<Língua das aves e linguagem do brasão

Língua das aves e linguagem do brasão
RICHARD KHAITZINE


Introdução 

O poeta Gérard de Nerval, que sabia muito de cabala fonética, escrevia, a propósito da arte heráldica: "O conhecimento do brasão é a chave da História de França". Melhor do que isso, ela é a chave da História europeia. O erudito Granier de Cassagnac, por seu turno, verifica: "O brasão é a língua mais vasta, mais rica e mais difícil de todas: uma língua rigorosa e magnífica, com a sua sintaxe, a sua gramática, a sua ortografia".

Tratando-se embora de uma ciência antiga, a arte do brasão floriu verdadeiramente na Idade Média, quando, apeados das tabuletas comerciais, os símbolos que formavam trocadilhos e charadas, facilmente compreendidos mesmo pelos analfabetos, vieram ornar os escudos da cavalaria e da aristocracia. Esta arte da charada disseminou-se igualmente pelas oficinas em que se caligrafavam os manuscritos; estes veiculavam por vezes, sob a letra do texto, confidências bem estranhas, ou mesmo ensinamentos de carácter esotérico. Assim, os escribas encarregados da execução de iluminuras atribuíam à letra S o sentido de "secreto" ou de "silêncio". O já evocado Gérard de Nerval sabia-o bem. Por isso, o leitor sagaz pode espantar-se com a insistência com que o poeta atrai a atenção do leitor para as suas "gralhas". Gérard de Nerval "erra" e não perde uma oportunidade de o dar a conhecer aos leitores. Devemos relacionar este facto com com uma "gralha" singular que o leva a escrever "bièrre" com duplo R em vez de um só. Este piscar de olho humorístico destinava-se a sublinhar que a letra R, feita a traço muito fino em certos manuscritos, devia ler-se "R étique" ou "R mince" e, por consequência, sugeria a palavra "hérétiques", aplicada aos detentores do conhecimento por excelência, visados pelas perseguições, quer dizer, os Gnósticos. Foi neste meio que encontrou refúgio, no seio das diversas sociedades inicáticas – corporações, ordens, maçonarias da floresta tal como da pedra, e mesmo certas ordens religiosas – e se propagou a arte hermética.

 

O brasão do ponto de vista etimológico

 

A maior parte dos historiadores, tal como os dicionários, pretendem que o termo brasão deriva da antiga função dos arautos, encarregados de anunciar a entrada em liça dos cavaleiros, durante os torneios. O arauto reconhecia os participantes pelas cores e tocava a trombeta. Em consequência, brasão seria uma abreviatura de blasonar ou brasonar, no sentido de bem sonante. A explicação é sumária e pouco credível. Na realidade, o termo brasão provém do grego blaisos, referindo alguém não se exprime com clareza, que gagueja ou ceceia. Tal é, de resto, o caso das armas falantes, também chamadas cantantes, as quais se lêem por assonâncias, e quase fonéticas. Se os mencionados brasões se chamam cantantes é por se exprimirem na língua das aves, quer dizer, pelo modo oblíquo dessa cabala fonética, revelada no século XIX pelo erudito Grasset d'Orcet, e que motivou consequentes comentários do alquimista conhecido pelo pseudónimo de Fulcanelli. A esta cabala fonética recorreram os maiores autores: Luciano de Samosata, Ovídio (cujas Metamorfoses devem ser ouvidas como sendo do Ovo - ou ovídio - alquímico), Dante, Shakespeare, Bacon, Cervantes, Rabelais, Villon, Cyrano de Bergerac, Alfred Jarry, Raymond Roussel, Maurice Leblanc, Gaston Leroux, Júlio Verne, Xavier de Montépin, entre os escritores populares, e muitos outros. O mais recente de todos foi Georges Perec. Também André Breton apreciou a cabala fonética. Grande admirador de Raymond Roussel, num breve texto que lhe consagrou (menos de trinta páginas), intitulado "Fronton Virage", Breton cita nada menos que dezassete vezes, de forma directa ou indirecta, o nome de Fulcanelli e os seus  dois títulos. Posto isto, surpreende que este texto esteja singularmente ausente da maior parte das bibliografias e das antologias consagradas ao líder do Movimento Surrealista. De qualquer modo, isto não é mais estranho do que a mutilação voluntária de que acaba de ser vítima o título do segundo Ubu de Jarry, recentemente reeditado. "Ubu Cocu" (Ubu Cuco, o que usa cornos... ou crescentes lunares) subintitulava-se, nas edições anteriores: "Pièce alquémique". Esta menção, bem sugestiva, volatilizou-se como o Mercúrio dos filósofos, sem dúvida por vontade de algum espírito que ninguém qualificaria de saudável. 

