CORTE NO PARAÍSO/ Trovadores e aves do paraíso
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14-07-2003

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EXPOSIÇÃO SÓ PARA ELAS
MARIA ESTELA GUEDES

Uns vivem ainda nas ilhas da Insulíndia, em especial na Nova Guiné, os outros frequentavam as cortes europeias medievais, ou eram os reis, como D. Dinis e D. Afonso X.

Na corte dos papuas falam as penas, longas e curtas, largas e filiformes, de todas as cores.

Na corte europeia, as penas falavam também, e tantas eram as que eles sofriam que das penas dizem morrer - penados, penados - ou coytados, coytados. Era assim a corte deles, uma infinita coita de amor.

As penas, na Insulíndia, na maior parte só brilham durante a estação dos amores, e só eles usam essa deslumbrante ornamentação. A seguir à estação dos amores, as longas e brilhantes penas caem e eles ficam sem graça, tão discretos como elas, nem se dá por eles em plumagem de eclipse ou há até quem os confunda com elas.

Na Europa, também era assim, as penas cantavam-se só na Primavera, quando o tempo estava bom para meter pés ao caminho e peregrinar de catedral em catedral e de castelo em castelo. Por isso D. Dinis censura os trovadores da Provença: não era grande o seu amor se dele só sofriam na Primavera, não podendo assim comparar-se com a coita que lhe causava a sua senhora e que o havia de matar.

.....Ca os que trobã e que ss' alegrar

vã eno tẽpo que tem a color

a frol cõsigu' e, tãto que se for

aquele tẽpo, logu' trobar razõ

nõ an, nõ uiuen qual perdiçõ

oi' eu uiuo, que poys m' a de matar.


Em ambas as cortes as amadas são as destinatárias da linguagem das penas - é só para elas a exposição. Se as amadas papuas não se enroupam com fatos brilhantes, a discrição das europeias morava no seu silêncio e distância. E tão espiritual é o canto do fiel amador que alguns o consideram mariano.

Os europeus escrevem numa língua híbrida, ainda não diferenciada nas actuais. O património linguístico ainda é muito comum, misturam-se nele caracteres, palavras e estruturas sintácticas de vários géneros : português, provençal e galego, sobre a base grega e latina, em que também há alguma inseminação árabe.

É difícil distinguir os trovadores pela nacionalidade neste falar às aves primordial, e era juvenil na altura a nacionalidade portuguesa. Em qualquer um se encontram caracteres como o duplo s em início de palavra, o i e o u (e j/v) com valor ora de consoante ora de vogal, e palavras como rem (rien, coisa nenhuma) e ca (car, porque), que hoje desapareceram de umas línguas para se fixarem só no francês. Certas palavras que hoje são femininas, naquele tempo eram masculinas - a mar -, outras, uniformes, eram tratamentos também no feminino - mia señor branca e uermella (minha senhora branca e corada). Todos esses caracteres se alteram com o tempo, às vezes até por força de lei.

Por serem híbridos os poetas e híbridas as obras, Afonso X, o Sábio, rei de Castela, é um dos autores estudados na literatura portuguesa, tal como D. Dinis é estudado na literatura espanhola.

A origem das línguas é humana. É por acção do homem que a evolução ora as diferencia ora as volta a miscigenar em falares de expressões e caracteres comuns :-) © Hi! DDTC?

Quando uma população usa um falar fortemente miscigenado cujos caracteres acabam por se fixar numa língua própria, estamos em presença dos crioulos, como os formados na sequência das colonizações europeias em África e na Ásia.

Umas vezes os caracteres híbridos são efémeros, como acontece com expressões lançadas até por erro nos mass media, outras passam de uma língua para outra e fixam-se nesta, passando a pertencer ao seu património lexical. Em todo o caso, não há línguas puras, em todas existe um lote oriundo das estrangeiras. Neste momento, quase todas as línguas escritas importam do inglês, por ser a que usamos online. Há apenas graus maiores e menores de hibridação, e estéticas do híbrido, como a poesia macarrónica, que misturava com o latim as línguas maternas. A poesia macarrónica é essencialmente um fenómeno universitário, porque os alunos falavam latim, e não apenas nas aulas dessa extinta língua. Em português temos o exemplo da Macarrónea Latino-Portuguesa, nascida em Coimbra de vários autores.

Quer nas línguas quer nos seres vivos, o hibridismo é uma questão de caracteres (sinais distintivos, discriminantes), por isso a biologia adoptou os caracteres linguísticos (a, b........., x, y, z) para exprimir simbolicamente as diferenças que apresentam de geração para geração.

Também entre as aves do paraíso o hibridismo reina : certos animais apresentam caracteres intermédios, e próprios dos que pertencem a outra espécie ou género. Segundo "A Fauna", foram descritos nada menos que 30 híbridos intragenéricos. Estes híbridos são considerados naturais pela ciência - os animais de espécies e géneros diferentes cruzam-se por sua livre vontade, sem que nenhuma interferência humana a isso os leve - apesar de se tratar de um grupo que desde sempre sofreu acção humana: as penas eram usadas como moeda pelos povos da Nova Guiné e Molucas, e mais tarde, quando os europeus lá chegaram, houve uma grande corrida comercial às penas. De tal forma o homem interferiu naquilo a que chamou o Paraíso - os locais onde viviam -, que foi preciso legislar para a sua salvaguarda. Actualmente, as aves do paraíso estão protegidas.

Tal como o trovador perde o ssen (juízo) por sa senhor e (diz que) morre penado, penado, assim a coita das aves do paraíso se deve às penas.

E tal como a grande poesia de corte é a trovadoresca, assim as aves do paraíso são consideradas os maiores cortejadores do Reino Animal, pois é só para acasalarem que envergam a magnífica e efémera libré nupcial.


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IMAGENS, FONTE:
OISEAUX DE PARADIS
Publié par Anthus Bertrand. Prétre pinx, Sculp. var., Lesauvage Imp.. s/l, s/d., s/n. (século XIX). 40 estampas.