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DA LITERATURA
com
ANNABELA RITA

Miguel Barbosa à beira-mágoa

Miguel Barbosa. Lisboa da Janela dos meus Olhos, Lisboa, Edições Prates, 1997, poema I. Por comodidade, usarei as iniciais do título para referir esta obra ao longo do texto.

A marca.
Texto. Poema, narrativa, drama, pintura, desenho. Mas também fóssil. E objecto arqueológico.
No início, era…
… e dele ficaram vestígios. Sintetizações. Consagradas em título: Sintetizações poéticas (1999).
Primeiro, por resultarem de um processo de formação, maturação e confluências, essas sintetizações são cristais onde o movimento se congela numa forma definitiva. Como Velázquez procurou fazer ao seu gesto, dotando-o de mistério: em As Meninas (1656), representando a hesitação da pincelada em pleno acto criativo, rodeado da evocação espectral das obras de Rubens, Jordaens e Martinez del Maso, observado por olhares reais inscritos e emoldurados, compondo uma cena de tal modo reflexiva e estruturalmente enigmática que mereceu o célebre comentário de Luca Giordano “Questa è una teologia de la pittura.”
Para Miguel Barbosa, o quadro e o poema, como a pegada de dinossáurio, um fóssil ou… são objectos informados da história da sua gestação e da História em que ela se inscreveu. História(s) implicada(s), implicitada(s), que lhes confere(m) uma dimensão oculta, um para além do visível, incontornável, desafiador e sedutor: a Arte. Em simultâneo, feita de presença e de ausência. Ausência evocadora e convocadora: tanto mais intensamente marcada, quanto mais polifónica, plena de ecos da sua anterioridade e da sua contemporaneidade, mas também de projecções em hipotético futuro. Presença, consequentemente, feita de opacidade e de transparência, densa, volumétrica, indicadora desse além difuso, velado. Signo-sinal. Dramático, agónico e especular: habitado de memória, de museologia e de sonho, seus e da alteridade. Narciso, Eco e Ofélia. Fazendo, por isso e assim, equivaler Arte e Vida. E, do mesmo modo, reivindicando uma na outra, numa reversibilidade e permutabilidade estranhecedoras de ambas.
Em segundo lugar, essas sintetizações constituem gestos relacionais, relacionam discursos, práticas, artes. Metonímias. Como Miguel Barbosa afirma num poema entre pinturas:
“Há sempre um poeta perdido
na chama da sombra insondável da cor”

É o caso da poesia revelando a vida ou a ficção geradas na pintura:
“Aquela borboleta
vermelha
saída de uma flor
da tela
que levou da tua paleta
a cor
/…/” (SP, p. 96)

