NO MUNDO DOS FLUIDOS:
O GAS, O BLAS E O MAGNAL
DA QUÍMICA DE J. B. VAN HELMONT (1579-1644)
A. M. Amorim da Costa

Dept. de Química – Universidade de Coimbra
3004-535 Coimbra – Portugal - acosta@ci.uc.pt

Introdução
1. O espírito seminal de todas as coisas (o gás)
2. O poder motriz universal (o blas)
3. O envólucro do Ar, fácil de fazer e desfazer (o magnal)
4. Conclusão
Notas
1. O espírito seminal de todas as coisas (o gás)

Nas peugadas de Paracelso e da leitura que fazia da Sagradas Escrituras, para Van Helmont a “vida” – que comparava com o fogo e a luz – está contida no sangue arterial tornado espírito vital pela introdução de um espírito do Ar no sangue venal: “o espírito vital é o sangue arterial resultante da força do fermento e do movimento do coração que vitalizam o espírito do Ar”[7]

Nesta convicção, Van Helmont tentou por análise química determinar os componentes do sangue na procura da essência desse espírito vital e do espírito do Ar necessário à sua existência. A ele se deve provavelmente as primeiras destilações do sangue humano, em repetidas operações de refinamento e busca da essência das essências[8].

Com o mesmo objectivo, analisou diversos sais procurando a essência do espírito do Ar que cria neles existir como uma forma espiritual de matéria em que se encontraria a sua semente e consequentemente o seu archaeus. Numa série de experiências para caracterizar esse espírio, queimou 62 libras (~28,123Kg) de carvão tendo verificado a formação de apenas uma libra (~ 0, 454 Kg) de cinza. Na sua interpretação do observado, as 61 libras desaparecidas corresponderiam a igual quantidade de um espírito invisível que se havia libertado durante o processo de combustão.Considerou tratar-se de um espírito até então desconhecido e para ele cunhou um nome próprio e novo; chamou-lhe “gás”: “hunc spiritus, incognitum hactenus, novo nomine gas voco” (a este espírito, até agora desconhecido, designo pelo novo nome gas)[9]

Segundo J.B.Van Helmont, na combustão de qualquer matéria seriam libertados espíritos invisíveis do mesmo género do espírito invisível que considerava ter-se libertado na combustão das 62 libras de carvão por si realizada, devendo também eles ser tidos como gases. Todas as coisas contêm o seu gás específico no qual está contida a sua semente. Ele próprio no decurso dos seus trabalhos, descreveu diferentes gases que considerou característicos das diferentes substâncias a partir das quais os obteve. Em particular, deve referir-se o estudo pormenorizado e extenso que fez do dióxido de carbono, a que chamou “gás silvestre” por considerar que se tratava de um gás “selvagem” por sua indomabilidade. Detectou a sua formação quando queimava carvão, álcool ou qualquer matéria orgânica, como também na fermentação da cerveja e do vinho e, ainda, na acção do vinagre e dos ácidos em geral sobre material calcário. E detectou a sua presença em diversas nascentes e grutas.

Tendo em conta a paternidade do nome gás e o muito trabalho de investigação que J.B. Vam Helmont desenvolveu no estudo do estado gasoso, Ernest von Meyer considerou-o “o verdadeiro fundador da química pneumática”[10]. Deve, todavia, referir-se que o termo “gás” cunhado por J.B.Van Helmont demorou a ser aceite pela comunidade científica. Por exemplo, Boyle, Priestley e Boerhaave, pioneiros na identificação, caracterização e individualização da acção de diversos gases, em particular, nunca utilizaram o vocábulo. Só mais tarde, com as teorias de Lavoisier, a sua utilização se generalizou.