Para voltar à etimologia da palavra blason, o que acerca disso afirmámos parece corroborado pela existência de três vocábulos franceses, caídos em desuso: blaiser, blaisement e blésité. Todos eles exprimem a noção de ceceios, e por conseguinte a dificuldade em se fazer compreender. É provável também que blaiser  tenha fornecido por deformação a palavra biaiser  (enviesar). Ora biaiser ou enviesar, literalmente, é couper dans le biais ou cortar em viés. Uma antiga canção, ligeiramente atrevida, parece lembrar-se disso ao pôr em cena uma jovem costureira que afirmava algo que pode prestar-se a equívocos:

Sou mãozinha em casa de Paquin,

Envieso da noite à manhã...

 

(Je suis petite main chez Paquin,

Je biaise du soir au matin...)

A língua das aves é por vezes definida como sendo a palavra cortada, ou ainda a palavra que corta, isto é, uma linguagem indirecta, que nunca adopta a linha recta, que usa torneios para só ser entendida por alguns... os iniciados. Bléser (ciciar) equivale a falar como S. Brásio (Saint Blaise), o que nos traz algumas surpresas. Falar à maneira de S. Brásio é silvar as palavras, como fazem os habitantes da Auvergne e da Picardia. Ora a língua das aves desenvolveu-se enormemente nestas duas regiões. Já todos ouviram falar dos trocadilhos da Picardia. S. Brásio era patrono dos pedreiros, dos talhadores da Pedra, dos sapateiros, dos entalhadores e operários da construção. Invocavam-no além disso para obter a cura dos males de garganta, órgão da Palavra. A lenda pretende que ele curou, por imposição das mãos, um adolescente meio sufocado por uma espinha de peixe que lhe tinha ficado entalada na garganta. A anedota dá a entender que o paciente se tornara áfono. Esta precisão evoca irresistivelmente um estranho verso de Raymond Roussel: "Pour un pauvre O d'aphone" (... um pobre O de áfono). Entenda-se que este O de áfono é mudo ou sem som, expressão que joga foneticamente com a personagem bíblica de Sansão, que ficou cego e por isso teria tido grande dificulde em ler. Mas não é isso o que o ensino universitário hoje fabrica em série? - cegos, pessoas que, mesmo se por milagre, conseguissem ler, não teriam a compreensão dos textos, porque tomam a letra pelo espírito. Acrescentar a cegueira à surdez é o cúmulo! Este O mudo ou áfono, muet, ainda consegue evoluir: pode ser endendido como mué (mudado), quer dizer, O transformável por acrescento de traços que lhe dêem diversas significações em matéria de simbolismo alquímico. Enfim, os mais desconfiados poderão encarar essa hipótese, pois Raymond Roussel esclarece que se trata de um O em losango, estilo buril, uma marca oficial. E porque não aquela que se encontra gravada sobre o ouro legal? Foi por a ter omitido, que a um alquimista, no início do século XX, lhe confiscaram 76 quilos da produção própria, que tinha tido a imprudência e a ingenuidade de querer negociar junto da Casa da Moeda de Paris. Voltaremos a este assunto mais tarde.

