• ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE
    O VIRGEM NEGRA
    - FERNANDO PESSOA EXPLICADO
    ÀS CRIANCINHAS NATURAIS E ESTRANGEIRAS,
    POR M.C.V., POR MÁRIO CESARINY

    CLAUDIO WILLER


 

Desde a primeira vez que esse livro de Cesariny chegou a minhas mãos, eu o vi como desafio à interpretação. Por isso, acabei por escolhê-lo como tema de ensaio, em um curso sobre continuidade e ruptura na ficção portuguesa contemporânea. Tratar de O Virgem Negra é examinar um objeto estranho sob o ponto de vista literário pelo que tem de esdrúxulo, e mais, de agressivo, de uma certa dureza em sua relação com o leitor.

Logo no início, os heterônimos manos de Pessoa Masturbam homens de as-/ Pecto decente nos/ Vãos de escadas. A passagem é repetida, como um refrão no final do mesmo trecho, intitulado Prótese, sobre supostas relações de Pessoa (ou melhor, de um pseudo-Pessoa, enunciador fictício de O Virgem Negra) com a filosofia – de Platão, Descartes, Heidegger e Sartre – e a literatura - de Shakespeare, Gil Vicente, os clássicos gregos, Homero, Eurípedes, Sófocles, Ésquilo, e principalmente Poe -, mas sugerindo devassidão: On ai me on por delante/ On ai me on por detraz/ La noche se puso fria? On ai me on. Que será?

À frente, principalmente na segunda parte do livro, o leitor irá encontrar adulterações da poesia de Pessoa, submetida ao deboche e tratamento picaresco. Um exemplo, a versão de Ela canta, pobre ceifeira…: no lugar de A ciência/ Pesa tanto e a vida é tão breve!/ Entrai por mim dentro! Tornai/ Minha alma a vossa sombra leve!/ Depois, levando-me, passai!, [2] Cesariny faz O homem pesa tanto e a matriz é tão leve!/ Entrai por mim dentro! Tornai/ Meu ânus o vosso almocreve!/ Depois, levando-me, passai. Há primores da enunciação direta: O Álvaro gosta muito de levar no cu/ O Alberto nem por isso/ O Ricardo dá-lhe mais para ir/ O Fernando emociona-se e não consegue acabar. Como se não bastasse, os heterônimos participam de uma orgia pederástica: O Fernando o seu maior desejo desde adulto/ (Mas já na tenra idade lhe provia)/ Era ver os hètèros (sic) a foder uns com os outros…

Algo desse feitio haver sido aceito, ter passado em brancas nuvens, sem uma comoção mais forte, mostra o quanto Portugal mudou de 1974 para cá. Por muito menos, obras, do próprio Cesariny e outros surrealistas portugueses foram censuradas durante o regime salazarista. Entre outras, de Cesariny, Louvor e simplificação de Álvaro de Campos, de 1946, que teve sua primeira versão publicada, de 1953, mutilada pela censura, pelas críticas diretas ao salazarismo.

O Virgem Negra é dividido em três partes. A primeira é um pseudo-depoimento de Pessoa. Opina sobre as comemorações do centenário pessoano em 1988 e o traslado de seus restos mortais; restos esses bem conservados, embora enegrecidos. Daí o título, O Virgem Negra. O tema será retomado adiante: O Virgem Negra, tal me descobriram/ Cincoenta anos depois,/ Em minha infusão estou. Tombam, deliram/ Em vão quantos seguiram. Portanto, o livro apresenta a elocução de um morto, um fantasma comentando as comemorações em sua homenagem.

Essa primeira parte de O Virgem Negra é especialmente complexa. Há um jogo de dois planos, confundindo-se um hipotexto, uma fala muito direta, crua, sem meias-palavras, ao tratar da suposta vida sexual de Pessoa, e um hipertexto, mais que intertexto, nas relações sugeridas com a literatura e a filosofia. É como se Cesariny disparasse em várias direções. Cita Pessoa: Não sou nada/ Nunca serei nada/ Não posso querer ser nada… Lembram-se? Comenta, na voz do pseudo-Pessoa, o ensaio de Mário Sacramento em que foi denominado de anti-gênio, endossando-o. Remete, em nota, às cantigas de escárnio, e, de modo descontínuo, fragmentário, como se fosse uma colagem, faz observações sobre suas fontes, sua relação com a literatura portuguesa, inglesa e francesa. Há uma passagem mais longa, quase prosa, toda de alusões, sobre Poe e uma observação sobre a relação com esoterismo, tema que, adiante, será retomado: Aqui os digo e confesso,/ Aqui os confesso e nego:/ Dei muita leitura à vista/ E muitas voltas à pista/ Mas para bom alquimista/ Nunca passei do nigrêdo.

A segunda parte de O Virgem Negra é a mais nitidamente paródica, no sentido dado ao termo na teoria literária. Consiste em pastiches e adulterações dos poemas de Pessoa: entre eles, alguns dos mais conhecidos. Há uma interpretação, no sentido da dessublimação, de revelar um conteúdo sexual latente, reproduzindo o poema na forma e ritmo, mas com substituições, como no exemplo já citado de Ela canta, pobre ceifeira… Ou em Contemplo o lago mudo/ Que uma brisa estremece./ Não sei se penso em tudo/ Ou se tudo me esquece trocado por Contemplo o lago mudo/ Que uma brisa sacode./ Não sei se fôdo tudo/ Ou se tudo me fode. E, em vez de Põe-me as mãos nos ombros…/ Beija-me na fronte…/ Minha vida é escombros,/ A minha alma insone, Cesariny escolheu Põe-me as mãos no sexo,/ Beija-me na coxa,/ Abre-me no plexo,/ Uma ferida roxa.

