FRANCISCO TEIXEIRA
ABORTO E VIDA HUMANA

A proclamação continuada dos partidários do “não”, neste referendo, segundo a qual são contra a anunciada lei de despenalização porque são a favor da vida constitui um insistente apelo à mais pura irracionalidade, ou má fé, que constrange e inquina o debate que, para ser debate, exige pelo menos um mínimo de racionalidade. Indo directo ao assunto, o que está presente, primeiro de forma escondida (como que com vergonha pela inconsistência) e depois de forma explícita, é a redução do conceito e da experiência de “vida humana” ao conceito e à experiência de “vida”. Mais simplesmente, o que se pretende aí defender é a teoria “concepcionista”, segundo a qual há “vida humana” desde a concepção, isto é, desde a fusão entre o óvulo e o espermatozóide, ainda que, obviamente, não haja aí qualquer indício daquilo que é especificamente humano, i.e., auto-consciência, sentido de si, racionalidade, linguagem ou projecto de vida, nem, sequer, simples e legítimo interesse em evitar a dor (se bem que a presente definição não seja o central no argumento em causa).

Muito em particular, a teoria “concepcionista” recusa a distinção entre espécie biológica e espécie humana que, por ser e quando passa a ser humana, deixou já de ser espécie para se espiritualizar, seja de que modo for. Ou seja, recusa a distinção entre ser da espécie homo sapiens sapiens e ser humano. O que esta recusa (irracional, quando argumentada do domínio naturalista e, por isso, ilegítima) leva consigo é uma lógica especista que não tem qualquer relevância ontológica e moral e que, pelo contrário, pode legitimar as mais variadas teses de tipo racista. O que o especismo diz, para simplificar, é que a nossa pertença biológica, genética, nos dá especiais qualidades, e direitos, ontológicos e morais. Ora, isso é manifestamente absurdo. À pura natureza repugna qualquer tipo de diferença moral. Perante a natureza somos todos moralmente iguais. Na verdade, à natureza não repugna nada porque a natureza não tem valores morais, só têm valores morais aqueles que se elevam acima da natureza, que é o caso dos homens, daqueles que são seres humanos, e já não simples natureza. Assim, dizer que se é contra o aborto, porque o aborto é imoral uma vez que trata da eliminação de uma vida humana, é completamente absurdo. Pode-se ser contra o aborto por outras razões. Já, no entanto, sê-lo porque se reduz a humanidade a uma origem biológica, molecular e atómica, não passa de biologismo e reducionismo ou, para utilizar uma terminologia conhecida, puro e grosseiro materialismo.

Claro que sobra a ingente questão de saber a partir de quando é que, então, se é humano. Essa é a questão decisiva (embora não o seja para alguns defensores do aborto que argumentam que é moral o aborto mesmo em presença de vida humana, como é o caso de Judith Thompson, no seu “A Defense of Abortion”, traduzido para português por Pedro Galvão no oportuno “A Ética do Aborto”, da Editora Dina Livros). Há várias opiniões sobre o assunto e, já agora, também tenho a minha. De qualquer modo, o que não conheço é nenhuma argumentação séria (a partir de um ponto de vista naturalista) a favor da tese segundo a qual a vida humana já está presente no momento da concepção (declara-se já que a tese da adscrição de vida humana à fase da concepção a partir do argumento da potencialidade da vida humana não tem nenhum valor, razão pela qual, aliás, parece ter sido banido, e ainda bem, de toda a argumentação). Também não conheço nenhuma argumentação séria (a partir de um ponto de vista naturalista) que, para o que interessa na discussão presente sobre o aborto, diga que estamos já em presença de vida humana a partir das dez ou doze semanas de concepção. Ainda assim persistem argumentos sérios, que merecem ser analisados, contra a moralidade do aborto. Mas nenhum deles, que eu conheça, parte do princípio segundo o qual, naquela fase de desenvolvimento embrionários (dez ou doze semanas), estamos já na presença de vida humana, de autênticos seres humanos.

Como outros já assinalaram, não deixa de ser chocante, no início do século XXI, a tese da continuidade humana desde a concepção até à morte, como se Darwin nunca tivesse existido, como se a moderna biologia molecular nunca tivesse dado sinais de si e como se o homem, simplesmente, não tivesse evoluído moralmente nos últimos dois mil anos. Na verdade, esta teoria é o equivalente de uma tese da evolução filogenética segundo a qual o homem já estaria presente, já seria verdadeiramente homem, no primeiro momento da emergência da vida sobre a terra, há sensivelmente 3 000 milhões de anos! Esta tese, aliás, é muito afim das teses “criacionistas”, próprias de vários fundamentalismos religiosos, de que há várias emergências cristãs na América profunda, anti-moderna, anti-liberal e anti-cientifica, na verdade anti-humana e que, pelos vistos, se transpôs, pelo menos nesta altura, para Portugal.