Relativamente a S. Brásio, o seu nome vem de Blatius: o que debita mentiras. François Rabelais sabia-o bem, pois faz dizer a uma das suas personagens: "Debitorius ce ne sont que des sornettes". Esta frase significa: "debitar patranhas ou aldrabices". Entretanto, o lanternês do Senhor Rabelais não é mais do que a língua das aves, e a palavra lanternois ou lanternês deriva do latim lanterina, forma de laterina, isto é, a Maçonaria, a palavra dissimulada. Ora, como todos sabem, os irmãos maçons procuram a Palavra Perdida. O latim laterina fica próximo de latrina, ou retrete, local retirado, onde se fica a sós, em segredo. Este significado confirma-se pelo grego lathra, que quer dizer  secreto, escondido, algo que se faz clandestinamente, o que se aplica às reuniões de iniciados. Acerca deste assunto misterioso, que gira em torno do W.C., o meu livro consagrado à língua das aves estabelecia o elo entre os evocados por Raymond Roussel no fundo "de um certo corredor" e a sala, situada ao fundo do corredor, mencionada por Georges Perec em "La Vie Mode d'Emploi".

Segundo Jacques de Voragine, na "Légende Dorée" (aurea legenda: o que deve ser lido), S. Brásio era alimentado pelas aves. Não se pode ser mais exacto para dar a entender que estamos na presença da cabala fonética. A lenda conta, além disso, que mulheres com pressa de adorar deuses pagãos pediram que esses deuses fossem levados para o tanque, a fim de serem lavados, e que lançaram as suas estátuas para o meio da água.

Isto não deixa de lembrar a injunção dos mestres alquimistas: "Blanchis Latone" e as múltiplas alusões à suas lixívias. Tanto mais que a lenda informa que estas mulheres foram martirizadas com pentes de ferro e que, em vez de sangue, o seu corpo libertou leite. Na mesma ordem de ideias, Brásio foi lançado à água; traçou então o sinal da cruz sobre a onda, que endureceu como terra.  Mal está velada a alusão ao volátil tornado fixo. De seguida, Brásio foi martirizado. A água transformada em terra sugere bem o banho mercurial entregando o embrião de enxofre (soufre), ou seja, S. Brásio que sofre (souffre) o martírio.

 O brasão deu origem à peça de vestuário chamada "blazer", cuja etimologia os dicionários remetem para o inglês "to blaze": flamejante. Não se vê, a priori, a relação existente entre este adjectivo e um casaco ornado com um brasão. Em contrapartida, o facto de um blazer comportar um brasão que identifica um nome de família, uma escola ou clube, parece indicar que é preciso buscar-lhe a origem no argot: a palavra blaze significa o nome. O antigo francês blois, designando o gago (bègue), tem a mesma etimologia que bléser (ciciar) e seus derivados. Foi esta palavra que serviu para nomear a cidade de Blois, capital dos Valois, em França. É interessante notar que a letra L, sempre associada ao brasão pelos heraldistas, é igualmente, segundo Fulcanelli, a marca aposta ao Ouro alquímico! Para acabar com S. Brásio, e a fim de ser completo, sublinhemos que no seio do ciclo arturiano (textos herméticos) o cronista de Merlin se chama Blaise.

  

Quando a Heráldica fornece o nome do 
Conde de Saint-Germain  

Que o brasão seja a chave da história da França e da Europa verifica-se adaptando-o a uma das fechaduras mais hermeticamente cerradas do século XVIII. Se existe personagem que fez correr rios de tinta, e sobre cuja identidade os historiadores se perderam em conjecturas, essa personagem é o enigmático Conde de Saint-Germain. A despeito das pesquisas, o seu estado civil permanece desconhecido. Isto é tanto mais paradoxal quanto nós temos as suas armas, que são falantes, e permitem, usando um mínimo de reflexão, descobrir o nome do seu proprietário.  O brasão em causa apresenta um campo de goles cinturado por uma faixa do escudo, de ouro. Como a faixa do escudo é a peça ou partição mais honrosa de todas, estamos certos de que o titular do mencionado brasão foi um nobre de nascimento legítimo, por conseguinte esta peça desmente a bastardia.

