LEONARDO BOFF: À BEIRA DO APOCALIPSE?
MARIA ESTELA GUEDES











LEONARDO BOFF

DO ICEBERG À ARCA DE NOÉ
O nascimento de uma ética planetária
Garamond, Brasil, 2002, 160
pp..


Estaremos de facto à beira do Apocalipse, como receia Leonardo Boff? Um dos últimos números da "Science et Vie" também garante que sim. As águas estão poluídas, pelo buraco do ozono espreita o cancro de pele, as espécies extinguem-se, a miséria alastra, os ricos são cada vez mais ricos, a ideologia cria expectativas exclusivamente materiais, a violência crepita nas grandes metrópoles, os políticos querem é mostrar a cara na televisão, nos templos reina a pedofilia em vez da teofilia, os poetas escrevem maus versos, os padres rezam a Oikos em vez de rezarem a Theos, quando chove as culturas ficam arrasadas, e se não chove ainda é pior, os icebergs estão a derreter por causa do efeito de estufa, e que mais há para dizer? - preparemos nova arca de Noé?

Qual a diferença entre este profetismo e os milenarismos? A diferença está na origem do discurso catastrofista, que agora é a deusa Scientia.

Acodem-me à lembrança as conversas com G.F. Sacarrão, antigo professor na Faculdade de Ciências de Lisboa, embriologista, evolucionista, que, depois de jubilado, como não tinha mais ninguém a quem dar aulas, contribuiu para fazer de mim uma pessoa que agora há quem remeta equivocadamente para o grupo dos cientistas. O Prof. Sacarrão, com várias obras publicadas sobre Ecologia, entre elas "A ecologia da luz" (veja a sua bibliografia em Biblos-Alexandria), que selecciono apenas pela riqueza semântica da palavra "Luz", confessava que a ecologia, bem como a ciência em geral, biologia incluída, era uma ideologia. É disso que em parte tratam os seus principais ensaios para o grande público, como os dois volumes de "Biologia e Sociedade" (1988). A sua visão da ciência era profundamente crítica.

Ora Leonardo Boff, franciscano, é um autor que importa ler, porque a sua obra convoca à missão, em geral arredia do mundo actual, que deixou de ter um fim, um objectivo comum, como escreve o dominicano Timothy Radcliffe (online no TriploV), porque leva S. Francisco, conhecido por falar às aves, ao lab_oratório científico, onde tudo hoje se faz menos ora et labora, e sem dúvida porque transmite a um grande público o alerta para a necessidade de travar o desgaste brutal que estamos a infligir ao planeta. Porém perguntemos de novo : é certo e verdadeiro que estamos à beira do Apocalipse? Não estará a ciência a usurpar o papel que compete aos profetas? E não estará Leonardo Boff a veicular crenças e hipóteses científicas como se fossem factos reais e verificados? O Big Bang é uma hipótese ou um facto? A filogenia é uma série de hipóteses, diversas consoante os autores, ou um conjunto de factos reais? Nessa filogenia, que dá o homem como Primata, já estará provada a sua descendência dos símios? Os macacos e o Homem, ou o Homem e os pardais, são mesmo parecidos? Parecidos em quê? Na capacidade de um orangotango erigir uma capela e todos os domingos nela fazer sermões aos peixes pelo breviário escrito pelos seus parentes javalis? Eis uma das críticas de G.F.Sacarrão: a ciência insiste desmesuradamente nesta circunstância de o homem ser um animal, dedicando-se a prová-lo com a acumulação de dados biológicos, mas esquece-se de anotar as diferenças, tudo aquilo que torna o homem único, diverso de todos os outros seres vivos.

Leonardo Boff parece ter mais fé na ciência do que a própria ciência. Ao rotular a nossa espécie como Homo demens, será que inclui nela os cientistas, ou identificará estes como o género Superhomo divinus?