Isso lembra as “correções” lautreamontianas de trechos de Pascal, Vauvenargues, etc. Mas essas correções não são no sentido da “esperança”, como pretendia o autor de Poesias, [3] mas da sodomia, sexo perverso e masoquismo. Têm parentesco, por isso, com certas brincadeiras estudantis com os textos de literatura clássica, debochando deles, e, evidentemente, com a tradição picaresca que passa, entre outros, por Bocage. De qualquer modo, mesmo se o quisesse, Lautréamont não poderia, em 1869/70, utilizar, com tamanha liberalidade, tanta linguagem chula, então reservada ao escaninho dos licenciosos e libertinos. Por muito menos que isso, Os Cantos de Maldoror deixaram de ser distribuídos.

Há mais adulterações através da substituição em O Virgem Negra. O famoso poema sobre o Oriente de Dois excertos de odes, de Álvaro de Campos, tem a noite, de Vem, Noite, antiqüíssima e idêntica, Noite Rainha nascida destronada, trocada pela vulva: Vem, Vulva, antiqüíssima e idêntica/ Vulva Rainha nascida destronada morta , além de mais substituições conseqüentes, a exemplo de Noite/ Com as estrelas lantejoulas rápidas por Vulva/ Com teus pentelhos lantejoulas rápidas. Termina, na versão de Cesariny, com divindades orientais, sexualizadas, Çiva-Parvati e Ardhanarishwar, no lugar do Deus cristão e do Cristo, vivos, existentes e mandando em tudo.

É curiosa a sugestão de um Pessoa com dupla identidade sexual, pederasta e ao mesmo tempo assexuado. Assim, na versão de Isto, é substituído por Sentir? Sinta quem lê! por Colhões tenha quem me lê. E o poema seguinte traz uma transcrição literal de Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar…, mas intercalado por frases como A Nini Bebezinho/ Do Ibi/ Dá Oféli/ Bjinho?, e um “comunicado” de Álvaro de Campos da parte do abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, fechando com O teu Nininho, Bèbè Fera/ É o maior bjinho/ De noite ser, e primavera,/ E eu estar de olhos fechados.

Nessa passagem, Cesariny deixa de lado a adulteração apenas dos poemas já publicados em Fernando Pessoa – Obra Poética, e ataca textos vindos à luz mais recentemente; especificamente, as cartas a sua presumível namorada Ophélia de Castro. Dá a impressão de acompanhar, entre outros, Yvette K. Centeno, importante estudiosa de Pessoa, em Ophélia – bebezinho ou o horror do sexo, ensaio que compõe a coletânea Fernando Pessoa: o amor, a morte, a iniciação. [4] Como chave dessa passagem de O Virgem Negra, e de outras também, basta citar esse título de ensaio e mais seu início: As cartas de amor de Fernando Pessoa, publicadas por David Mourão-Ferreira (Lisboa, Ed. Ática, 1978), demonstram à saciedade a impossível relação do poeta com o outro, sendo o outro mulher.

Daí por diante, ainda na segunda parte de O Virgem Negra, são deixados de lado os pastiches de poemas pessoanos, em favor de um trecho no qual a orgia sodomita recebe a visita de Aleister Crowley, seguindo-se a transcrição de um escabroso ritual de magia negra, presumivelmente de autoria do fundador da Ordo Templo Orientis.

Completam a segunda parte um trecho aludindo a Raul Leal, O único verdadeiro doido do Orpheu. Esse tema, da relação de Pessoa com integrantes “menores” de Orfeu, será retomado na terceira parte de O Virgem Negra. Inclui uma reflexão sobre poesia e vida, ao contrastar alguém que viveu intensamente e escreveu pouco, e a contenção pessoana no plano pessoal, associada a sua extraordinária produtividade: Ninguém lhe invejasse aquela luxúria de fera?/ Invejava-a eu. Pois O Raul Leal era/ O único não-heterônimo meu, e mais, O Raul era/ Orpheu, e, ainda, ambos somos um/ Dos extremos do mal a continuar-se. Portanto, trata da contradição entre poesia e vida, ao trazer à tona o mais “maldito” dos integrantes daquela geração.

Há, ainda, alusões a Camões e seu português mais castelhano (que suscitou críticas na época de publicação de Os Lusíadas, coincidindo com a incorporação de Portugal à Espanha, depois do desastre de Alcácer-Quibir e da vacância do trono), em confronto com aquele de Pessoa, o galaico-português/ Que ele desfez/ E eu não. Finalmente, uma das chaves para interpretação do livro todo, a transcrição de mais um dos poemas iniciáticos ou esotéricos de Pessoa, Na sombra do monte Abiegno, seguida de Três voltas dei ao castelo/ sem achar por dond’entrar. Portanto, Pessoa seria o adepto que não consegue penetrar na montanha simbólica, acesso ao castelo iniciático, para alcançar o Graal.