J.B. Van Helmont não justificou nunca, em qualquer dos muitos escritos que deixou, compendiados, a seu pedido, por seu filho Francisco Van Helmont (1614-1699) nas obras acima referenciadas, Ortus Medicinae e Opuscula Medica Inaudita, a escolha do vocábulo gás para designar esse “espírito silvestre” libertado na combustão do carvão. Há quem a justifique com base no interesse que J.B. Van Helmont votava ao estudo do processo fermentativo, a partir do vocábulo alemão “gaesen” usado para descrever a efervescência que acompanha a fermentação do mosto vinhoso, ou a digestão dos alimentos no estômago com formação de sais tartáricos. Mas há também quem julgue que ela deriva do termo “Chaos” ou “gesen” dos escritos de Paracelso[11].

Tenha J.B.Van Helmont cunhado o seu vocábulo gás por relação com a efervescência observada no processo fermentativo, ou por relação com o chaos dos escritos de Paracelso, impõe-se notar que a caracterização que fez desse “espírito até então desconhecido”, apresenta um paralelismo flagrante com o chaos da filosofia de Paracelso, por mais iligítima que seja a total identificação de ambos.

De facto, num caso e noutro, a realidade caracterizada reveste-se das mesmas virtudes fundamentais. O gás de J.B. Van Helmont é um espírito invisível, selvagem e indomável, que existe na essência de todas as coisas e no qual está contida a sua semente. Ele é assim e também, o “espírito seminal” de cada coisa. Cada pedra, cada mineral, tem o seu espírito selvagem, o seu gás, específico, do mesmo modo que cada organismo vivo tem o seu espírito vital em que se encontra a sua vida, que converte o espírito do ar existente no sangue venal em sangue arterial, por força do fermento e do movimento do coração[12]. Sem muitas características substanciais diferentes, o “chaos” das doutrinas de Paracelso é por este afirmado como o meio ou habitação a que qualquer objecto deve a sua subsistência e as suas qualidades[13]. O ar seria o chaos por excelência na sua qualidade de atmosfera que actua como a fonte da vida dos organismos. Em particular, Paracelso serve-se do termo chaos para se referir ao meio acinzentado e transparente, quase invisível e duma “claridade miraculosa” que existe entre a terra e os céus e em que estão suspensos o fogo e os globos da terra e da água, à semelhança da gema do ovo imersa na clara[14]. Com a mesma terminologia, refere-se Paracelso ao chaos Mineralis, o espírito invisível que “transporta e alimenta as coisas imóveis” e “alimenta as pedras”[15], ao chaos urinae, o espírito invisível a que se devem as propriedades visíveis, com relevo para a cor, que na urina existe[16]; e ao chaos existente no corpo humano , o chaos do ar, o ar disperso por todo o organismo do homem, causa da epilepsia e dos espasmos quando se movimenta violentamente, e causa da febre quando o seu movimento é obstruido, como causa de saúde e bem-estar quando o seu movimento circulatório não é perturbado, mantendo uma circulação perfeita dos quatro elementos pelos locais que cada um deles possui no organismo[17]. E assim, porque o estado de saúde ou de doença do ser humano tem a sua causa no chaos do ar que percorre o seu corpo, também os arcana, os verdadeiros medicamentos capazes de restabelecer a saúde alterada estão também eles impregnados pelo mesmo chaos.

Realçado o paralelismo entre o o chaos da filosofia química de Paracelso e o gás da filosofia química de J.B.Van Helmont, pode dizer-se, resumindo, que para J.B.van-Helmont o gás duma substância é o “espírito selvagem” que nela está aprisionado e que dela se liberta quando ela é forçada a abandonar o seu estado fixo que é precisamente o que acontece quando uma substância é suficientemente aquecida sem lhe deixar a possibilidade de se converter na água elementar que constitui a base material de que todas as coisas terrestres derivam[18].  

 
III Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2000)

MACHADO, Maria Salomé Machado, A.M. Amorim da Costa, A.M.C. Araújo de Brito & António de Macedo (2005) - A Palavra Perdida. Colecção Lápis de Carvão (dir. Maria Estela Guedes), nº1. Lisboa, Apenas Livros Editora.

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