É sem dúvida original um discurso teológico que deixa de lado os Padres da Igreja, ou mesmo Platão e Aristóteles, para fundar na livraria científica a sua escolástica. Ou é original um discurso científico com intrusões teológicas - a ciência actual é ateísta, funda todo o seu discurso na crença de que Deus não existe, e a esta crença dá o nome de "convenção do natural". Há porém uma grande diferença entre os dois magister dixit : enquanto Aristóteles ou Santo Agostinho podem hoje ser invocados ao preço que sempre tiveram ao longo dos séculos, a autoridade científica desvaloriza-se em décadas, anos, até meses ou dias, e rapidamente a sua informação, de científica passa a histórica, quando não desaparece ainda mais depressa nas ignotas prateleiras daquilo que numa biblioteca especializada já ninguém consulta. Aparece um investigador na minha biblioteca científica, inquirindo se teremos certa obra, que não encontrara noutro lado, céptico quanto à possibilidade de a encontrar, por ser muito antiga. Pergunto, por me saber bem a resposta : - E o que é para si uma obra antiga? O utente responde, tímido, curvando a espinha ao peso da sua paleocronologia: - É um artigo de 1986...

Outro exemplo, ocorrido hoje: uma obra de biologia publicada em 1991, por qualquer motivo que não importa analisar, só agora, em Setembro de 2002, foi distribuída às instituições hipoteticamente interessadas. Folheando com desdém um exemplar que lhe oferecia como lembrança de Portugal, um biólogo estrangeiro comentou: "Isto está completamente ultrapassado!" Estará, mas eu vou pôr em linha a introdução, pois tem interesse para nós, pessoas das Letras que investigamos na área da História e Filosofia das ciências. Uma obra que em 1991 era o último grito em Biologia, e que por mistérios do acaso (darwiniano?) acaba de ser distribuída, vai dar entrada no site como história, porque a ciência é assim, caducifólia, e para sempre, não há Primavera nem eterno retorno que lhe renovem as folhas, salvo em circunstâncias excepcionais, que não serão milagre vertente.

O magister dixit, em ciência, é o texto que não posso incluir na bibliografia deste artigo, por ser tão recente que ainda não foi publicado. Tudo o mais rapidamente passa a história. Como confiar em dados científicos que se ultrapassam e corrigem uns aos outros à velocidade de um avião a jacto?

Outra diferença assinalável entre as duas autoridades reside na sua motivação, explícita ou implícita: enquanto os autores antigos, em especial teólogos, visavam a Verdade, ou mais modestamente as verdades (mentindo embora, em muitos casos, pois também eles são parte do Homo demens), a escolástica científica não tem a verdade no horizonte. O escopo é reforçar o seu próprio paradigma, o que em última análise a dá como rival das instituições que mais poder detêm, e o poder da Igreja já o açambarcou, falta só açambarcar o político. Além de não ter a verdade no seu escopo, a ciência presta falsas informações. Se eu disser a Leonardo Boff que é bom lugar de pesca o Rio Mattosinhos, em Portugal, óptima para apreciar aves a ilha de Bioko (Fernando Pó), no Atlântico Sul, e que muitos doutores em ciências receberam os canudos na Universidade de Coimbra, no Douro, qual a sua reacção? Reproduzo apenas três entre milhares de informações falsas idênticas a estas que poderá encontrar no TriploV, algumas em facsímile do texto científico em que são prestadas. Veja-se a descrição de Bioko feita por Boyd Alexander, veja-se a história cronológica da morte de Anderson, nas "Viagens na Cimbebásia", de Duparquet, leia-se tudo no meu sector "As gralhas".

Com toda a minha solidariedade pela causa de Leonardo Boff, vejamos só mais um motivo de alarme, o das espécies que se extinguem. Como sabe a ecologia que o que se extingue são espécies? Estará a ecologia em condições de provar que não são os caracteres instáveis dos híbridos artificiais o que vai desaparecendo?

Que é urgente mudar de paradigma, concordo. Concordo com Leonardo Boff, é preciso mudar de paradigma. Se a ciência mudasse de paradigma, talvez eu passasse a acreditar nela.



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