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ACÁCIO BARRADAS
 
Auxiliar de revisor e cronista semanal
 

Embora «O Brado Africano» tenha sido o jornal onde mais longamente colaborou, não foi nas suas páginas que José Craveirinha se estreou na Imprensa de Moçambique. «Ainda na segunda metade da década de 40» - segundo revela António Sopa na «Nota de apresentação» do livro «Hamina e outros contos» - «os seus primeiros textos assinados encontram-se no semanário "O Oriente", propriedade do indo-português Tomás Aquinas Álvares, periódico na órbita dos grandes valores do catolicismo tradicional».

«Durante muito tempo» - escreve António Sopa - «tive dificuldade em relacionar Craveirinha com aquele jornal. Um dia, em conversa com o poeta, pude confirmar que os textos eram da sua autoria e vinham no seguimento do convite que lhe tinha sido feito pelo proprietário daquela folha. Disse-me então que a sede de "O Oriente" ficava a caminho da sua casa, no bairro da Mafalala.»

Assinale-se, todavia, que tanto no caso de «O Oriente» como no de «O Brado Africano», a colaboração de José Craveirinha configurava um regime de voluntariado, isto é, sem retribuição. Neste último caso com características militantes, pela responsabilidade acrescida de pertencer ou de presidir, em vários mandatos, aos corpos directivos da Associação Africana, proprietária do jornal.

Assim, só em finais dos anos 50 se pode considerar a sua profissionalização (ou semi-profissionalização) na Imprensa moçambicana, com a entrada no matutino «Notícias», de Lourenço Marques. Aí, começou por ingressar no departamento de revisores, por extensão da sua actividade como funcionário público na Imprensa Nacional, onde era «auxiliar de revisor» e tinha horário seguido para poder «arredondar o salário» noutro local.

A propósito, o seu amigo João Reis (hoje residente em Macau, onde o contactamos para colaborar nesta investigação), depois de lembrar que José Craveirinha, antes de ser «auxiliar de revisor», começou a vida profissional numa cooperativa como «auxiliar de escritório», observa ironicamente: «Naqueles tempos, os pretos e os mulatos eram quase todos, e quase sempre, "auxiliares" de qualquer coisa!»

O certo é que, pouco a pouco, o «auxiliar de revisor» foi-se transformando em «auxiliar» de jornalista, por obra e graça dos trabalhos que ia publicando, primeiro na página de artes e letras, depois no corpo do jornal. Segundo João Reis, «a actividade do poeta no jornal ganhava outro relevo» e «acabaria mesmo por sobressair, e de que maneira, através de umas "cartas" dirigidas, onde dizia coisas que ninguém mais se atrevia a dizer, por falta de competência ou de coragem.»

Quanto ao efeito dessas «cartas», adianta: «Os destinatários (quando não tugiam nem mugiam, dada a elegância e a aparente bonomia do crítico, e o medo da tréplica) nem sempre reagiam bem ao atrevimento do mulato. E as coisas passavam.»

«A verdade» - opina João Reis - «é que o jornal, sempre aos sábados, ganhava uma dimensão que nunca antes (nem depois) alguma vez tivera.»

Finalmente reconhecido repórter do «Notícias»
 

O escritor e jornalista Guilherme de Melo, na altura colega de redacção de Craveirinha e também seu amigo (ao ponto de, quando deixou Moçambique sem saber se ia voltar, lhe ter confiado a chave de casa, além das muitas obras de arte que possuía), relembra sobretudo a «alta qualidade humana» do poeta que tantas vezes levou à Mafalala no carro do jornal, quando à noite saíam juntos do trabalho e regressavam a casa.

Ao voltar a Moçambique dez anos depois, Guilherme de Melo ficou siderado ao deparar com tudo o que deixara e que José Craveirinha tinha guardado religiosamente, à sua espera. E só por muita insistência do poeta, que sabia do seu especial apreço por aquela escultura, acabaria por trazer para Portugal um Cristo talhado num tronco de árvore e que lhe fora oferecido pelo artista Alberto Chissano, o qual entretanto se suicidou em 1994.

Ao evocar o amigo, Guilherme de Melo realça também a crónica que Craveirinha assinava aos sábados, tal como ele assinava outra aos domingos. E tanto quanto se lembra, Craveirinha «deu-se muito bem» no «Notícias».

Mas nem tudo foram rosas, afirma João Reis, ao recordar que, em certa ocasião, «um ou dois colegas foram à então directora do jornal sugerir (porque era justo) que se desse ao Craveirinha o estatuto de jornalista, com a adequada compensação.»

«A resposta que obtiveram» - afirma - «ficou na história do jornal: "Para aquilo que ele é, e o seu nível de vida, ele até ganha de mais!"»