O campo de um brasão assemelha-se a um céu, no qual as peças ou partições equivalem a planetas. De outro lado, a faixa do escudo corta o céu pelo meio, o que nos autoriza a ler: De Medina Celi ou Coeli. Pessoalmente, veríamos aqui o nome de uma célebre família de Madrid. De resto, esta hipótese recorta em parte as conclusões de Paul Chacornac, o erudito livreiro autor de uma biografia muito bem documentada, que pensava que o Conde de Saint-Germain era filho do Almirante de Castela, décimo-primeiro deste nome: Jean Thomas Enriquez de Cabrera, duque de Rioseco, conde de Melgar. A mencionada família era duas vezes aliada da Casa de França, primeiro através de Ana de Áustria, filha de Filipe III, esposa de Luís XIII, e sexta neta de Frederico da Transtâmara, primeiro Almirante de Castela; em seguida, através de Anne-Marie-Thérèse de Áustria, filha de Filipe IV, casada com Luís XIV e sétima neta deste mesmo Almirante.

O pai de Jean-Thomas Enriquez, Jean Gaspard Enriques, estava aliado aos Médicis pelo seu casamento com Elvira de Toledo-Ossorio. Com efeito, Eleonora de Toledo, filha de Fernando-Alvarez de Toledo, o famoso duque de Alba, vice-rei de Nápoles, casou com Cosme I de Médicis em 1539. O último Almirante estava unido aos reis de Espanha, de Portugal, aos Imperadores da Alemanha, à Casa de França e aos Médicis. No que diz respeito a Portugal, esta afirmação explica-se pelos factos seguintes. O Almirante descendia em linha directa e masculina de Afonso XI de Castela, filho de Fernando IV e de Constança de Portugal. Afonso XI casou com Maria, filha de Afonso IV, rei de Portugal. Teve dela dois filhos: Fernando e Pedro o Cru. Da sua amante, Eleonora de  Guzman, teve dois gémeos, Henrique e Fernando de Transtâmara. Frederico, grão-mestre da Ordem de Santiago da Espada, foi massacrado em Sevilha pelos sectários de Pedro o Cru. Os Almirantes provêm de Frederico. Por consequência, os Almirantes descendiam de Fernando IV pelo seu filho Afonso XI. Foi este ramo que desapossou os Infantes de la Cerda, descendentes de Afonso X.

Afonso X, La Cerda e os Medina-Coeli

  Afonso X, o Sábio (n. 1221, Toledo; m. 1284, Sevilha), foi rei de Castela e Leão (1254-1284) e imperador germânico (1267-1272). Autor de uma obra cultural importante, resumindo as correntes cristã, árabe e judaica da civilização espanhola do século XIII, é considerado o fundador da língua nacional, o castelhano. Escritor e poeta, astrólogo e jurista, interessou-se também pela alquimia. Devem-se-lhe as Tábuas Afonsinas.

Foi Sancho IV, irmão de Fernando, quem espoliou os herdeiros de Afonso X. Afonso XI, pelo seu filho Frederico de Transtâmara e pelo seu neto, segundo almirante de Castela, foi o tronco do qual brotou "Joana a Louca", mãe de Carlos V. Reencontram-se nesta linhagem, por casamentos, os condes de Foix e a mãe de Henri d'Albret, antepassado de Henrique IV, futuro rei de França.

 Quanto aos Infantes de la Cerda, ramo espoliado e herdeiro legítimo do trono de que foi expulso Afonso X, é o ramo de que nasceu a família dos Medina-Coeli ou Celli. Em 1663, o último almirante casou com Anne Catherine de la Cerda, filha de Louis-François, sétimo duque de Medina Coeli. O duque pertencia à segunda raça saída de um bastardo de Gaston Phoébus, conde de Foix, que tinha casado com a herdeira de la Cerda. Pelo casamento do último almirante, os descendentes do ramo espoliado e os que pertenciam à linha espoliadora encontraram-se assim unidos.

O Conde de Melgar, último almirante, teve uma vida fértil em ressaltos e fez brilhante carreira. Foi ele quem opôs corajosa resistência à França, aquando da renúncia de Casal, capitão do Montferrat. Foi no curso deste episódio histórico que um agente do duque de Mântua, Mattioli, desempenhou importante papel. Neste mesmo Mattioli alguns historiadores vêem o célebre Máscara de Ferro. Ao almirante, muito afortunado, deram a alcunha de "Banqueiro de Madrid". Em 1697, morreu a sua mulher. Voltou a casar, com a filha do oitavo duque de Medina-Coeli, também ela chamada Anne-Catherine. Esta morreu em 1698. Segundo certas fontes, o almirante teria lançado os olhos a Anne-Marie de Neubourg, mulher de Carlos II, rei de Espanha. Após a morte do esposo, Anne-Marie de Neubourg teria cedido às suas propostas amorosas, delas resultando um filho: o futuro Conde de Saint-Germain. Já o dissemos, isto parece pouco provável, pois o brasão do conde atesta que ele era filho legítimo e não um bastardo... a menos que os dois amantes tivessem casado em segredo.

