AS RAÍZES ALQUÍMICAS DA MINERALOGIA
A. M. Galopim de Carvalho 


Vinda da antiguidade, com raízes na China, na Índia na Babilónia e no Egipto,  através da tradição e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos, a Mineralogia percorreu  toda a Idade Média, de mãos dadas com a Alquimia, tendo aí crescido bastante, deixando para trás muitas das concepções fantasistas e místicas dos escolásticos, até se tornar ciência, a par da química, a partir do século XVIII, fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu próprio aprofundamento como disciplina de acentuada organização sistemática.

A alquimia, nome que radica no grego chymeia, e que significa mistura, chegou à Europa trazida pelos árabes, seus cultores, que a transformaram em al kimia, ou pedra filosofal, expressão de um conceito carregado de sabedoria. Através do Egipto, a alquimia chegou à Grécia antiga onde ficaram célebres Hermes Trismegisto e Zózimo de Tebas. Em Roma teve protecção de Calígula e enfrentou a perseguição de Diocleciano devido aos abusos a que se entregou.

Na escola árabe antiga florescia a “polifarmácia”, actividade alquímica em que se queimava, sublimava, dissolvia, precipitava, na crença de que a maioria dos metais era composta de mercúrio e enxofre. À escola árabe se deve, por exemplo, o termo bórax, nome ainda em uso para referir um borato natural de sódio. Como acontece em qualquer domínio da actividade humana, cultural, técnica ou científica, os alquimistas não partiram do zero; tinham atrás deles um saber antigo que herdaram não só por via tradicional, veiculado por sucessivas gerações de prática mineira e metalúrgica, mas também por via erudita, através dos textos dos clássicos recuperados nas traduções que judeus e eles próprios fizeram.

Uns mais outros menos, os alquimistas “colocaram várias pedras” no vasto e complexo edifício do conhecimento mineralógico que temos ao nosso dispor. O legado que nos deixaram é algo que lhes devemos, e muito. E a maneira de saldarmos essa dívida é reconhecer-lhe a obra e procurar divulgá-la como património cultural, da mesma maneira que divulgamos as artes, as letras ou os feitos heróicos da História da humanidade.

Desde os tempos mais recuados que o mundo mineral despertou o interesse e a curiosidade humanas. A utilização intensiva de sílex, quartzo, calcedónia ou jade como matérias primas no fabrico de utensílios ou de objectos de adorno e votivos, demonstra que o homem pré-histórico os procurou sistematicamente e que, portanto, lhes dedicou tratamento racional, primitivo talvez, mas eficaz. Por outro lado, a sua condição humana permitiu-lhe acumular conhecimentos que foi legando aos descendentes ao longo de sucessivas gerações. Os pigmentos naturais à base de óxidos de ferro (os ocres vermelho e amarelo respectivamente, hematite e limonite) e de manganês (preto, pirolusite) e outros, usados nas pinturas rupestres do Paleolítico superior ou sobre os próprios corpos, mostra que os nossos antepassados pesquisaram e exploraram os respectivos minerais. O fabrico de objectos em ouro, bronze ou ferro revela, por outro lado, que as primeiras civilizações não só prospectaram e extraíram, como também transformaram os minerais correspondentes, numa actividade  tão importante que levou os historiadores a falar em idades da Pedra, do Cobre, do Bronze e do Ferro. Os Celtas e também os Babilónicos, de entre os quais surgiram os primeiros alquimistas, já praticavam a prospecção mineira e a metalurgia do ferro.

Na Antiguidade, Aristóteles (384-322 a. C.) dissertava sobre os “seus” quatro princípios ou elementos primordiais da natureza, ar, água, terra e fogo,1  ao mesmo tempo que produziu os primeiros escritos sobre objectos naturais inorgânicos, tendo designado por metalóides os minerais com aspecto metálico.  Teofrasto (372-287 a. C.), seu discípulo, escreveu um tratado sobre “As Pedras” e um outro sobre metais, minas e metalurgia, que se perdeu. A ele se deve a primeira classificação de minerais, que tinha por base a utilidade desses produtos naturais como minérios, pedras preciosas, pigmentos, etc., tendo descrito vários tipos de minerais, sobretudo gemas, e algumas rochas, utilizando para tal propriedades físicas, entre as quais, a densidade, o brilho, a fusibilidade e a dureza. Por essa altura já os gregos aplicavam o teste de avaliação da dureza relativa dos minerais, e esboçavam os primeiros cálculos de densidade, na sequência dos trabalhos de Arquimedes (287-212 a. C.). Por outro lado, a utilização de metais, como ouro, cobre, prata e ferro, permitia-lhe o conhecimento, ainda que empírico, daquelas propriedades físicas.

