Timothy Radcliffe
Ficar ou sair da Igreja

Oferecemos uma reflexão do Ex-Mestre da Ordem dos Dominicanos, fr. Timothy Radcliffe, sobre a problemática "acesa" da pedofilia na Igreja Católica. O título é o do autor.

Novas revelações de abusos sexuais por padres na Alemanha e na Itália provocaram uma onda de raiva e de desgosto. Eu recebi e-mails de pessoas de toda a Europa a perguntar como é que eles ainda podem ficar na Igreja. Até recebi um formulário com o qual poderia renunciar à minha participação na Igreja. Por que ficar?

Primeiro, por que ir? Algumas pessoas sentem que não podem continuar associadas a uma instituição que é tão corrupta e perigosa para as crianças. O sofrimento de tantas crianças é de facto horroroso. Elas devem ser a nossa primeira preocupação. Nada do que vou escrever pretende, de forma nenhuma, diminuir o nosso horror diante do mal dos abusos sexuais. Mas as estatísticas para os EUA, do John Jay College of Criminal Justice de 2004, indicam que o clero católico não causou mais ofensas do que o clero casado de outras Igrejas.

Algumas pesquisas apresentam até um nível menor de transgressões por parte dos padres católicos. Eles são menos propensos a cometer transgressões do que professores leigos de escolas, e talvez essa probabilidade em comparação à população em geral seja até a metade. O celibato não leva as pessoas ao abuso de crianças. É simplesmente uma inverdade imaginar que deixar a Igreja para ir a outra denominação deixaria nossos filhos mais seguros. Devemos encarar o terrível facto de que o abuso de crianças está espalhado em todas as partes da sociedade. Fazer da Igreja um bode expiatório seria uma forma de encobrimento.

Mas, e os encobrimentos dentro da Igreja? Os nossos bispos não foram chocantemente irresponsáveis ao transferir os abusadores de um lado para o outro, não os denunciando à polícia e, assim, perpetuando os abusos? Sim, às vezes. Mas a grande maioria desses casos remonta aos anos de 1960 e 1970, quando os bispos geralmente consideravam os abusos sexuais como um pecado em vez de também uma condição patológica, e quando os advogados e psicólogos comummente os tranquilizavam dizendo que era seguro transferir os padres depois do tratamento. É injusto projectar ao passado uma consciência de natureza e de seriedade dos abusos sexuais que simplesmente não existia então. Foi apenas a ascensão do feminismo no final da década de 70 que, ao falar sobre a violência de alguns homens contra mulheres, nos alertou sobre o terrível dano cometido contra crianças vulneráveis.

Mas, e o Vaticano? O Papa Bento XVI assumiu uma forte posição ao abordar essa questão como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e assim que se tornou Papa. Agora, os dedos estão apontados contra ele. Parece que alguns casos denunciados à Congregação sob a sua guarda não foram tratados. A credibilidade do Papa não está abalada? Há manifestantes em frente da Basílica de São Pedro pedindo a sua renúncia. Eu estou moralmente certo de que ele, aqui, não carrega nenhuma culpa.

Geralmente imagina-se que o Vaticano seja uma organização ampla e eficiente. De facto, O Vaticano é muito pequeno. A Congregação para a Doutrina da Fé emprega 45 pessoas, lidando com questões doutrinárias e disciplinares de uma Igreja que tem 1,3 bilião de membros, 17% da população do mundo e cerca de 400 mil padres. Quando eu tive contacto com a Congregação, como Mestre da Ordem Dominicana, era notório que eles esforçavam-se para dar conta do trabalho. Os documentos passavam despercebidos. O cardeal Joseph Ratzinger lamentou comigo que a equipa era simplesmente muito pequena para tanto trabalho.

As pessoas estão furiosas com a falha do Vaticano em abrir os seus arquivos e oferecer explicações sobre o que aconteceu. Por que é ele tão secreto? Católicos com raiva e dor sentem-se no direito de ter um governo transparente, e eu concordo. Mas devemos, em justiça, compreender por que é que o Vaticano é tão auto-protector. Houve mais mártires no século XX do que em todos os séculos anteriores somados. Bispos e padres, religiosos e leigos foram assassinados no Leste Europeu, nos países soviéticos, na África, na América Latina e na Ásia.