A terceira parte, aquela propriamente em prosa, recorre à narrativa epistolar. São duas pseudo-cartas de Raul Leal, a Sá Carneiro e a Fernando Pessoa, e outras duas, respectivamente de Pessoa e Álvaro de Campos, a João Gaspar Simões.

Na primeira da série, Raul Leal se declara endemoninhado, atacado por espíritos inferiores, em um microcosmo da guerra de 1914-18, em luta direta com o Kaiser, além de haver chegado ao auge da “detrésse” material. Faminto e disentérico, sofre com a sífilis e os tratamentos para curá-la. Por isso, delira: … não quero mais sonhar o sono da Fome, da Dissolução e intensificando profundamente os meus devaneios efêmeros quero dar-lhes enfim a Força, a Viabilidade de Vida! O trecho segue, em tom cada vez mais desesperado, dando dimensão metafísica à sua situação através do uso abusivo de maiúsculas: De abismo em abismo espiritual cada vez mais me entranharei em Mim que Me erguendo à Pura Harmonia, à Condensação Pura de Força, à Condensação em Si, Força em Si, todo finalmente Me transcenderei… Sátira, portanto, aos maneirismos de vocabulário e repertório associados ao espiritualismo e esoterismo na passagem dos séculos XIX para XX, que tanto influenciou a geração de Orfeu.

Na segunda carta de Raul Leal prosseguem as lamentações: Em Setembro para fugir ao despedaçamento Angustioso em que me lançava um meio profundamente depressivo deixei Madrid mas evitei a Depressão para cair num abismo de Opressão cem vezes mais tenebroso. E, de modo mais paroxístico ainda, Seja como for só vejo Trevas e Trevas de Vácuo. Portanto, Cesariny introduz um personagem que lembra os “poetas-miséria”, os hiper-malditos do Romantismo ironizados por Gautier, Corbière e Lautréamont. [5] A carta termina com Leal cobrando uma promessa de transfiguração e transcendência através dessa dilaceração, que equivaleria à ascese: … Sim, o embruxado se tornará Mago! Nisso confio e portanto não temo a Prova Máxima que mais Engrandecerá o Meu Espírito, Infinitisando-o

A terceira carta é uma retificação de Álvaro de Campos ao que João Gaspar Simões escreveu sobre esoterismo em Pessoa e sua relação com Aleister Crowley, entre outros lugares em seu Vida e Obra de Fernando Pessoa, História duma Geração, [6] e nas notas da Obra Poética. Refuta a qualificação de Crowley como “charlatão-mago inglês”: seria em todo caso mais ponderado chamar-lhe charlatão e mago sem hífen, já que o rosto da luz deve formá-lo a sombra e não existe água sem terra por onde corra. Questiona ainda Casais Monteiro, que atribuiu o Hino a Pan, traduzido por Pessoa, a “um autor inexistente”. Sugere bibliografia, que eu visivelmente não li, diz, de Carolina Michaelis de Vasconcelos, Teixeira Rego e Sampaio Bruno. Seguem-se doze páginas de resumo claro e consistente da obra e trajetória de Crowley (que coincidem com os capítulos sobre aquele mago em obras como O Oculto de Colin Wilson, ou História da Filosofia Oculta de Alexandrian). Portanto, prossegue o trecho sobre Crowley da segunda parte. Explica-se: Pois o que eu quero dizer-lhe e espero saia agora sem maiores arredores, é que o principal e talvez único responsável do desconhecimento entre nós da vida e obra do Aleister Crowley, sou eu, o Fernando Pessoa.

E faz ensaio sobre o próprio Pessoa, ao relacionar, nessa passagem, o poema O Último Sortilégio a Crowley, seus procedimentos e suas idéias. Temos, portanto, inter e intratextualidade, ou, ao menos, relações complexas, nada lineares, entre diferentes trechos de O Virgem Negra, e destas com a obra pessoana. O Último Sortilégio, de 1930, nas palavras de Pessoa, interpretação dramática da “magia da transgressão” (conforme nota em OP), pode mesmo ser uma alusão à doutrina de Crowley. Há nele uma teologia ao contrário, já que potências infernais podem ser sacras e deidades são ctônicas, vêm das profundezas, com a inversão da salvação cristã. Em vez da alma salvar-se e o corpo perder-se, Meu ser essencial se perca em si,/ Só meu corpo sem mim fique alma e ser! (…) “Converta-me a minha última magia/ Numa estátua de mim em corpo vivo! Morra quem sou, mas quem me fiz e havia, Anônima presença que se beija,/ Carne do meu abstrato amor cativo,/ Seja a morte de mim em que revivo:/ E tal qual fui, não sendo ainda, eu seja!” Nesse poema ainda há uma evocação, uma varinha, é traçado um círculo, mas o celebrante não é ouvido pelas sacras potências infernais. Diante dele estão as longínquas deidades do atro poço, que meu vendido ser consumirão.