Ou a pintura, cujo grafismo abstracto, assemelhando-se à caligrafia, se designa como “A palavra” . Ou a outra que, entre paralelismos e redundâncias, em si sublinha a potencialidade ficcional, intitulando-se “A fábula” (SP, p. 222), referência à sua construção ou à sua leitura.
Mas também é o caso da pintura reflexiva que conta a história da sua génese num título que a sintetiza: “O gesto” (SP, p. 226). Ou daquela que reúne a duplicidade, abstracção e episódio de infância: a mancha ilegível de pinceladas paralelas e desiguais e o título “Conta-me histórias mãe” (SP, p. 229). Ou, ainda, a que metonimiza música, cor, palavra e memória das três: “Sinfonia em azul” (ASPMB, p. 118). Evocando a confluência tonal da pintura e da música, na sequência de experiências como The White Girl (Symphony in White No. 1, 1863, e as outras da série), de James Abbott Mcneill Whistler, ou as representações da catedral de Rouen de Monet (subintituladas harmonia azul ou harmonia azul e oiro), ou Ophelia – Opera in blue (1982-83), de Sergei Dreznin, com o texto de Shakespeare, ou, ainda, Rhapsody in blue (1924) de Gershwin, para não mencionar mais.
E não esqueçamos a peça arqueológica, vestígio de uma época, testemunho de uma vida transmitido a outra, desconhecidas uma da outra, ponte que o tempo habilmente inscreve no espaço cristalizando a intersecção entre a História pública e a privada. Peça convivendo com tantas outras em colecções longa e apaixonadamente reunidas num abraço ansiando captar o mundo, deslizando, após cada exaltação de descoberta e posse, para o deceptivo sentimento de impossibilidade da plenitude afectiva. A paixão, por vezes, roça uma dimensão religiosa, aquela que lhe dita a etimologia (re-ligare)...
E essas peças inscrevem Miguel Barbosa na grande tradição do coleccionismo implicada na história da museologia, justificando o museu que a Câmara de Sintra lhe dedicou. História que começa dividida entre a versão mais institucional das colecções e tesouros religiosos em capelas e o studiolo, lugar de reflexão dedicado à identidade e à alteridade culturais, sob a tutela das musas e dos deuses, acolhendo desde a arte às cartas geográficas, passando por manuscritos e objectos exóticos (a famosa grotta de Isabelle d’Este, com mais de 1600 peças, é um excelente exemplo). História que continua, nos sécs. XVI e XVII, com os fascinantes “cabinets de curiosités” ou de “merveilles”, lugares de imóveis viagens, desejaram-se espelhos do mundo, à semelhança da velha e clássica literatura de viagens que se intitula como tal, lugares onde o sagrado (relíquias de santos), o lendário (o corno do unicórnio, p. ex.), o exótico (do Novo Mundo) e o remoto (da Antiguidade Clássica) coexistiam em harmonia, sobrelotando divisões e armários-expositores com gavetas encenando o grande continente que é o mundo. Uma cultura da curiosidade privatizando o universal através de operações intelectivas que a Retórica explica (a selecção, a miniaturização, a sinédoque, a representação e o símbolo). História que, nos sécs. XVIII e XIX, sob o impacto do racionalismo enciclopedista, vê o privado ceder ao público e ao comunitário, o heterogéneo dar lugar ao especializado e o fantástico, ao representativo, oferecendo-se em museus que se multiplicam até hoje combinando arte e ciência, paixão e disciplina, intuição e saber . Como o dedicado a Miguel Barbosa.
Gesto sonhado no vestígio de outrora que assim prolonga entre pintura e caligrafia, emergindo do negro e derramando-se na cor, gerando peças de diversas museologias. Tudo pegadas que a vida (humana, animal, vegetal, mineral) foi deixando para memória futura, construindo a sua cripta e potenciando nela o seu despertar sob o beijo de alguém por vir, à semelhança da Bela Adormecida dos nossos sonhos…
 

*
 

Como um poema, uma peça de colecção ou uma pegada de dinossáurio, Lisboa, seu lugar, alonga-se à beira-água, nela se mirando Miguel Barbosa.
Lisboa da Janela dos meus Olhos (1997). Das janelas de outros olhos também, garrettianos, queirosianos, cesáricos, etc., vertida em políptico progressivamente anoitecido (até num mesmo livro, como é o de Cesário, onde surge a diferentes horas do dia em jeito de série impressionista) tecendo a linhagem estética que o inscreve em si.
‘Cidade de água’ , elemento nuclear do “rosto” da Europa ‘jazente’ (Pessoa), “Onde a terra se acaba e o mar começa” (Camões), projectando-se reflexivamente no espelho líquido e ondulante que a cerca e atravessa, cenário de um velho e metamórfico motivo ao espelho que Narciso e Vénus protagonizaram na mitologia e que a Literatura Portuguesa verte em letra e mágoa. Colectivas:
“Nas colinas
dos teus amantes
Lisboa
há restos de caravelas
bolhas de ar
dos sonhos
que rebentam
em gritos
das cruzadas
em que te perdeste
e no silêncio
dos teus bairros
decadentes
há a dignidade
de um trapo
de sol
renascendo
roto
numa janela
florida”

Mas também individuais, numa identidade biografada em ciclo que estrutura o livro desde a dedicatória (“Abri os olhos e a cidade entrou.”) até ao testamento do poema XXXIII, capicua sugerindo a coincidência entre início e final, nascimento e morte, ciclo serpenteante como a mancha do poema busca sugerir, evocando o deslizamento sinuoso da lágrima pela face:
“Quando eu morrer
levo comigo
o Tejo
reflectido
numa última lágrima
de saudade”

