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DA LITERATURA
com
ANNABELA RITA

“E a mancha rubra logo à frente”…

Sérgio Luís de Carvalho, O Retábulo de Genebra, Porto, Campo das Letras, 2008

“A memória é uma coisa muito estranha; esquecemos tanto e tão depressa… Contudo, basta às vezes, um vislumbre, um som escutado só ao longe, um esgar na distância desvendado, uma palavra, uma cor, um sentimento… E eis que logo a memória se nos revela, parece que nos ordena e que nos trava; e um sorriso surge-nos no tempo, e uma lembrança que julgávamos apagada renasce por instantes, e isso basta.

E isso basta.” (p. 25)

Talvez. De facto, a memória é a matéria e o processo declarados de elaboração d’ O Retábulo de Genebra (2008), de Sérgio Luís de Carvalho, na abertura romanesca, mas também conclusivamente, depois de regressar em jeito obsessivo, numa travessia do texto e do tempo, pontuando-o de retomadas com variação, religando cenas:

“E porque a memória é uma coisa muito estranha à qual basta, por vezes, um som só ao longe escutado, um esgar na distância desvendado, um vislumbre, uma cor ou um sentimento, eis que num instante a memória de novo se lhe revela, de novo lhe surgindo a voz de Gervasius há muitos anos quando, numa das primeiras aulas que lhe dera, o levara à catedral de S. Pedro e lhe apontara o retábulo, dizendo:

‘É Genebra.’” (p. 358)

De pintor em pintor, de pintura em pintura, de imagem em imagem, de facto em facto, a memória conduz, entretece e cerze com a sua teia a ficção de um quadro, oferecendo-nos o quadro de uma ficção. Em vertigem. Em mise-en-abîme.

Emoldurado por uma arquitectura cíclica, que conduz da “Turba” à “Turba (II)” (multidão anónima) e, nesta, do olhar de Albert (pseudo-nomeado desse anonimato), após mais de trezentas páginas através de quase um século europeu (sécs. XV e XVI), ao mesmo olhar maravilhadamente fixado na composição: “A pesca milagrosa” (1444), de Konrad Witz. Lembrando o emaravilhamento dos antigos viajantes face a um mundo novo e insuspeitado, desvendado…

Dentro dessa arquitectura, em camadas sobrepostas, as idades do homem e da sua obra: da progenitura biológica e artística (Hans Witz, pai e primeiro mestre, e Jan van Eyck, o mestre) ao ‘sucessor’ artístico (Albert) que deles ouviu falar e os reencontra através do quadro e da rememoração. Entre ambos, a história de uma vida lutando contra a lei da morte na construção de um monumento a si, que vença a fantasmática e temida mulher “da gadanha” na sua dança macabra: a arte ultrapassando, assim, a morte. Morte anunciada, vida conquistada em registo diário, diarístico: cada pincelada sobreimprime o discurso bíblico e o estético, o progresso da doença e do quadro, do ensino e da aprendizagem, enfim, o visual, o mnésico e o efabulatório. Como o “mestre” e o “aprendiz”, com eles, o discurso mistura os pigmentos, os materiais, os óleos, compondo a hipótese ficcional da pintura e da salvação daquele quadro onde real (Genebra e lago Léman) e imaginário (Bíblia e lago Tiberíades) se combinam, oscilando entre a “mancha rubra" (p. 27), da tinta e do sangue tuberculino, e o brilho especular, mas também vítreo, do lago gelado, dos olhares fascinados e das memórias.

Emergindo diariamente da percepção e da imaginação do pintor e do trabalho do pincel, mas também da memória que os informa, “A pesca milagrosa” impõe-se-nos no e pelo triunfo da sua novidade estética dentre os painéis que restam (as asas e as suas composições) do políptico de Konrad Witz: Genebra no séc. XV, observada da margem direita do lago Léman como paisagem de fundo da cena que evoca Cristo no Novo Testamento . Triunfo previsto, anunciado, e, depois, encenado no acto da apresentação pública da obra: no altar-mor da catedral de S. Pedro, na asa esquerda do políptico dedicado a S. Pedro, encerrando o retábulo, ela reúne, milagrosamente, “todos como um só”, “uma só cidade, vários bairros e ruas irmanadas como uma mão cerrada em punho cujos dedos formam força” (p. 341). E apeteceria dizer que será salvo, depois, por ‘um como todos’, em icónico, mas dissimulado triunfo, pois as simetrias e as assimetrias compõem estruturalmente este romance, como a própria composição pictórica, com S. Pedro duplicado, no barco e na margem, em inclinação assimétrica…

