , de Raul Pompeia, frias, tímidas no seu anseio de liberdade, não tiveram eficácia proselitística). […] Os nossos simbolistas adotaram-no imediatamente; muitos com fervor fanático. Narrou-me um remanescente do movimento, Corinto da Fonseca, que o seu grupo o declamava secretamente, e de joelhos . […] tenho razões para supor que ele ignora a extensão do influxo que teve o seu volume , nunca reeditado (M URICY , 1952: 4-55. Sublinhado nosso).

Aliás, curioso registar também que o conteúdo da dedicatória manuscrita de Andrade Muricy no exemplar que oferece ao autor português (3) reitere esta ideia de projecção e receptividade daquela sua obra nas letras brasileiras: “A João Barreira, para que tenha a revelação da importância de ‘Guaches’ no movimento simbolista brasileiro. Homenagem da admiração de Andrade Muricy”. Chega até ao pormenor de indicar as páginas em que o autor português é referido, nos três volumes que compõem o “clássico” estudo Panorama do Simbolismo Brasileiro .

Teria sido Ortigão Sampaio a via ou uma das vias desta referência? Fica, pois, esclarecida a velha questão que por vezes leva a rejeitar os autores secundários , quando, no conjunto da cultura, o conhecimento da sua obra concorre para uma visão integral da cultura.

Aos pesquisadores pacientes e eruditos, como Pedro da Silveira, se fica a dever o mosaico da construção de uma perspectiva mais esclarecida dos que contribuíram para a luso-brasilidade . Afinal, a pergunta de Andrade Muricy “Por que não apenas os autores principais?” ( Muricy, 1952: 13), porque “pode um dragão possuir cauda de réptil e entretanto ser dotado de possantes asas de marsupial… Um autor secundário apresenta muita vez aspectos grandemente reveladores” ( ibidem ).

E tenha-se em conta a opinião de que “a literatura de língua portuguesa é uma unidade irrecusável e uma realidade imponente” ( Nemésio , 1958: 336), como nos deixa lapidarmente dito um grande mestre da luso-brasilidade que foi Vitorino Nemésio, num livro maioritariamente escrito na Bahia, também publicado na Bahia, quando lá esteve como professor visitante, contribuindo ainda pelo magistério para a ponte entre as duas culturas e os dois países.

 

Bibliografia

Abdala Junior (org.) (2000), Ecos do Brasil: Eça de Queirós, Leituras Brasileiras e Portuguesas . São Paulo, Editora Senac.

Barros , J. (1923), Olavo Bilac e Euclides da Cunha . Lisboa, Aillaud e Bertrand.

Castello , J. A. (1999), A Literatura Brasileira. Origens e Unidade . São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, I.

Cunha , P. F. (2005), Lusofilias . Porto, Edições Caixotim.

Lourenço , E. (1999), Cultura e lusofonia ou os três anéis in A Nau de Ícaro Seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia . 2.ª ed., Lisboa, Gradiva: 161-172.

Martinho , F. (2003), Modernismo português e brasileiro: olhares e escritas cruzadas in Scripta , Vol. 6, n.º 12, 1.º semestre: 189-208.

Moisés , M. (1973), O Simbolismo in AA.VV. A Literatura Brasileira . 4.ª ed., São Paulo, Cultrix, IV.

Montalegre , D. (1945), Ensaio sobre o Parnasianismo Brasileiro seguido de uma Breve Antologia . Coimbra, Coimbra Editora.

Muricy , A. (1952), Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro (revisão crítica e organização da bibliografia por Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira). Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, I.

Nemésio , V. (1958), Conhecimento de Poesia . Bahia, Universidade da Bahia.

Idem (1943), Uma ‘República das Letras’ para Portugal e Brasil. Revista do Brasil , Setembro: 20-23.

Oliveira , A. (1916), O culto da forma na poesia brasileira in AA.VV., Conferências (1914-1915) . São Paulo, Sociedade de Cultura Artística: 263-288.

Saraiva , A. (1986), O Modernismo Brasileiro e o Modernismo Português: Subsídios para o seu Estudo e para a História das suas Relações . Porto, s.e.

Silveira , P. (1981), Os Últimos Luso-brasileiros. Sobre a Participação de Brasileiros nos Movimentos Literários Portugueses do Realismo à Dissolução do Simbolismo . Lisboa, Biblioteca Nacional.

Vieira , N. H. (1991), Brasil e Portugal. A Imagem Recíproca . Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.

 

Notas

(1) Veja-se, a título de exemplo, Arnaldo Saraiva , O Modernismo Brasileiro e o Modernismo Português: Subsídios para o seu Estudo e para a História das suas Relações , Porto, 1986; Nelson H. Vieira, Brasil e Portugal. A Imagem Recíproca , Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesas, 1991; ou o volume que reúne colaborações várias, subordinado ao tema Ecos do Brasil: Eça de Queirós, Leituras Brasileiras e Portuguesas (org. por Benjamim Abdala Júnior), São Paulo, Editora SENAC, 2000.

(2) Cf. com o que escreve Andrade Muricy: “Os simbolistas […] eram numerosos, e muitas das contribuições até de simples epígonos dentre eles constituíam particularidades definidoras necessárias.” Acrescenta “[…] focalizar, […] os secundários, e os humildes das letras, não é coisa dispensável. Cada vez mais se tornam evidentes a importância documental, a significação sintomática expressiva dos secundários e dos epígonos” (Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, Vol. I, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1952, pp. 10 e 14).

(3) Exemplar que possuímos, adquirido no mercado de alfarrabistas.