Por isso, é plausível que O Último Sortilégio, no qual a morte toma o lugar da ressurreição e o ser só é possível enquanto nada, seja mesmo uma tradução do pensamento de Crowley. Cesariny sugere ainda, na voz do pseudo-Pessoa, interpretações para a transcrição de Na sombra do monte Abiegno e, por extensão, a outros dos poemas iniciáticos de Pessoa: Há que rever a minha teoria da libertação da mente pela paragem do corpo e atravessar de vez toda a zona de sombra do Monte Abiegno…

Há mais comparações entre Pessoa e Crowley. Através do seu Pessoa apócrifo, Cesariny busca demonstrar que o poema Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar, de 1930, [7] apresenta coincidências com The Sevenfold Sacrament de Crowley: Se eu li ou não li este texto, antes de ter escrito o meu, não sei em verdade dizer – o que não torna menos inquietante a questão, de importância nula se só literariamente encarada. A observar neste poema, Aqui na orla da praia…, o neo-platonismo de versos como A vida é como uma sombra que passa sobre um rio, ou Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu, nos quais o mundo fenomênico é sombra, como aquela do mito da caverna.

A carta que encerra O Virgem Negra seria de Álvaro de Campos para João Gaspar Simões. Equivale a um acerto de contas com o ensaísta e por extensão com Presença. O pseudo-Álvaro, depois de reiterar a pederastia, na posse de todos os etc. com que vergastei e comi aquela criançada toda em idade de ir para a marinha de guerra inglesa, conta que caiu da cadeira durante uma conferência de Simões em 1977, apenas e só dedicada à exaltação maluca do papel nadador-salvador que Presença teria desempenhado no resgate de Orfeu. O acidente ocorre no momento em que Simões revelava à assistência que o Fernando Pessoa era da seita do Crowley, o bruxo. Isso, mais de quarenta anos depois de o meu irmão lhe ter explicado ao tim-tim não ser correligionário de coisa nenhuma, sequer dele mesmo. A seguir, ironiza o catolicismo de José Régio, designado, lembrando as referências a escritores nas Poesias de Lautréamont, como um pingüim recuperado da Antártida. Questiona haverem proclamado Pessoa o maior poeta português vivo: são letras muito perigosas e passíveis de muita ondulação, pois, uma vez ultrapassado o “hoje” e enterrado o “vivo”, este fica pronto para passar à fase de “menor poeta morto”. Alega que as dúvidas de Simões quanto à envergadura de Pessoa como crítico se devem ao ressentimento, pois o autor de Mensagem se havia furtado a escrever prefácios para obras de Simões e de Casais Monteiro.

Cesariny conclui com uma interpretação de Pessoa: O meu irmão, dr. Gaspar Simões, foi sempre um aldeão. Pior que aldeão: um saloio remediado, como algumas vezes, com muito amor, lhe chamei. Cita passagens bucólicas da poesia pessoana. Indaga: E que até o poema onde ele tenta fixar a lume esperto o que ele quer que acreditemos ser “o cerne da sua filosofia” seja dirigido a uma ceifeira que ele nunca viu antes em toda a sua vida? E fecha com sátira da sátira e paródia da paródia: Tenho para mim que o rocinante que assina M. C. V. e lhe chamou “aldeão do mundo a haver”, nisso, acertou, retirado o “mundo”, e o “a haver”, que bem se vê serem geito (sic, assim como a pontuação) de redondilha.

Mas o que é O Virgem Negra, sob o ponto de vista dos gêneros? Como classificar essa obra? Pode ser considerado narrativa de ficção? Afinal, dois terços dela são em versos. Contudo, sendo uma paródia, estamos diante de falsas questões. Conforme bem observa J. Cândido Martins em Teoria da Paródia Surrealista, [8] citando Linda Hutcheon com propriedade, a paródia é meta-gênero, um gênero de gêneros, por ser uma reescrita de outra obra, reaproveitamento de um alotexto, através de sua recontextualização: A paródia não é um gênero, mas uma modalidade discursiva tão antiga quanto a própria literatura. De natureza intertextual, esta forma de discurso pressupõe sempre a relação de um texto (texto parodístico) com outro texto (texto parodiado); mas também a relação de um texto com um gênero ou subgênero literário.

É preciso registrar esse ensaio, Teoria da Paródia Surrealista de J. Cândido Martins. [9] Serviu como atalho com relação a muito do que se segue. A presente análise não acompanha as 7 páginas especificamente dedicadas por Martins a O Virgem Negra, e não endossaria a utilização da noção de ansiedade da influência de Harold Bloom; menos ainda, a de uma rejeição edipiana de Pessoa por Cesariny. Mas utilizo-o bastante para chegar ao que interessa em matéria de paródia, sátira, carnavalização, humor negro e tópicos correlatos.

O enquadramento de O Virgem Negra em modalidades e gêneros comporta mais observações. Está em exame uma obra surrealista, vinculada a um movimento que aboliu fronteiras entre gêneros, bastando lembrar a sobreposição de ensaio, relato e poesia em Nadja ou O Amor Louco de Breton. Daí Martins corretamente observar que, no surrealismo, a narrativa é … um modo literário que se confunde com a própria Poesia, decorrente de uma propositada abolição de fronteiras modais ou genológicas.

E há várias “histórias”, narrativas ficcionais implícitas ou explícitas, em O Virgem Negra. Seu protagonista (e narrador) seria Fernando Pessoa; em um dos trechos, como Álvaro de Campos. Ao pôr em cena o heterônimo Álvaro de Campos e ao referir-se aos demais heterônimos, Cesariny faz meta-ficção e hiper-ficção. Afinal, heterônimos são, por sua vez, criaturas ficcionais, personagens inventadas por Pessoa. E são, efetivamente, personagens literários, pois receberam pseudo-biografias, conforme foi documentado, entre outros lugares, na Nota Preliminar às Ficções do Interlúdio na edição de Obra Poética, e principalmente nas respectivas notas de Maria Aliete Torres Galhoz a essa nota, nas quais é comentada a coterie inexistente de Pessoa.