Milagre de Arte que exibe numa só imagem, fusional, de outroragora, a representação do real presente (depois e agora, também, passado e ausente) e do mítico bíblico, convocando tempo e imaginário para fazer reconhecer outra perspéctica na espacial, uma em que a alteridade estética igualmente se alinhe para nós , consagrando a quase contemporaneidade da emergência da paisagem, do retrato e, até, do auto-retrato: São Lucas Pintando a Virgem (1450), de Roger van der Weyden, e A Virgem do Chanceler Rolim (1434-36), de Jan van Eyck. Inscrevendo-se este retábulo numa sequência do tratamento do mesmo tema por Duccio di Buoninsegna (O aparecimento de Cristo no Lago Tiberíades, 1308-11), Rafael (A pesca milagrosa, no desenho de c.1513-1514 e na tapeçaria de 1517-19), Jacopo Bassano (1545), Joachim Beuckelaer (1563), Rubens (1618-19), etc.. Evocando, ainda, Os esponsais dos Arnolfini (1434), de Jan van Eyck, no interior doméstico, reflectindo o casal por trás no espelho convexo (mise en abyme), representando-se o autor em miniatura como pintor e assinando em latim como testemunha (“JOHANNES DE EYCK FUIT HIC 1434”, “Jan van Eyck esteve presente 1434”), à semelhança do que faz Konrad Witz.

Milagre de Arte, que expande por um século e mais de trezentas páginas o instante do encontro do quadro por um ficcionado pintor protestante convulsionado pelo movimento emocional da multidão.

Milagre de Arte, que compacta numa “mancha rubra” a equivalência entre Cristo representado e aquele que o pinta (em via crucis pela religião da Arte), entre ponto focal e ponto de fuga, contaminando a bidimensionalidade da Pintura, com o Mito e a História, complexificando-a com a convergência dessas duas dimensões culturais, a atemporal e a temporal. “Rubro” que sobreimprime sagrado e profano e que sinaliza os correspondentes evangelhos das mortes anunciadas. “Rubro” do cinábrio, o sulfureto de Mercúrio ou vermilion, que insinua, desde logo, aquilo que a medicina confirma: os efeitos negativos, de envenenamento, na saúde de quem o manipula. Etimologicamente, hesita entre a origem grega (designando diferentes substâncias) e a persa (zinjifrah, "perdido"), sinalizando esta última o próprio esquecimento inerente à memória. E, por isso, também lembra o outro políptico de Konrad Witz, o Espelho da Salvação (c. 1435), para o altar da catedral de Basileia, e, com ele, a velha tradição da Arte de Bem Morrer que domina a cultura europeia da Idade Média, a obsessão de conquistar a salvação na hora do trespasse. Assim sendo, no vórtice da memória, da imaginação, da pintura (objecto e processo) e do texto (escrita e discurso), está a substância que vai absorvendo o universo ficcional, decantando-o, qual buraco negro por onde a matéria se transforma noutra coisa: a vida, na morte ou… o discurso, na sua leitura… No âmago, pois, a alquimia de uma transformação de que a Arte, a Ciência, o Mito e a Religião, enfim, a Cultura, em geral, nas suas diferentes modalidades, procuram aproximar-se: a “mancha rubra” indiciando a dimensão misteriosa e enigmática de todas as modalidades do saber, do fazer e do ser…

Essa imagem apresentacional do políptico (pelo pintor na catedral) que “todos como um só apontam” lembra-me outra que sinaliza apoteoticamente a ocorrência milagrosa, o reconhecimento surpreso: a experiência de súbita visualização pela criança aterrada da Transfiguração (1518-20) de Raphael, onde o rapaz epiléptico se confronta com essa surpreendente figura de Cristo transfigurado (episódio do milagre do rapaz possesso) . Esta composição constitui uma espécie de alegoria simbólica da transfiguração em que se configura e gera a própria imagem estética: a criança é quem vê e faz ver a imagem transcendente, o poder dessa imagem em apoteótica metamorfose, na pintura como na narrativa bíblica.

Na ficção de Sérgio Luís de Carvalho, o olhar do moço coxo Gex (simbólico e representativo, emblematicamente, de uma outra localidade, mas também do povo, na miséria da sua existência), vai-se modificando, esteticizando, alongando no tempo o emaravilhamento que se poderia exprimir na pontualidade súbita do espanto do seu homólogo rafaelino. No olhar de cada uma das crianças, a temporalidade corresponde à da ocorrência da surpresa e codifica-a para nós. Através do olhar infantil, o milagre da epifania estética e religiosa (porque a aparição de Cristo e do Retábulo é que importam em qualquer dos episódios, pela sua capacidade de se constituirem como demonstrações ou provas das suas po(i)éticas.

A originalidade estética garante, pois, a sobrevivência do quadro aos acidentes da História (convulsões políticas, religiosas e existenciais) sob a protecção da Arte (um pintor que partilha com ela a inicial onomástica) e do seu autor, inscrito na assinatura “HOC OPUS PINXIT MAGISTER CONRADUS SAPIENTIS DE BASILEIA 1444”. Como o mestre explica ao discípulo:

“Significa que este quadro foi pintado pelo mestre Konrad, de Basileia, no ano de 1444. A nossa voz, disseram-me uma vez, também deve ficar gravada na madeira” (p. 329).

E a voz do seu mestre ecoa na sua, saindo da moldura de um espelho: “JOHANNES DE EYCK FUIT HIC 1434” (“Jan van Eyck esteve presente 1434”).