Mais tarde e no que toca à civilização romana, Plínio, o Velho, de seu nome Caius Plinius Secundus (23-79 d. C.), morto na histórica erupção do Vesúvio, ocupa lugar de destaque através da sua monumental História Natural em 37 volumes. Aí se encontram mais algumas descrições de minerais, em especial dos pigmentos, dos minérios e das gemas.

Na Idade Média o alquimista árabe Gabir Ibn Haiyan (721-803), mais conhecido por Geber, propôs uma classificação baseada em propriedades físicas observáveis ou determináveis. Segundo ele, as substâncias minerais repartiam-se por três grupos: “minerais quebradiços e pulverizáveis”, fusíveis ou não; “minerais metálicos”, fusíveis e maleáveis; e “minerais vaporizáveis” pelo fogo, a que chamou “espíritos”. Neste longo período da História, os árabes, que haviam assimilado as culturas helénica e indiana, progrediram, ao contrário dos povos da Europa cristã acorrentados aos dogmas da Sagrada Escritura, sob a vigilância constante e repressiva do poder da Igreja.

Avicena (Ibn-Sinã) que viveu entre 980 e 1037, outro árabe que fez história no panorama alquímico, propôs no seu Tratado das Pedras a primeira classificação a partir das características externas observáveis directamente, como a cor, a forma e o brilho, e das propriedades físicas determináveis, entre as quais, a fusibilidade. “Pedras e terras”, “minerais fusíveis e sulfurosos”, “metais” e “sais” foram algumas das divisões que estabeleceu.

Albertus Magnus, monge dominicano de nome Albert von Bollstadt    (1206-1280), interessou-se pelas rochas e pelos minerais, e, no livro que nos legou, De Rebus Metallicis et Mineralibus, este teólogo e grande alquimista do seu tempo, tido por muitos como mago e a que foi dado o nome de Doutor Universal,  tratou como minerais todo o tipo de pedras e os metais. Estudou as propriedades do enxofre e de muitos sais metálicos, além de que contribuiu para redescobrir Aristóteles através das traduções dos rabinos e árabes eruditos. Com efeito, após a queda do Império Romano do Ocidente, grande parte do conhecimento produzido e ensinado na Antiguidade, só sobreviveu, como já referimos, graças a essas traduções e a outras relativas a textos de saber alquímico, de babilónios e egípcios. Foi assim que a alquimia oriunda destes povos, bem como a Filosofia grega, reapareceram na Europa medieval. Foi a época dos Lapidários, assim se chamavam os livros, primeiro manuscritos e depois (a partir do século XV) impressos, no geral, pequenos, com algumas descrições ainda imprecisas das propriedades dos minerais e de outras pedras, plenos de alusões às suas qualidades medicinais e mágicas, de que o mais conhecido é o célebre De Gemminis, da autoria do bispo de Rennes, Marbode (1035-1123). Foi igualmente a época dos enciclopedistas árabes e cristãos, muito subordinados aos textos de Aristóteles, Teofrasto e Plínio, valiosas fontes de saber antigo ao dispor dos alquimistas.

No século XIII, o franciscano inglês Roger Bacon (1214-1292), que ficou conhecido por Doctor Mirabilis, interessou-se profundamente pelo conhecimento experimental, campo em que alcançou a celebridade. Apesar de condenar a magia, Bacon era tido por praticante dessa actividade oculta e, como tal, temido. A sua crença na alquimia foi compartilhada pelos sábios do seu tempo e as suas divergências face aos escolásticos focalizam-nas na separação entre a ciência e a teologia, atitude coincidente com a dos comentadores árabes de Aristótoles, entre os quais se distinguiu o filósofo do século XII, Averróis, nascido em Córdova. Ao tempo, entre os alquimistas, os minerais eram classificados em quatro grupos, “gemas”, “minerais”, “combustíveis” ou “flogistos” e “sais”, e a procura das suas qualidades com interesse em medicina fez crescer a alquimia, que evoluiu, acumulando conhecimentos e experiência até ao século XVIII, época em que começou a confundir-se com a Química Mineral, um estágio inicial da actual Química Inorgânica como ciência.