Muitos católicos ainda sofrem prisões e morte por causa de sua fé. Claro, o Vaticano tende a acentuar a confidencialidade: isso foi necessário para proteger a Igreja de pessoas que desejavam destruí-la. Então, é compreensível que o Vaticano reaja agressivamente a queixas por transparência e que leia os pedidos legítimos pela abertura como uma forma de perseguição. E algumas pessoas dos média desejam realmente, sem dúvida, prejudicar a credibilidade da Igreja.

Mas temos uma dívida de gratidão para com a imprensa pela sua insistência para que a Igreja encare as suas falhas. Se não fosse pelos média, então esses abusos vergonhosos permaneceriam sem ser discutidos.

A confidencialidade é também uma consequência da insistência da Igreja sobre o direito de todos os acusados a manter seu bom nome até que sejam provados culpados. Isso é muito difícil de entender para a nossa sociedade, em que os média destroem a reputação das pessoas sem sequer pensar.

Por que ir embora? Se é para encontrar um porto mais seguro, uma Igreja menos corrupta, então eu acho que vai ficar desapontado. Eu também desejo um governo mais transparente, um debate mais aberto, mas o segredo da Igreja é compreensível e às vezes necessário. Entender nem sempre é fechar os olhos, mas é preciso se queremos agir com justiça.

Por que ficar? Devo colocar as minhas cartas sobre a mesa. Mesmo que a Igreja fosse obviamente pior do que outras Igrejas, eu ainda assim não iria embora. Eu não sou católico porque a nossa Igreja é a melhor, ou mesmo porque gosto do catolicismo. Eu amo realmente muitas coisas da minha Igreja, mas existem aspectos dela de que não gosto. Eu não sou católico por causa de uma opção de consumo num "Waitrose" ou de um "Tesco" eclesiástico [marcas de supermercado ingleses], mas sim porque eu acredito que ela encarna algo que é essencial ao testemunho cristão da Ressurreição: a unidade visível.

Quando Jesus morreu, a sua comunidade ficou dividida. Ele tinha sido traído, negado, e muitos dos seus discípulos fugiram. Foram principalmente as mulheres que o acompanharam até o fim. No Dia da Páscoa, ele apareceu aos discípulos. Essa foi mais do que uma ressuscitação física de um cadáver.

Nele, Deus triunfou sobre tudo o que destrói a comunidade: pecado, covardia, mentiras, incompreensão, sofrimento e morte. A Ressurreição tornou-se visível ao mundo por meio da visão impressionante do renascimento de uma comunidade. Aqueles covardes e negadores reuniram-se novamente. Eles não eram um grupo honrado, e envergonharam-se do que fizeram, mas uniram-se novamente. A unidade da Igreja é um sinal de que todas as forças que fragmentam e dispersam são derrotadas em Cristo.

Todos os cristãos são um no Corpo de Cristo. Eu tenho o mais profundo respeito e afecto pelos cristãos de outras Igrejas que me alimentam e inspiram. Mas essa unidade em Cristo precisa de uma encarnação visível. O cristianismo não é uma espiritualidade vaga, mas sim uma religião da encarnação, em que as verdades mais profundas assumem a forma física e às vezes institucional. Historicamente, essa unidade encontrou o seu foco em Pedro, a Rocha de Mateus, Marcos e Lucas e o pastor do rebanho do evangelho de João.

Desde o começo e ao longo da história. Pedro muitas vezes foi uma rocha vacilante, uma fonte de escândalo, corrupta, e mesmo assim ele é o escolhido – e os seus sucessores –, cuja tarefa é a de nos manter unidos, para que possamos testemunhar a vitória de Cristo no Dia da Páscoa sobre o poder de divisão do pecado. E assim a Igreja está agarrada a mim independentemente do que acontecer. Podemos até envergonhar-nos em admitir que somos católicos, mas Jesus teve companhias vergonhosas desde o começo.

http://aliistradere.blogspot.com/2010/04/ficar-ou-sair-da-igreja.html

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