A personalidade de Anne-Marie de Neubourg deu lugar à criação de inúmeros mexericos. Alguns fizeram dela a mãe do Máscara de Ferro, outros pretendem que, no exílio em Bayona, deu à luz um filho do marquês de Montferrat. Ora nós sabemos igualmente que o almirante se ilustrou em Casals, capital do Montferrat, e que o conde de Saint-Germain usa por vezes este nome. Quanto à historieta, Anne-Marie de Neubourg é posta em cena por Victor Hugo, em "Ruy Blas", peça que os historiadores julgam inverosímil. Talvez! Mas porque é que Hugo, que dizia que "as armas são os hieroglifos da feudalidade", chamou "Blas" (Brás) ao seu herói, nome que evoca o blason (brasão)? Não se trataria de uma obra à clés? Ruy parece raiz de ruído, som, o que daria "Blas-son".
 

Acerca da identidade
do Conde de Saint-Germain

Se a nossa hipótese de trabalho, no que diz respeito ao brasão, e salientado o nome Medina-Coeli, é correcta, então Saint-Germain era filho do almirante e de uma das suas duas esposas. Se tal foi o caso, após a queda do almirante seu pai, e da morte deste, em 1705, foi sem dúvida recolhido por uma família aliada. Se nasceu da segunda esposa, prematuramente falecida (talvez de parto), em 1698, tinha de facto 7 anos quando morreu o almirante, conforme o que contava de si mesmo, dando a entender que descendia de uma nobre família de Espanha... na realidade, de duas famílias. E a origem dos seus pais explicaria por que motivo Luís XV o tratava por "Meu Primo". Para mais, a genealogia, do lado materno, quer dizer, dos Medina-Coeli, informa que Beatriz, a filha de Afonso X, o Sábio, foi a esposa de Guilherme VII, marquês de Montferrat. Quanto ao seu filho, João, senhor de Valência, veio a ser marido de Margarida de Montferrat. Por consequência, o Conde de Saint-Germain teria usado o nome de alguns dos seus ascendentes.

Segundo o seu amigo, o barão de Gleichen, o futuro Conde encontrou refúgio na corte de Jean-Gastón de Médicis, em Florença. Este último, muito versado nas ciências, falava várias línguas (toscano, latim, inglês, alemão, boémio, francês, espanhol e turco) e era também excelente músico. Graças ao seu pai, Cosme III, Jean-Gastón tinha sido o primeiro a tentar experiências sobre a natureza do diamante, com a ajuda do espelho ardente, sob a direcção do físico Targioni. Ora já vimos que existiam laços familiares entre o almirante e os Médicis. Tudo isto explicaria perfeitamente as aquisições culturais do Conde de Saint-Germain.

Entretanto, a família dos Medina-Coeli esteve envolvida num embróglio histórico, relacionado com a história da monarquia francesa, como vamos ver.
 

Após a espoliação dos Infantes de la Cerda,
a espoliação dos Valois

  Com a morte de Henrique III, a coroa passou para Henrique de Navarra, cuja família já vimos que descendia daquela que tinha espoliado os herdeiros de Afonso X. Em França, no século XVI, bis repetita... Com efeito, Catarina de Médicis, além dos filhos varões que governaram, teve um quarto filho: François, duque d' Anjou, que os historiadores alegam ter morrido sem herdeiro. Esta afirmação é falsa! D'Anjou tinha casado, a 12 de Abril de 1575, com Jeanne-Adélaïde, duquesa de... Medina-Coeli! Até parece que a história balbucia, como o brasão. Deste casamento nasceu Philippe-François de Valois, duque d'Anjou e d'Alençon, que se casou em 1621 com Marie-Anne, duquesa d'Arcas. Philippe-François não teria podido fazer valer os seus direitos à coroa de França em tempo oportuno. Confrontados com o perigo, os descendentes ocultaram-se e a linhagem desembocou, no século XIX, em Pierre Dujols... de Valois, livreiro erudito, grande amigo de Fulcanelli, que estudou largamente as suas fichas relativas à história. Em 1879, em Marselha, Antoine Dujols, irmão mais velho de Pierre, publicou um opúsculo: "Valois contra Bourbons", em que refutava provas em apoio das pretensões do Conde de Chambord.