A observar que os heterônimos principais, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, são uma ficção literária e também extra-literária, conforme se depreende da correspondência Pessoa – Sá Carneiro (com trechos citados nessas notas de OP). Nela estão blagues, brincadeiras, nas quais lhes era atribuída existência real, como a da loja Caeiro descoberta em Lisboa.

Há uma relação ambígua, ambivalente, com duplo sentido, entre Cesariny e Pessoa, em O Virgem Negra (e outras obras do surrealista português, conforme será visto adiante). De um lado, Pessoa é negado, especialmente nas adulterações e “correções” de seus poemas, como as citadas, que, em uma leitura mais direta, referencial, lhes dão um sentido contrário ao do original. De outro, Cesariny prossegue um jogo, um artifício literário utilizado por Pessoa, que consistiu em inventar personagens e atribuir-lhes textos. E confunde, deliberadamente, vários níveis da ficção e “realidade”. Por exemplo, através da ficcionalização de um personagem já por si fictício, Álvaro de Campos, que adquire vida própria em O Virgem Negra, e cuja fala por sua vez ficcionaliza um personagem historicamente real, Pessoa. Desse modo, Cesariny inverte o jogo pessoano, ao estendê-lo e prossegui-lo: além de atribuir textos a personagens inventados, inventa textos atribuídos a Pessoa.

Criar pseudônimos não representa novidade em literatura. Contudo, a heteronímia pessoana é típica e original. Nenhum outro autor se desdobrou em alteregos desse modo, bem diverso de Gérard Labrunie assinar como Gérard de Nerval, Paul Eluard chamar-se Eugène-Emile-Paul Grindel, ou Isidore Ducasse adotar o nome de Conde de Lautréamont.

Meta-ficção, colocando em cena protagonistas ou personagens das narrativas de outro autor, também não é novidade. Foi praticada de modo genial por Jorge Luis Borges, com seu Tadeu Isidoro Cruz encontrando Martin Fierro, entre outros. Mais recentemente, e a propósito de Pessoa, temos O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago, no qual o protagonista, Ricardo Reis, ficcional, fala de um personagem real, seu criador, Fernando Pessoa, referindo-se a fatos históricos e biográficos. Mas pode-se ver esse procedimento, em Cesariny, como manifestação da rejeição surrealista ao realismo e naturalismo literários, vigorosamente expressa desde o primeiro Manifesto do Surrealismo de André Breton: …a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. Sob esse aspecto, O Virgem Negra e O ano da morte de Ricardo Reis de Saramago situam-se em campos opostos. Em Saramago, o Pessoa histórico é respeitado; em Cesariny, é subvertido.

Assim, através desses procedimentos - adulterações de poemas pessoanos e depoimentos apócrifos nas vozes de Pessoa e Álvaro de Campos -, O Virgem Negra sugere, de modo oblíquo, divergente e transgressivo:

- Uma reavaliação de integrantes “menores” de Orfeu, como Raul Leal;

- A discussão da sexualidade (ou sua sublimação, ou supressão) em Pessoa;

- Algo como uma natureza íntima de Pessoa, importante na gênese e para a melhor compreensão de sua obra, seu caráter de “saloio”, “aldeão”;

- O exame da relação de Pessoa com esoterismo e ocultismo em geral, e com Crowley em especial.

Este tópico corresponde a duas das passagens de O Virgem Negra, conforme já visto. Há um relato, ou sub-enredo, tratando da relação entre Pessoa e Crowley. E, nas passagens finais, é o presumível fantasma de Álvaro de Campos que intervém na conferência de João Gaspar Simões para voltar a falar sobre o “Master Therion”. É como se fosse sugerida uma variante ao que Yvette K. Centeno afirma sobre esoterismo em Pessoa:

Correndo o risco de escandalizar, direi mesmo que mais que poeta Fernando Pessoa foi um filósofo hermético, consciente e assumido. A prática da poesia, no seu caso como no dos trovadores influenciados pelo maniqueísmo, foi uma prática mística e não apenas literária, ao contrário do que se tem julgado. Só a leitura da documentação em que ele se debruça sobre as doutrinas iniciáticas nos permite ajuizar do peso que para ele têm.

João Gaspar Simões, em sua biografia de Pessoa, já havia examinado o esoterismo e a iniciação em Pessoa; mas, em certa medida, reduzindo sua importância, ao tratá-los como simulação. Em toda uma bibliografia recente, o assunto é reexaminado. Um exemplo é o trecho citado de Yvette K. Centeno, além das contribuições de Antonio Quadros, Dalila Pereira da Costa (a meu ver, com um viés católico), e, principalmente, do ensaio-dossiê O Mistério da Boca-do-Inferno, de Victor Belém, [10] que, no meu entender, esclarece de modo definitivo as dúvidas sobre a relação Pessoa – Crowley e a simulação de suicídio deste último (com a participação ativa de Pessoa). A informação coletada e apresentada por Victor Belém coincide perfeitamente com o que Cesariny subentende e sugere a respeito em O Virgem Negra, e corrobora sua acusação dirigida a Simões e Casais Monteiro, de distorcerem o exame dessa questão em seus estudos pessoanos.