Comentário de João Reis: «O que ele recebia não chegava a metade do que ganhava um repórter - mas, claro, o repórter era branco e tinha um nível de vida diferente, isto é, comia três refeições diárias, tinha que vestir, calçar e viver numa casa de alvenaria, tudo como um branco. E, além disso, representar e honrar o jornal!»

Seja como for - e a acreditar numa informação que, em Abril de 1958, foi enviada ao director-geral da PIDE, em Lisboa, pelo Corpo de Polícia de Lourenço Marques - nessa altura José Craveirinha era dado como «repórter do jornal "Notícias", desta cidade, onde aufere o ordenado mensal de 3500$00.» Ou seja: a titularidade de jornalista acabaria por ser-lhe reconhecida.

Para tal desfecho haveria de concorrer decisivamente a intervenção do jornalista - e também poeta - Nuno Bermudes, então redactor-chefe do «Notícias», que em defesa de vários camaradas de Redacção chegou ao extremo de se incompatibilizar com a administração do jornal, sendo despedido. No entanto, como adiante se verá, procedimentos posteriores de natureza política haveriam de gerar uma polémica de graves e insanáveis consequências, que iriam contribuir para o fim da actividade jornalística de Craveirinha.


Paternidade dos escritos sujeita a confirmação
 

Ao recordar mais tarde a sua experiência no «Notícias», José Craveirinha publicaria no jornal «A Tribuna», em cujo quadro redactorial ingressou a seguir, uma crónica em que dava conta de um significativo preconceito de que fora alvo por parte de certos leitores.

Conta ele: «Estando ainda a trabalhar no "Notícias" foram várias as vezes e as pessoas que se não coibiram de manifestar a sua estranheza quando me sendo apresentadas e a terceiros confessarem-se admiradas de ao jornalista cujos escritos apreciavam nunca haverem admitido relacionar com o indivíduo de cor que vinham de conhecer.»

Esta estranheza, porém, ganhava contornos de ofensa quando se transformava em desconfiança sobre a natureza apócrifa dos escritos. Assim é que, segundo Craveirinha, «casos houve em que a dúvida levaria à suspeita de que eu assinasse artigos, crónicas e reportagens que outrem para mim generosamente escrevia.»

Por tal motivo, chegou a ser imperativa a palavra alheia para deslindar o intrigante enigma do mulato que, tendo simplesmente a quarta classe elementar, discorria com tanto à-vontade no idioma de Vieira e Camões.

Assim, segundo Craveirinha, «desfaria até uma dessas suspeitas, garantindo a paternidade da lavra dos escritos à minha humilde pessoa, o sr. capitão Ismael Mário Jorge, o que pela boca do sr. capitão Ismael eu por minha vez ficaria a saber. É ou não sintomático?»

Estas revelações, feitas n'«A Tribuna» de 21 de Setembro de 1963, vinham a propósito de uma crítica que Guilherme de Melo fizera, no «Notícias», à epidemia de «papagaios de salão» que, de repente, havia assolado Lourenço Marques, reclamando um «travão a este aflitivo palrar». Isto porque, a seu ver, «falar por falar, só por simples espírito de periquito sacudindo as penas, redunda afinal no mesmíssimo resultado que advém da mordaça para outras coisas: zero.»

Reconhecendo embora as razões de tal crítica, Craveirinha intercedia no entanto pelo direito à palavra mesmo dos mais impreparados, considerando «tal experiência como louvável» em nome da «difusão da Língua Portuguesa» resultante de «uma campanha encetada na vigência governativa da equipa Almirante Sarmento Rodrigues - Dr. Adriano Moreira.»

E para desvanecer quaisquer dúvidas quanto ao seu apoio àqueles governantes nesta matéria, acentuaria: «Em boa verdade e muito sincera opinião pessoal, nunca em Moçambique se deu tamanha consagração à Língua Portuguesa como neste período histórico».

Em conformidade, salientava: «Quando surgem moçambicanos de raiz, digamos negros, a falar português tu-cá-tu-lá em sessões públicas, percebendo e fazendo-se perceber perfeitamente, é a consagração da Língua Portuguesa, a sua ecumenicidade, que se corporiza ou sublima e um processo de unidade que se estrutura pelos únicos valores insujeitáveis a qualquer contestação: a cultura do espírito e um veículo linguístico comum.»

E a concluir: «Que se fale, pois, livre e francamente em sessões públicas, e se digam uns aos outros as coisas que se sentem e que necessariamente é tempo de conhecerem a luz do sol, já porque nisso se extremam campos e os homens se nivelam, para já e salutarmente, em exercícios de Português!»