Compreende-se agora melhor que Fulcanelli tenha tido Dujols em alta estima. Não era por pertencer aos Valois, facto de que troçava enormemente na sua qualidade de libertário, sim porque sabia que o Conde de Saint-Germain era um dos seus antepassados. Isto leva-nos a analisar o brasão do evanescente Fulcanelli.

 

A solução do escudo final

  Este escudo é "De goles em Campo de ouro e com hipocampo levantado de prata (ou branco) sobrepujado por um elmo com lambrequins". Sob o escudo, um filactério (símbolo de segredo esotérico e hermético) com a divisa "Ober Campa Agna" - "por cima do campo" - significando isto que o nome se lê por cima do terço inferior do escudo. Aqui, o "Campo" representa o banho (ou água) mercurial que dá o embrião do "Enxofre". Este enxofre está figurado no hipocampo. O hipocampo, virado à dextra para um observador externo, mas virado à  sinistra quando impresso, é prata ou AUBER, em linguagem heráldica, e mostra a forma característica da letra J. A charada lê-se J-AUBER ou JAUBER. Este nome é confirmado por OBER, que figura no filactério; unido ao J, dá JOBER. Resta encontrar o primeiro nome. O próprio Fulcanelli indica maliciosamente a solução. Com efeito, na página 314 das "Demeures"[1], ele evoca o peixe de Abril, o peixe místico, objecto de mistificações, e relaciona a sua tradição com o mercureau, "pequeno mercúrio" ou ainda com o maquereau (duplo sentido: cavala, peixe; e malandro, chulo). Acrescenta que este maquereau "serve ainda... para mascarar a personalidade do expedidor".

Além de este "mercure-eau" ser "l'eau-mercure" (água mercurial), o maquereau fornece-nos um primeiro nome. Sabendo nós que no calão do século XIX o maquereau designava também, numa acepção precisa, o chulo ou ainda "un Alphonse" (um Afonso), ficamos assim na posse de uma identidade completa, a de Alphonse Jobert, figura pitoresca do princípio do século, cujo curso de Alquimia já publicámos, e que foi muito falado em 1905-1906. Numa entrevista concedida a André Ibels (notável libertário que frequentava com os seus irmãos o botequim Chat Noir, fundado por Fulcanelli e seus amigos), reproduzida pelo jornal "Je Sais Tout", de 15 de Setembro de 1905, foi Jobert quem contou a anedota do confiante alquimista a quem a Casa da Moeda de Paris confiscou 76 quilos de ouro alquímico. É provável que este alquimista fosse o próprio Jobert. Curiosamente, a mesma anedota foi referida na sua hipotipose ao "Mutus Liber", por Magophon, quer dizer, por Pierre Dujols de Valois.

Alphonse Jobert

O Dr. Jobert é o mais convencido, o mais persistente "fabricante de ouro" da nossa época. Incansável, dedica-se a novos trabalhos, a experiências inéditas no seu laboratório de alquimista, repleto de toda a espécie de instrumentos.


De notar que o brasão comporta uma gramínea que podemos identificar com a Orge (cevada). Na Cabala, "orge" equivale a "Or j'ai" (ouro tenho). A cevada tinha substituído o culto do carvalho no Peloponeso e relacionava-se com as festas de Cronos. Ambos os cultos se ligavam à imortalidade.

