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II BIENAL DE POESIA
SILVES. 2005
A. RAMOS ROSA:
OBRA AO VERDE
Maria Estela Guedes
Associação Portuguesa de Escritores; TriploV
Conferência proferida na homenagem a António Ramos Rosa
na II Bienal de Poesia. Câmara Municipal de Silves, 22-24 de Abril de 2005
3. As palavras são cores

A poesia de António Ramos Rosa deambula entre conceptualismo e pintura. Certos poemas são muito impressionistas no colorido, e já sabemos que o poeta também é artista visual e também faz crítica de pintura. Não admira assim que nos surja uma criação poética estimulada pela percepção da luz e das cores. Por vezes, à semelhança da pintura moderna, mais voltada para o efeito plástico dos materiais do que para o que possam representar, as palavras são cores, pincelando a página de verde, azul, branco, negro e amarelo, que simultaneamente produzem música:

A praia era de guitarras destruídas,
voos negros rosados sobre azul,
e sobre o branco multiplicado do céu cantava
o azul,
cantava o branco sol e azul
e os fragmentos de guitarra verdes vermelhos
negros
cantavam mar azul, praia vermelha,
voos de andorinha negros
. (21)

Nos poemas pictóricos, sobretudo nos que surtem efeito figurativo, percebemos corpos e objectos em movimento num discurso que se apresenta como paisagem. Nem todos os elementos da paisagem são naturais, concretos como os pontos de referência do conhecido que guardamos na memória. Mas eles tornam-se elementos naturais pelo facto de terem certas cores. A cor é algo próprio da matéria, ou é algo que a luz faz reagir na matéria. Em António Ramos Rosa, as cores dominantes são o branco e o verde. Na brancura há sinal negativo, é quase sempre uma falta que o poeta precisa de cumular com a palavra, pois a falta está associada à página antes do Génesis, a génese da escrita, como o último título do poeta deixa claro: "Génese" tem por tema o nascimento do poema, ser orgânico, animal, como Aristóteles o definiu, por isso expresso pelo léxico normal do parto. O poema é um elemento da Natureza, como uma árvore. Daí que fale dele como gerado num "útero verde" (22).

No extremo oposto da brancura, signo da falta e do vazio, não está o negro. O negro, tal como o branco, é sinal de ausência de luz, e a luz não é só um elemento natural, próprio da physis, ela é também um elemento psíquico e cognitivo: a treva mete medo porque não sabemos o que se esconde nela, ao passo que a luz acalma ao iluminar objectos de serenidade. A luz torna visíveis as coisas, por isso as ficamos a conhecer pelo olhar e pela inteligência.

A equilibrar a balança, pesada de carga negativa com a brancura, fica, em Ramos Rosa, uma cor positiva, eufórica, cheia de esperança - o verde, evidentemente. Basta notar que quase sempre o verde surge em situação de redundância, para nos apercebermos do seu valor genesíaco, o valor de "útero verde".

Na poesia rosiana, as coisas mexem, os elementos são dotados de som, forma, cor e velocidade. Alguns reiteram-se, como ícones que conhecemos noutros autores e noutras pinturas, caso da mulher que irrompe venusinamente do seio das águas. Os textos conceptuais tendem para a filosofia, esboçando ideias e temas. Além da liberdade, do amor, do erotismo, da questa de felicidade, da génese, etc., aponte-se ainda a adolescência como estado privilegiado da poesia. Neste último livro, "Génese seguido de Constelações", a adolescência associa-se naturalmente à fertilidade, ela é um estado de alma propício para a criação poética:

Como o abdómen de uma adolescente
a página suscita a fértil fragilidade
de uma caligrafia que se apaga sobre os sulcos de neve (23)

Ramos Rosa é um poeta nervoso e inquieto, por isso certamente não encontraremos poemas puros, nem fóticos nem reflexivos, antes híbridos. A sua lírica acusa variações e mudanças bruscas de ritmo, não só ao longo dos anos como ao longo dos poemas de um mesmo livro, e até num só poema. Para usar um modelo de análise fornecido por Fontanille, numa obra que trata da semiótica da luz (24), e que propõe três estesias na obra de cultura, a estesia reflexiva, a estesia transitiva e a estesia recíproca, podemos considerar que a estesia reflexiva, em Ramos Rosa, diz respeito aos poemas centrados na relação do sujeito consigo mesmo; a estesia transitiva, que é a relação entre o sujeito e o mundo, tem um exemplo transparente em frases como "escrevo árvores", "escrevo casas", em que a transitividade do verbo se desloca dos seus objectos próprios para algo que pertence de resto à estesia reflexiva, por ser a concepção da linguagem como organismo, logo como criadora do mundo: o poeta não escreve poemas sobre a natureza, as palavras são as cores, as casas, por isso a linguagem cria a Natureza. E finalmente, ensina Jacques Fontanille, há a estesia recíproca, uma dimensão na arte que cria relações de intersubjectividade. A intersubjectividade, em Ramos Rosa, passa, como já referi, pelo desejo de correspondência, de responder ao pacto amoroso com o leitor; às vezes, mais explicitamente, com a leitora.

O movimento entre o reflexivo, o inventivo e o amoroso pode relacionar-se com posicionamentos paradigmáticos, próprios de opções de escola ou de movimento. É admissível que o poeta recuse a transparência, se lhe parece colada a uma estética fora de moda, mas Ramos Rosa alcançou uma posição em que essas questões se tornam insignificantes e os conceitos a que se ligam não passam de preconceitos. Eu diria que as variações se devem ao desejo de obscuridade, pois há na poesia um lado de enigma e mistério que convoca a vontade de conhecimento, e também a deslizamentos do humor. Em geral a revelação e o irrevelável andam de mãos dadas, acontece um poema começar com uma ideia claramente expressa, que depois se enigmatiza e transmuta em pintura muito colorida, passando-se assim de um estilo a outro completamente diverso. Vejamos um poema para exemplo, de que cito os dois primeiros e os dois últimos versos. Entre eles, estabelece-se uma polifonia de pinceladas que impedem o que, a desenvolver-se segundo as expectativas criadas nos versos iniciais, daria qualquer coisa como um ensaio, e um ensaio certamente sobre a transparência de cristal das palavras:

Talvez a simplicidade nunca seja atingida
Porque a nudez está entre a ficção e o real

[.]

Que ele reúna a chama e o grito numa lâmpada
De cristal e uma sombra se mova como uma lâmpada na lâmpada
. (25)

 

 
 
SILVES, CAPITAL DA PALAVRA ARDENTE