Interessa deter-se na irrupção de Crowley em O Virgem Negra, por aquele mago haver proposto a magia da transgressão. Cesariny valer-se dessa expressão pode ser entendido como alusão à transgressão no sentido que o termo adquiriu a partir de Georges Bataille, que o associou ao compromisso que a literatura teria com o Mal, conforme é dito em A Literatura e o Mal. As expressões “transgressão” e “transgressivo” acabaram por tornar-se chavão e moeda corrente, através da utilização abusiva em crítica literária e na imprensa em geral. Aplicá-las a O Virgem Negra equivale a resgatá-las no sentido correto. Ainda mais associadas a Crowley, metáfora viva da transgressão, no sentido dado por Bataille.

Mesmo que inexista registro de Bataille haver tomado conhecimento de Crowley, ambos têm, comprovadamente, um fundamento em comum, o gnosticismo dissoluto. Dispenso-me de ampliar aqui o exame do gnosticismo em Bataille, bem comentado em um ensaio recente de Eliane Robert de Morais, [11] pois isso equivaleria a abrir um novo campo, afastando-me do tema em exame. Mas o gnosticismo neo-platônico é evidente em Pessoa, conforme observado aqui (a propósito de O Último Sortilégio), e também em ensaios como o recente Pessoa e a visão gnóstica do tempo, de Armando Nascimento Rosa. [12] Cabe mencioná-lo, pelo seguinte: Cesariny não apenas examina e comenta neo-platonismo e gnosticismo em Pessoa, mas sugere vínculos com essa aparente confluência de licenciosidade e misticismo, o gnosticismo dissoluto.

Conforme se vê, O Virgem Negra é substancioso, pelo que sugere e subentende. No plano do conteúdo, contém interpretações da vida e obra pessoana, e idéias sobre a relação entre literatura e vida, a esfera simbólica e aquela do “real”. No plano formal, suas 156 páginas ofereceriam material para ilustrar e discutir uma série de contribuições das teorias literárias à compreensão da sátira e paródia, e, ainda, da inter, intra e hiper textualidade, bem como da polifonia, dialogismo e carnavalização.

Insistindo no caráter híbrido de O Virgem Negra, os poemas, ou pseudo-poemas pessoanos que preenchem quase toda a segunda parte são, obviamente, paródias, assim como sua classificação como texto dialógico também é evidente, já que a paródia é, no mínimo, o contraste de dois textos, portanto de duas vozes. Lembrando as definições propostas por Linda Hutcheon, [13] o prefixo para significa contra-canto, e tem dois sentidos: de oposição entre dois textos, onde um ridiculariza o outro, e ao longo de, assim sugerindo acordo ou intimidade, em vez de contraste. Portanto, são paródicas as auto-referências, os comentários e intervenções metalinguísticas, assim como as utilizações de textos alheios, recontextualizando-os. Daí vem uma característica especialmente interessante da paródia, sua ambigüidade ou ambivalência; isso, lembrando também o modo como Kristeva utiliza a noção de ambivalência em seu conhecido estudo sobre polifonia e intertextualidade, Por uma semanálise.

Em outras palavras, e conforme também observam Hutcheon e Martins, a paródia é subversiva, sem dúvida, mas dentro de limites. Está entre suas características ser uma subversão consentida, em certa medida legitimadora do original parodiado, ao tomá-lo como modelo, partilhando seu código. Duchamp haver acrescentado bigodes à Mona Lisa em LHOOQ! é ataque ao quadro de Leonardo da Vinci; mas também é reconhecimento da sua importância. Daí a duplicidade da paródia, o que Martins chama de caráter ambivalente, podendo ser …ora acentuadamente conservadora, animada pela intenção de censurar ou refrear certas inovações mais ou menos polêmicas; ou marcadamente revolucionária, sempre que rompe, de um modo provocatório e iconoclasta, com regras, modelos ou códigos literários mais ou menos exaustos numa dada época, visando, dum modo preferencial, manifestações literárias de natureza epigonal ou a corrosão das auréolas mitificadoras de certos escritores e suas obras.

O O Virgem Negra apresenta essa duplicidade ou ambigüidade. Não lança nenhuma dúvida quanto a Pessoa ser autor referencial. Mesmo assim, é paródia revolucionária, iconoclasta, ao atacar, não só Pessoa, mas os epígonos e diluidores pessoanos. Faz parte de um acerto de contas de Cesariny, iniciado com Louvor e simplificação de Álvaro de Campos, e que ainda seria crescido, em Nobilíssima Visão de 1991, com um poema intitulado Pastelaria, debochando de Tabacaria.

No entanto, semelhante exame, à luz dessas contribuições da teoria literária, pode fazer com que se perca de vista o que O Virgem Negra tem de específico e original. Uma linha de análise como aquela empreendida em Uma Teoria da Paródia de Hutcheon, ao comparar obras e autores distintos, também os equipara. Mesmo respeitando a intenção das obras, em sua visão pragmática (nisso diferindo dos formalistas), pode ocultar diferenças, em lugar de destacá-las; ainda mais ao abrigá-las sob o rótulo de pós-modernidade. O mesmo vale para a mobilização dos conceitos bakhtinianos de polifonia e dialogismo. Demonstrar que O Virgem Negra é obra polifônica e dialógica, depois do que já foi observado, seria chover copiosamente no molhado.