Deve assinalar-se, no entanto, que ao contrário daquilo que algum tacticismo eleitoral (imoral, dado aquilo que civilizacionalmente está em causa) tem referido, este assunto também pode legitimamente ser tratado como assunto religioso. A motivação religiosa é eleitoralmente tão legítima como outra motivação qualquer. Isto é: é absolutamente legítimo que aqueles que sobredeterminam as suas opções morais de um ponto de vista religioso e achem que essa sobredeterminação os obriga a pensar que há humanidade desde a concepção, os conduza a votar “não” no referendo de 11 de Setembro. Pedir a essas pessoas que abdiquem dessas motivações (profundas) em nome da liberdade de auto-determinação moral de todos não faz nenhum sentido. O que, claro, também não faz sentido é a entorse intelectual (quando ocorre) pelo qual se transforma uma legítima mundividência religiosa em suposto discurso científico, i.e., natural.   

Claro que, mesmo do ponto de vista religioso, não há que, necessariamente, achar que o aborto é imoral. Tal corresponderia, corresponde, a um reducionismo do humano grosseiramente materialista e impróprio, aliás, das melhores ambições espirituais de várias tradições religiosas e desde logo da tradição cristã (mesmo católica), que se recusa à redução do humano às coisas deste mundo. Como relembrou Umberto Eco no DN de há uns dias, S. Tomás de Aquino, a autoridade católica por antonomásia, não considera, na Suma Teológica (que Pio XI considerava o céu visto da terra), o embrião um ser humano, recusando-lhe, por isso, a graça da ressurreição. Mas, mais importante ainda que S. Tomás de Aquino, é aquilo que o mais espiritual Cristianismo ortodoxo, o cristianismo de S. Paulo, refere nos evangelhos canónicos, na Segunda Carta aos Coríntios:

“Nenhum carne é igual às outras: a carne dos homens é de um tipo, a dos animais é de outro, e de outro a das aves e de outro ainda as dos peixes. Há corpos celestes e corpos terrestres. O brilho dos celestes, porém, é diferente do brilho dos terrestres. Uma coisa é o brilho do Sol, outra o brilho da Lua, e outra o brilho das estrela. E até de estrela para estrela há diferença de brilho.  

O mesmo acontece com a ressurreição dos mortos: o corpo é semeado corruptível, mas ressuscita incorruptível; é semeado desprezível, mas ressuscita glorioso; é semeado na fraqueza, mas ressuscita cheio de força: é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual. Se existe um corpo animal, também existe um corpo espiritual, pois a Escritura diz que Adão, o primeiro homem, tornou-se um ser vivo, mas o último Adão tornou-se espírito que dá a vida. O primeiro a ser feito não foi o corpo espiritual, mas o animal, e depois o espiritual. O primeiro homem foi tirado da terra e é terrestre; o segundo homem vem do Céu. O homem feito da terra foi o modelo dos homens terrestres; o homem do Céu é o modelo dos homens celestes.”

Paulo, naturalmente, pode ser lido de várias maneiras. Do que não há que duvidar é que esta notável passagem nos há-de pôr a pensar se, para toda a salvação, para toda a humanidade completa, se não exige aqui uma transformação activa, uma libertação, uma transformação, da carne, pelo espírito, que não é mais que a exigência de uma força de si mesmo que o não nascido ainda não tem nem pode ter. Não, claro, que, só por isso, o não-nascido não tenha ou não possa ter valor. Mas esse valor há-de sempre ter origem numa atribuição externa, fruto da relação maternal/paternal que naquela vinculação biológica/psicológica aí ocorra. Acontece que essa relação não pode ser estabelecida senão a partir da fonte primeira e original da relação mãe-filho, que é a mãe, ainda que dentro dos limites que a sensibilidade social, razoavelmente, pode determinar, bem para além, pois, de todo o histerismo fundamentalista. De qualquer modo, o que o cristianismo Paulino não parece autorizar é este reducionismo cego do espírito à carne, esta eliminação do humano em nome de um concepcionismo molecular que só o mais puro e perigoso fundamentalismo pode já considerar humano.