Inclinado sobre a folha-água, Miguel Barbosa reflecte-se e deixa refractar nela o que o excede, protagonizando um gesto de tantos antecessores, linhagem que foi tingindo de mágoa e pranto as sobrimpressões configuradoras da Arte.
Fá-lo em marca d’água, sob a velatura do símbolo, da sinédoque e da metonímia, esboçando um itinerário estético nesse de timbre agónico que atravessa, também a tracejado, a própria Arte nacional ou outra que com ela partilhe a identidade ocidental, conformando-se desde Homero, frente ao mar, unificada pela interdiscursividade (memória, continuidade e metamorfose), fundando indivíduo, país e Arte.
E Miguel Barbosa protagoniza o acto criativo na rigorosa confluência de práticas e de saberes, rodeado de insígnias da Arte e da Ciência, sondando-lhes as equivalências, imaginando-lhes a nexologia e ponderando a tradição através dos seus símbolos maiores, dos seus mitos e das suas vivências mais marcantes (episódios, sentimentos, etc.). Numa interdiscursividade que é escorrência da mão e encenada no gesto.
Nesse lugar, foz de múltiplos rios e afluentes, Miguel Barbosa lembra o anjo da Melancolia (1514), de Albrecht Dürer, auto-representação do pintor enquanto artista dotada de complexo simbolismo, que Cèzanne evoca em O Sonho do Poeta (1858-60) ou Mário Eloy em O Poeta e o Anjo (c. 1938), e representada depois, p. ex., em Demócrito em Meditação (c. 1650), de Salvador Rosa, na Melancolia (c. 1660) de Giovanni Benedetto, no Retrato do Poeta James Thomson com a Melancolia de Dürer por trás (1932) de James McBey, no desenho misterioso de 1935, de Picasso, autêntica malha de evocações , tema cuja importância justificou um dos dezasseis núcleos da exposição Diferença e Conflito: O século XX nas colecções do Museu do Chiado (2004), "Da Melancolia" (com as suas representações por Mário Eloy, Nikias Skapinakis ou João Tabarra, destacando Aparelho Metafísico de Meditação, de 1935, de António Pedro, considerada a única obra dadaísta portuguesa). Figura que Rafael senta em primeiro plano n’A Escola de Atenas (na Sala da Assinatura do Vaticano), representando Miguel Ângelo no melancólico e solitário Heraclito, fundindo Arte e Filosofia. Figura do Desterrado (1872-74), de Soares dos Reis, ou do antigo Pensador, reelaborado por outros (como Rodin, em 1880-1904) , que Munch senta em finisterra crepuscular na sua Melancolia (Anoitecer) (1896), contraponto da que Huysmans erguera, “rayonnante”, “sereine et calme” entre inúmeras obras de arte em À Rebours (1884), surpreendendo des Esseintes e, através dele, toda a posteridade. Figura dominada por uma lúcida consciência da efemeridade de tudo que subsiste na arte, evidenciada em O tempo mostrando as ruínas que provoca e as obras-primas que deixa descobrir em seguida (1822) por Jean-Baptiste Mauzaisse, que lhe sublinha o trabalho transformador, consagrada em Clepsidra (1920), tematizada pictoricamente por António Dacosta em Melancolia (1942) e, na literatura, por Vasco Graça Moura em Instrumentos para a Melancolia (1980). Melancolia irmanada por Munch ao finissecular e explosivo O Grito (1893), que, subsumindo em si o canto-choro transversal à Literatura, desfalecerá na regiana “Melancolia” (Biografia, 1929) e irromperá no igualmente regiano “Grito” (em "Vocação" de Biografia, 1929), ou no de Afonso Duarte, ou no Howl (1956) de Allen Ginsberg e se fragmentará no Grito (1997) agónico com Rui Nunes, para apenas referir alguns exemplos. Melancolia sobre a qual Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e tantos outros escreveram. Melancolia cuja dimensão estética Silvius Leopold Weiss (1686-1750) celebrou musicalmente em Ars Melancholia e, recentemente, Pascal Dusapin (n. 1955) e Jean-Luc Fafchamps (n. 1960) em La Melancholia (1991) e Melancholia si... (2002), respectivamente. Melancolia ecoando e laicizando a pietà que domina o imaginário ocidental, cristalizada em iconografia religiosa e vertida em lacrimosa música, final de inconcluído requiem de uma sociedade pelo que em si morre . Melancolia dolorosa materializada na face crística que enluta o sentimento ocidental e simbolizada na Verónica, relíquia maior com as insígnias do sofrimento. Melancolia que o Maneirismo europeu faz emergir do sentimento de crise de identidade expressa na ambiguidade, no serpentinato, na stravaganza, na solidão e no notturno . Melancolia que a contemporaneidade tem explorado, como o denuncia a sua múltipla tematização no cinema mundial por Arvid E Gillstrom (Melancholy Dame, 1928), Kim Chun (A Melancholy Melody, 1952), Wui Ng (Autumn Melancholy, 1962), Jan Nemec (Necklace of Melancholy, 1968), Rafael Moreno (Las Alba Melancolicas,1971), Mike Newell (Wessex Tales: The Melancholy Hussar, 1973), Ernie Damen e outros (Melancholy Tales, 1975), Andi Engel (Melancholia, 1989), Boris Savchenko (Melancholic Waltz, 1990), Hongo Mitsuru (Spirit of Wonder: Miss China's Melancholy, 1992), Brian Rowe (The Melancholy Death of Oyster Boy, 1999), Sam Meikle (Melancholy, 2001), etc..