Pode ser mais produtivo examinar O Virgem Negra como sátira. Sendo intertextual, a paródia também tem uma dimensão extra-textual, na medida de sua intencionalidade. Portanto, confunde-se com a sátira. E o flagrante achincalhe, seja pelas referências à vida sexual de Pessoa, seja pelo modo como são adulterados alguns de seus poemas, situa-os em uma região de encontro de sátira e paródia. Talvez em um limite da paródia, ou além desse limite. Cabe, também, sua denominação como carnavalização pornográfica do texto pessoano (Martins, op. cit), por ser próximo de um discurso do baixo corporal bakhtiniano, em antinômicas auto-relações sexuais (idem).

Temos então, pensando O Virgem Negra como sátira, uma leitura menos formalista, mais coerente com a intenção do próprio Cesariny. É preciso lembrar a combatividade do surrealismo, que sempre se apresentou como movimento contra algo: a ordem estabelecida, no plano mais geral, a narrativa realista, no plano literário. E, de modo mais específico ainda, os ataques diretos do surrealismo contra celebridades literárias, a exemplo do manifesto Un cadavre, contra Anatole France, que provocou escândalo nos anos 20, bem como o tratamento dado a Paul Claudel, a intervenção na homenagem a Saint-Pol-Roux de 1925, entre outras.

Martins também acrescenta algo ao associar paródia a humor negro, apresentado como contribuição especificamente surrealista: Para além da centralidade da técnica surrealista do humor negro, a importância da escrita paródica, ao nível da doutrinação e da prática poética dos surrealistas, é explicitamente referida por vários críticos. De fato, O Virgem Negra ilustra o humor negro, tal como examinado na Anthologie de l’humour noir de Breton [14] e por ele definido como revolta superior do espírito. A transcrição de Crowley em O Virgem Negra representa um perfeito encontro de paródia e humor negro, pelo selvagem ritual de magia negra nelas descrito. Mas com uma ressalva (com relação aos comentários de Martins): o humor negro não só engloba sátira e paródia, mas extrapola, vai além da paródia, contrastando com sua função construtiva. As duas modalidades diferem no que o humor negro tem de intrinsecamente perverso e destrutivo. Tanto é, que na antologia de Breton figura com destaque o Marquês de Sade, cuja obra tem pouco a ver com paródia, bastante com sátira, mas a ultrapassa. Postular a crueldade como fundamento da ordem natural das coisas é sátira a Rousseau, ao Iluminismo, ao cristianismo, etc; mas, principalmente, é um pensamento filosófico e político autônomo, do qual operações textuais e a mobilização de recursos literários são uma conseqüência.

Cesariny não escreveu O Virgem Negra com o propósito de fazer exercícios textuais, algum modo de “experimentação”, mas com alvos definidos. Estes, conforme já observado, são a oficialização de Pessoa e sua conseqüente normalização, empreendida, no entender dos surrealistas portugueses, pelos integrantes da geração Presença. Portanto, João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro seriam, mantido o paralelo com o surrealismo francês, os Anatole France e Paul Claudel de Cesariny. Isso, desde 1946, época da formação do primeiro grupo surrealista português e, coincidentemente, de seus primeiros panfletos contra Simões.

O projeto de reexame de Pessoa é evidente em Cesariny, desde Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, escrito em 1946 e publicado em 1953, que visava aos …festejos com uma bela ligação de girândolas, das quais virão a sair grandes fichas obnóxias com o seguintes dizeres: Poetas Pataratas: Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, etc., etc., e etc. – Poetas Muito Bons e de Muito Juizinho: este, aquele, aqueloutro. É como se avisasse que ainda faria algo com a virulência de O Virgem Negra, ao se dispor a ” simplificar” Fernando Pessoa tomando de empréstimo algo de sua linguagem, e reduzi-lo ao voto de um barco para o Barreiro.

Adotando o tom das odes de Álvaro de Campos, Cesariny contrapõe Sá-Carneiro a Pessoa em Louvor e Simplificação… Apresenta-o como personagem mais autêntico, pela marginalidade e suicídio: Com certa espécie de solidariedade/ lembro-me de ti, Mário de Sá-Carneiro,/ (…) Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,/ viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se todo cá em baixo…

Não há porque discordar de Martins, quanto à …assinalável diferença com que estes dois poetas de Orpheu são re-avaliados ao nível do intertexto paródico surrealista. Se Pessoa é o poeta que, intencionalmente, os surrealistas desconstroem, como que para exorcizar o fantasma de sua sombra ou onipresença paterna e tutelar, Sá Carneiro, não deixando de ser objeto de várias transformações hipertextuais, é motivo de in-confessada admiração. A observar em Cesariny, em acréscimo, a existência de pares simétricos de poetas. Há um par Pessoa – Sá Carneiro em Louvor e Simplificação…, apenas sugerido em O Virgem Negra através de referências a Sá-Carneiro em sua primeira parte; no entanto, aparece, como se fosse sua versão grotesca, o par Pessoa – Raul Leal. E, no plano histórico, o par Cesariny – António Maria Lisboa, este também poeta de enorme talento, morto muito jovem. Sempre, portanto, um poeta marginal, “maldito”, e outro que, em vida ou através da obra, transcendeu essa condição. É como se ocorressem repetições, em diferentes versões, de uma relação como a de André Breton e Jacques Vaché.