Relativamente à identificação de Alphonse Jobert com Fulcanelli, a nossa hipótese é em particular confirmada pelas confidências de Raymond Roussel. Sabemos que no seu "Comment j'ai écrit certains de mes livres" menciona o seu ex-professor de ciências sob o transparente pseudónimo de "Volcan". Neste mesmo livro, a pretexto de dar as chaves do seu processo literário (a Língua das Aves), Roussel fornece diversos exemplos, mas omite conscientemente os desenvolvimentos de certas derivações sinonímicas. Assim, em "Parmi les noirs", é necessário traduzir o narrador (explorador prisioneiro dos negros) por um J ou Je (Eu) branco/alvo (ou auber) = Jeaubert.

As casas com chaves[2] evocam a dinastia espanhola, a de Afonso X. O "tear de alvas"[3] traduz-se por JOB-ERE e Roussel duplica-o com "um engenho para tecer alvas, instalado sobre o Tez" ou JOB-AIRE (redondo, roda ou alva) e T. "Soalho com cavilhas de pé e  chão de clavículas"[4] mascaram respectivamente: J (tem a forma de tacha com pé e Gaston Leroux lembrou-se disto para o "Pied gauche" do cadáver da rua Oberkampf) e câmara de corretores da bolsa, os que manipulam o dinheiro (prata) ou AUBER. Os turbilhões ou castelos  no ar[5]  do palhaço relacionam-se com a mesma charada: Métier (Job) - torre erguida (nos ares). Quanto a Chéri-Bibi (Moi J ou J), "impede as grandes cabeças de erguer os ombros", em calão "perder o tacho", mandar o job/emprego pelos ares.

No seu conto "Nanon", Roussel liga Fulcanelli a Jobert, ao mencionar as "ciganas (brincos) tornadas relíquias", as quais tilintam aos ouvidos dos leitores de Fulcanelli como o "asno de relíquias" da sua famosa diatribe contra os oficiais. O infeliz Sylvestre oferece ao narrador "um livro raro caído ao chão, intitulado Lágrimas de sangue". Esta charada refere uma planta perlada, "Lágrima de Job"; as desgraças de Job são conhecidas, por causa delas também Job verteu lágrimas de sangue; quanto ao exemplar raro caído no chão, sugere uma terra folheada (livro e suas folhas) rara: Ernina ou Erbium, de símbolo químico ER.

Poderíamos multiplicar os exemplos analisando quer Roussel quer Jarry, Maurice Leblanc, Gaston Leroux e Georges Perec. Todos conheciam a identidade do alquimista e fornecem-na sob a forma de charada. Acabaremos esta demonstração explicando porquê Raymond Roussel fazia tanta questão em explicar a sua técnica do mate[6] no  jogo do xadrez mediante o Bispo[7] e o cavalo[8]. Roussel fala de uma "estratégia cooperativa" e de "método", o que, transposto, se destina a evocar os trabalhos com o seu Mestre (o Cavaleiro Branco), nos quais Roussel se reserva o papel do Louco[9] (literário). Segundo Roussel, todo o segredo deste xeque-mate reside no facto de pôr o Cavaleiro em posição cedilha do Louco, ou, dito de outra maneira, na casa inferior lateral relativamente ao Louco. Por conseguinte, o Cavaleiro ou Cavalo (Hippo) mantém-se "acampado" sob (Hipo) o Louco. Roussel assimila bem o seu Mestre ao Cavaleiro ou Hipocampo.


Hipocampo

Mas porque é que a demonstração de Roussel se fez a partir das peças brancas em vez das negras? Porque "branco" ou prata é igual a "Auber" e as duas peças formam, esquematicamente, a letra J. A charada, destinada a evocar o nome de Jobert, impunha que as peças fossem as brancas. Seria necessário também evocar outros desenvolvimentos. O Cavaleiro ou cavalo branco, por exemplo,  não se dá gratuitamente. Além de figurar nos escritos fulcanellianos, deve ser relacionado com Verax, o Cavaleiro branco do Apocalipse. Roussel dedicou a este Verax o seu poema "La Meule", sugerindo versos a X, e X indica um desconhecido e a letra J, décima do alfabeto.  Gaston Leroux fez figurar no seu "Fantasma da Ópera" um cavaleiro e um cavalo branco, jogando no D. Juan, escrito por Erik, o fantasma, uma obra de ressonâncias apocalípticas. Madame Erlanger, em "Voyages en kaleïdoscope", menciona uma carta da condessa Vera assinada com X. Poderemos falar de concidências? Assinalemos que se este livro fosse retirado à pressa das livrarias teria sido por conter uma indiscrição demasiado clara. Depois de ter evocado "pobres infelizes", Madame Erlanger cita esta passagem: "Todos restituirão segundo a sua substância", passagem retirada do "Livro de Job"!