*
 

… e de tudo isso nos deixa crónica, em incipit textual anelante de nós:

“Comecei por desenhar uma palavra que exprimisse o ser que de amor me possuía. Mais tarde escrevia desenhos e desenhava poemas a partir do meu sentir como se fosse para mim uma posse de amor. Às vezes a desilusão, a tristeza ou a solidão levavam-se à ideia, à frase e ao desenho que nela se completava. Por fim abandonei, melhor exprapolei todas as minhas dúvidas e medos libertando-as pelo espaço da cor, como que subjectivando na tela o meu desejo de me encontrar com alguém no poema.” (ASPMB, p. 11)

 
 

Annabela Rita (n. 1958). Doutorada em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela Universidade de Lisboa, em cuja Faculdade de Letras é professora. Integrou a MRPB - Missão para o Relatório sobre o Processo de Bolonha (2003-04) e, actualmente, é Conselheira para a Igualdade de Oportunidades do MCTES. Directora do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa, investigadora do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira (Universidade Católica Portuguesa) da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, coordenadora de um projecto do Centro de Estudos de Culturas Lusófonas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, membro da Direcção da Associação Portuguesa de Tradutores, do P.E.N. Clube Português, da Associação Portuguesa de Críticos Literários, etc., além de integrar os Conselhos Consultivos da Fundação Marquês de Pombal e do Instituto de Cultura Europeia e Atlântica, tem colaboração ensaística dispersa em periódicos e obras colectivas da especialidade em Portugal e no estrangeiro. As suas principais publicações: Eça de Queirós Cronista. Do “Distrito de Évora” (1867) às “Farpas” (1871-72), Lisboa, Cosmos, 1998; No Fundo dos Espelhos. Incursões na Cena Literária (vol. I), Porto, Edições Caixotim, 2003; Labirinto Sensível (em co-autoria com Casimiro de Brito), Lisboa, Roma Editora, 2003; Breves & Longas no País das Maravilhas, Lisboa, Roma Editora, 2004; O Mito do Marquês de Pombal (em co-autoria com José Eduardo Franco), Lisboa, Prefácio, 2004; Emergências Estéticas, Lisboa, Roma Editora, 2005 (a sair); No Fundo dos Espelhos. Em Visita, Porto, Edições Caixotim, 2005 (a sair). Tem a direcção de três colecções literárias: “Obras de Almeida Garrett” (Edições Caixotim), “Faces de Vénus” e “Faces de Penélope” (Roma Editora).