Na Idade Média acreditava-se na transmutação dos metais, o que deu lugar a experiências sem conta, numa busca desorganizada mas de que resultou um significativo avolumar de conhecimentos que, associados à prática dos metalurgistas, numa tradição cultural vinda da pré-história, permitiram avanços do conhecimento químico e mineralógico nem sempre suficientemente reconhecidos quando, simplisticamente, se fala em Idade das Trevas e do obscurantismo a ela associado. Não obstante a preponderância da escolástica e as restrições impostas à experimentação pelos dogmas da Igreja, os alquimistas ensaiaram e compreenderam muitas reacções químicas, conheceram novos sais e alguns elementos químicos como antimónio e o bismuto, cujas descobertas, em 1413, se devem  ao alquimista Basile Valentini.

Na Renascença, os grandes pensadores defendiam os métodos experimentais na química e, consequentemente, na mineralogia, dado o paralelismo que caracterizou as respectivas marchas. Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um dos primeiros a pôr em causa os quatro princípios ou elementos ditos  de Aristóteles, bem arreigados no espírito da época após cerca de dois mil anos de vigência inquestionável. Como em todos os antigos ramos do saber, é na Renascença que a alquimia começa a dar passos no caminho da mineralogia e, assim, a tomar corpo de ciência. Citem-se, desta idade, os livros De la Pirotechnia, do italiano Vanoccio Biringuccio (1540), e De Natura Fossilium (1546) e De Re Metallica (1556) de Agrícola, médico alemão, de nome, Georg Bauer (1495-1555). Deve dizer-se que o termo fóssil, em latim, fossilium, significa tudo o que está enterrado no solo e que, portanto, compreende os minerais e as rochas. Só muito mais tarde, no século XVIII, o termo fóssil passou a ser usado no sentido que hoje lhe atribuímos, isto é, o de referir os restos de seres vivos petrificados. Nestas duas obras de Agricola, dois marcos na história da mineralogia, dá-se conta do estado dos conhecimentos de então, sendo considerados os primeiros compêndios de mineralogia, mineração e metalurgia, numa época em que já havia alguma prática mineira, estando em exploração os importantes jazigos da Saxónica, da Boémia, da Itália, entre outros da velha Europa.

Agricola acabou por se tornar num dos mineralogistas mais célebres de sempre, ao expurgar da alquimia tudo o que ela tinha de magia e de imposição escolástica. Este homem de grande sabedoria propunha então a existência de seis tipos de minerais: “minerais fusíveis”, “terras”, “sais”, “pedras preciosas”, “metais” e “ligas metálicas”, dando relevo ao uso de propriedades físicas na identificação dos minerais, tais como cor, brilho, transparência, densidade, dureza, fusibilidade, solubilidade, cheiro e sabor. Este “Plínio da Saxónia”, assim era apelidado, não  dispunha porém de dados químicos, ainda por descobrir. Os seus conhecimentos sobre a génese e modos de ocorrência dos minerais influenciaram várias gerações de estudiosos europeus, entre os quais, o português Garcia de Orta (1501-1568) nas suas referências às gemas do Oriente no “Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”, publicado em Goa, em 1563.

Pela mesma época, o suíço Paracelso (1493-1541) trabalhava quimicamente os minerais com vista a conhecer-lhes o interesse em medicina. De nome Philipp Theophrast von Hoherheim, este médico vale um dos mais célebres alquimistas do seu tempo insistia na importância da observação dos objectos naturais e entre eles também os minerais, tendo sido o primeiro a reconhecer que os processos vitais são de natureza química e a concluir que a cura das doenças deveria ser encontrada no estudo da respectiva disciplina. Mostrou várias utilizações do enxofre, do chumbo, do cobre e do antimónio, já então conhecidos e isolados. Paracelso deixou uma obra que culminou toda a alquimia dos séculos que o precederam e admitia a existência de um dissolvente universal a que deu o nome de alcaeste.

Após a época de Paracelso e de um seu contemporâneo, o alemão Conrad Geoner (1516-1565) autor do célebre De Rerum Fossilium, Lapidum et Gemmarum (Zurique, 1566),   os alquimistas começaram a dividir-se em dois grupos: os que trabalhavam no sentido da química científica e os cultores de uma outra atitude, fantasista e extravagante, responsável pela imagem negativa que, injustamente, tem sido a mais divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas.