Enfim, Georges Perec, no seu subtilíssimo "Desaparecimento", põe igualmente em cena um cavalo branco e um D. Juan, ligando esta personagem à frase latina "Sic transit Gloria Mundi", da qual Miguel Manara, por vezes confuso com D. Juan, retirou o título do quadro que mandou executar a Valdès Léal: "Finis Gloria Mundi". Segundo E. Canseliet, estas três palavras deviam constituir o título da 3ª obra de Fulcanelli. No capítulo 17º do seu já mencionado livro, Perec fala do aparecimento do filme falado, isto é, do "som", e depois, neste romance escrito sem a letra E, Perec refere um "bordj" que, em anagrama, provida a palavra do E faltoso, dá "Joberd". Ora, segundo certos autores, Alphonse Jobert era conhecido também sob o nome de "Dousson"[10].

A verdade é que Fulcanelli, tenha ou não sido Jobert, deixa vestígios da sua passagem e sucesso em Paris. No eixo do salão de honra da Câmara Municipal, figura um caixotão, posto após 1908, em que vemos um brasão singular. Sobre o escudo lápis-lazuli salienta-se um hipocampo de ouro. O brasão está ladeado por dois golfinhos e filactérios mudos. Por cima está uma coruja, símbolo dos filactérios mudos. Em heráldica, o lápis-lazúli simboliza o acesso à mestria cósmica, a unidade de si mesmo, as núpcias entre alma e espírito. Imaterial no seu princípio, o azul desmaterializa o ser e a coisa que recobre, ele permite reconhecer o elemento imutável através das mutações. Neste estádio, a individualidade humana decresce e desaparece para ceder o lugar à verdadeira personalidade, espiritual, no conhecimento perfeito que é o Ouro. Quanto ao ouro, simboliza a abolição definitiva do eu[11] corruptível que se reveste de incorruptibilidade. É a passagem dos Pequenos aos grandes mistérios, o homem deixa de ser uma alma viva para se tornar um espírito vivificador. Para aquele que atinge o estádio do Ouro, o tempo fica abolido, encontra-se no limiar da eternidade...

Por conseguinte, cada um é livre para acreditar ou não acreditar que este brasão foi aposto por Fulcanelli, para aceitar que Fulcanelli conseguiu ou não realizar a Obra... Resta que o brasão existe e atesta factos.

Brasão ou "escudo final" do Mestre, que figura na última página do "Mystère des Cathédrales", ed. J.J. PAUVERT, Paris, 1964.

 


Notas da tradução (M.E. Guedes)

[1] Obra traduzida em português : Fulcanelli, "As Mansões Filosofais". Edições 70, Lisboa.

[2] "maisons à espagnolettes", no original.

[3] Todo o texto que vem a seguir é de difícil tradução porque envolve trocadilhos, calão e procedimentos dos escritores surrealistas, para além de estar vinculado ao argot da heráldica. Métier, entre outros significados,  é ofício e máquina; aube, entre outros, é a alva, e alva a alvorada e um paramento sacerdotal branco. Como diz o autor, é também a prata=cor branca.

[4] "Parquet (plancher) à chevilles à pied et parquet (d'agent de change) à chevilles (de vers)", no original.

[5] "tour en billon". Billon tem vários significados, entre eles, moeda, dinheiro.

[6] Mat. O Mat é também o Louco, uma das lâminas do Tarot.

[7] Fou. 

[8] O cavalo é o cavalier, que se traduziria por cavaleiro. 

[9] Peça chamada "Bispo" mas que já sabemos corresponder ao Mat (Louco).

[10] "Do Som". 

[11] Moi. Há outra maneira de dizer "eu" em francês: "Je", de que se ocupou o autor.