Em “Nota Final”, na sequência da “Nota Prévia”, a voz de outro mestre, de escrita romanesca, Sérgio Luís de Carvalho, faz-se ouvir também, inscrevendo-o, por sua vez, a ele na moldura exterior da composição discursiva, conferindo-lhe acrescida ficcionalidade:

“Todas as personagens relevantes deste romance são reais, excepto Gex, Hemmerli, Bárbara, Albert e Gervasius.” (p. 361)

Ora, é sob o olhar desse Albert imaginário, apenas emblematicamente identificado pela inicial da Arte maiusculado como ela que penetramos na ficção da verdade hipotética:

“/…/ e os seus olhos fincam-se ainda mais, com mais vigor:
(A memória é, decerto, uma coisa muito estranha.)
A mancha grande que desde logo o maravilha surge plena e triunfante aos seus olhos, que de todo já domaram a penumbra. Uma mancha rubra, à volta é verde, azul mais acima, umas nuvens, uma torre à direita, casas, a barca tem seis homens que estão pescando, um há que se atira ao lago, é igual ao outro que ainda está no barco, vai-se a ver é S. Pedro que surge duas vezes novamente.
E a mancha rubra logo à frente é Cristo, sim, é Cristo, Albert lembra-se devagar, mas com firmeza. A lembrança é ainda fugaz, vai e vem como uma rapariga que se esquiva;
‘…vestiu a túnica, pois estava nu, e entrou no mar.’
/…/
Um retábulo. Aquele conjunto ali desvendado à sua frente é isso mesmo. Sim, um retábulo. Albert recorda, em esforço, um retábulo, os três quadros colocados abertos algures /…/.
/…/
E a frase que não se esvai da sua mente…
De todos, é aquele derradeiro, o da face externa do lado esquerdo, o que mais cativa o seu olhar: Cristo, a barca com os pescadores, Pedro que se atira para as águas.” (p. 27)

E é graças a esse reconhecimento do ficcionado Albert que o quadro se salva miraculosamente das lutas entre católicos e protestantes de Genebra, em 1535, escondido por ele aquando da invasão da catedral de S. Pedro para a destruição de imagens e ícones. Ícone poupado, excepção enigmática apelando a e potenciando outro monumento, no caso, literário, supostamente explicativo, homenagem de uma arte a outra naquilo que mais as distingue e irmana: a inovação. Hipótese ficcional que vamos vendo projectada no olhar tão imaginado e metamórfico de um Gex, rapaz-cidade-aprendiz-pintor, quiçá...

Seguindo a tradição dos polípticos, que historiam, em séries de cenas, grandes angulares históricas ou religiosas, o d’“A pesca miraculosa” tem uma dimensão identitária no plano estético: de reflexão da arte sobre ela mesma e a sua relação com a realidade. E O Retábulo de Genebra (2008), de Sérgio Luís de Carvalho, faz o mesmo, compactando, em série fragmentada e mnesicamente justificada, um século europeu, o quadro e a sua história, a autor e a sua biografia, sagrado e profano, relacionando as artes, mas também insinuando as efabulações e evidenciando as omissões em cada um deles (os painéis centrais do políptico, a outra Europa, nacional e temporal, a vida do pintor), o desconhecimento maior do que o conhecimento, o romance histórico gerado nesses vazios estimulantes…

“E a frase”:
“ANNABELA RITA FUIT HIC 2008”

Annabela Rita (n. 1958). Doutorada em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela Universidade de Lisboa, em cuja Faculdade de Letras é professora. Integrou a MRPB - Missão para o Relatório sobre o Processo de Bolonha (2003-04) e, actualmente, é Conselheira para a Igualdade de Oportunidades do MCTES. Directora do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa, investigadora do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira (Universidade Católica Portuguesa) da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, coordenadora de um projecto do Centro de Estudos de Culturas Lusófonas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, membro da Direcção da Associação Portuguesa de Tradutores, do P.E.N. Clube Português, da Associação Portuguesa de Críticos Literários, etc., além de integrar os Conselhos Consultivos da Fundação Marquês de Pombal e do Instituto de Cultura Europeia e Atlântica, tem colaboração ensaística dispersa em periódicos e obras colectivas da especialidade em Portugal e no estrangeiro. As suas principais publicações: Eça de Queirós Cronista. Do “Distrito de Évora” (1867) às “Farpas” (1871-72), Lisboa, Cosmos, 1998; No Fundo dos Espelhos. Incursões na Cena Literária (vol. I), Porto, Edições Caixotim, 2003; Labirinto Sensível (em co-autoria com Casimiro de Brito), Lisboa, Roma Editora, 2003; Breves & Longas no País das Maravilhas, Lisboa, Roma Editora, 2004; O Mito do Marquês de Pombal (em co-autoria com José Eduardo Franco), Lisboa, Prefácio, 2004; Emergências Estéticas, Lisboa, Roma Editora, 2005 (a sair); No Fundo dos Espelhos. Em Visita, Porto, Edições Caixotim, 2005 (a sair). Tem a direcção de três colecções literárias: “Obras de Almeida Garrett” (Edições Caixotim), “Faces de Vénus” e “Faces de Penélope” (Roma Editora).