No século XVI e na tradição de uma crença antiga, ressuscitada pelos árabes e divulgada, sobretudo, por   Albertus Magnus, três séculos antes, estes últimos aceitavam que determinadas pedras, ou calculi, incluindo alguns minerais, cresciam no corpo de certos animais , a par de outras, geradas no reino vegetal, nos mares e lagos, no interior de cavernas, etc. No seu livro Speculum Lapidum (1505), Camilus Leonardus, muito embora não sendo considerado alquimista, descreve uma quinzena de pedras nascidas no corpo de animais como a cabra, o burro, o frango capão, o dragão, o gato, a hiena, o veado, o lince, a ostra (na pérola), o galo, o abutre, etc.. Assim, pedras como asinius, gerada no burro, extraída da urina do lince, e muitas outras constavam dos receituários médicos e dos textos de magia. De todos, ficaram-nos algumas recordações como draconites nascida na cabeça do dragão e a célebre pedra de bezoar ou lapis bezoaris, retirada da cabra, panaceia para muitos males e poderoso antídoto contra os venenos.

Até finais da Idade Média, a alquimia e a busca da Pedra Filosofal fascinaram a imaginação de muitos eruditos, tendo como resultado retardar o avanço da química, pois, embora o conhecimento e a experiência tivessem progredido, outro tanto não sucedeu com a sistematização do saber acumulado e, assim, esta disciplina só começou a ganhar foros de ciência com o alvor do século XVIII. À alquimia sucedeu uma química mineral onde radica a que é conhecida por mineralogia empírica, esboçada muito antes por Agricola. Só então teve lugar o corte definitivo com o passado alquimista.

No século XVII, a Inquisição mostrava já alguma tolerância pelas teorias de pendor matemático que não questionassem o saber dogmático, mas já assim não sucedia com outros domínios do conhecimento que, na visão da Igreja, questionassem os princípios tidos por intocáveis. O químico inglês Robert Boyle (1627-1691) inovou sobre o conceito de elemento químico, mas as suas ideias, que punham em causa princípios tidos por intocáveis,  tiveram de esperar um século para serem definitivamente aceites. Boyle foi mais um, á semelhança de Leonardo da Vinci, a pôr em causa (no seu livro Skeptical Chymist, 1677) a visão aristotélica dos quatro elementos, só definitivamente rejeitada após mais de vinte séculos de ensino escolástico que percorreu e dominou todo o período efervescente dos alquimistas.

O fim da prática alquímica no mundo das pedras  terminou com a primeira proposta de classificação dos minerais com base em critérios químicos (através do uso da chama e do maçarico de sopro), surgida em 1758, da autoria do alemão Alex Fredrik Cronstedt (1702-1765). Por seu turno, em França, Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794), tragicamente apanhado na voragem da Revolução Francesa, criava os fundamentos da química moderna, contribuindo decisivamente para que a mineralogia se elevasse acima do saber empírico que sempre fora até aí e se tornasse uma entre as demais ciências.

NOTAS 

1 - Vulgarmente atribuídos ao ilustre filósofo estes quatro elementos são o culminar de uma concepção muito anterior ao grande mestre e fundador do Liceu de Atenas, que se desenvolveu gradualmente até ser objecto de uma formulação, mais completa e abrangente, por Empédocles (circa 450 a.C.) como Teoria das Substâncias ou Teoria dos Quatro elementos. Nesta visão do mundo coube a Aristóteles o mérito de a divulgar e lhe dar crédito tal que a fez singrar, incóetume, por quase dois mil anos, inclusive, com a aceitação da Igreja romana, que a adoptou e impôs, no essencial do seu conteúdo, opondo-a constante e tenazmente à “teoria atómica, também ela fruto do pensamento grego antigo”.  

BIBLIOGRAFIA  

ELLENBERGER, François — Historia de la Geología. Vol I. De la Antigüedad al siglo XVII. Ed. Labor, Madrid. 1989.

ADAMS, Frank Dawson — The birth and development of the Geological Sciences. Dover Publications, Inc., Nova Yorque, 1938.

FRANÇOIS, Elenbeger (1988) — Histoire de La Géologie. Tome I, Des Anciens à la première moitié du XVII e Sciècle.