Poderia O Virgem Negra decepcionar ou surpreender a quem procura um “estilo” surrealista? Quando se fala em poesia surrealista, vêm à lembrança, em primeiro lugar, exemplares de uma lírica como a de Union Libre de Breton, que termina assim: …Minha mulher com sexo de alga e de bonbons antigos/ Minha mulher com sexo de espelhos/ Minha mulher com olhos cheios de lágrimas/ Com olhos de panóplia violeta e de agulha imantada/ Minha mulher com olhos de savana/ Minha mulher com olhos de água para beber na prisão/ Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado/ Com olhos de nível de água de nível de ar de terra e de fogo.

É certo que sátira, paródia e jogos intertextuais, além daqueles com homofonias ou aliterações, também fizeram parte da produção surrealista, principalmente nos anos 20, com Robert Desnos e Benjamin Péret. E as pilhagens, adulterações e reescrituras de outros textos têm sua notória raiz nas Poesias de Lautréamont. Em Cesariny, podem ser entendidas, ainda, como exacerbação de um diálogo com outros autores, patente em sua contribuição como tradutor de Rimbaud (com a invenção do esdrúxulo título Uma cerveja no inferno) e Artaud, entre outros.

Mas o surrealismo português, em sua especificidade e excentricidade, acabou por tomar rumos próprios no plano da criação literária. Isso é bem assinalado por Martins, assim como por Perfecto E. Cuadrado no prefácio de sua antologia do surrealismo português A única real tradição viva, [15] ao falar dos seus procedimentos. Em suas palavras, ao Surrealismo português se deve um trabalho de recuperação de formas e sentidos - perdidos ou marginalizados - típicos da poesia popular e de algumas correntes específicas da poesia culta tradicional. Por isso, a subversão desde o texto acabaria, assim, numa subversão do próprio texto, incluindo não só a escrita automática, jogos como o cadáver delicado (ou, como preferiram os portugueses, cadáver exquisito), as perguntas e respostas (sem que um soubesse o que o outro perguntava), o um no outro, porém, indo além, as adulterações e apropriações de textos alheios, remontando-os, descontextualizando-os e fundindo-os.

Em Cesariny, O’Neill, e demais autores associados ao surrealismo português, observa-se esse trânsito, da escrita poética de imagens e associações livres, passando pela sátira e pela paródia, até a pilhagem de outros autores. Foram exímios demolidores do chavão, da frase feita, da idéia recebida, de um estilo que viam como tipicamente português, associando-o ao conformismo e arcaísmo lusitanos.

Utilizando os termos propostos por Octavio Paz, em Os Filhos do Barro, [16] para caracterizar Romantismo e rebelião romântica, a saber, analogia e ironia, pode-se afirmar que, enquanto o surrealismo francês, matricial, pendeu mais para o pólo da analogia, o surrealismo português, mesmo apresentando também uma lírica notável, evidenciou mais o pólo da ironia.

Mas com o que rompe O Virgem Negra, e a que dá ele continuidade? Em primeira instância, é obra de ruptura com a transformação de Pessoa em cânone, sua oficialização, justificando epígonos e imitadores. Mas continua a tradição picaresca, remontando, inclusive, a uma modalidade que prosperou em Portugal, a cantiga de escárnio e maldizer.

No entanto, Octavio Paz possibilita uma resposta melhor à pergunta sobre ruptura e continuidade, ao falar, em Os Filhos do Barro, em tradição da ruptura, superando a dualidade dos temos tradição e ruptura ao deixar de tomá-los como par de opostos:

… Ao dizer que a modernidade é uma tradição, cometo uma ligeira inexatidão: deveria ter dito outra tradição. A modernidade é uma tradição polêmica e que desaloja a tradição imperante, qualquer que esta seja; porém desaloja-a para, um instante após, ceder lugar a outra tradição que, por sua vez, é outra manifestação momentânea da atualidade. A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. (…) Tradição do moderno: heterogeneidade, pluralidade de passados, estranheza radical.

A citação justifica-se, pelo seguinte: à luz do que foi examinado sobre O Virgem Negra, pode-se rejeitar a inclusão dessa obra na categoria da pós-modernidade, tal como proposta, e avaliada de modo positivo, por Hutcheon e tantos outros autores recentes. Uma leitura exclusivamente formal, atenta apenas para a paródia e o intertexto, concluiria que se trata de obra tipicamente pós-moderna. Mas a leitura pela ótica do bom historiador da literatura (e Octavio Paz, em Os Filhos do Barro, faz história não-cronológica, em suas palavras) e pensador político (pois neste e em outros de seus ensaios, o poeta mexicano dá dimensão política à rebelião romântica, nisso acompanhando o pensamento de Breton) chega à conclusão oposta. Permite classificar O Virgem Negra como obra tipicamente moderna, animada pelo mesmo ímpeto rebelde e iconoclasta de românticos e simbolistas mais radicais, de Dada e do surrealismo.

Recorrendo de novo a Octavio Paz, é possível acrescentar mais uma interpretação de O Virgem Negra, como metáfora da própria criação poética, da leitura, e da relação entre ambas, neste período final, mais dinâmico, da modernidade. Em outras palavras: o que Cesariny faz com relação a Pessoa seria uma representação do modo como a criação poética ocorre, como leitura, reaproveitamento, transformação, interpretação e até vocalização de outro autor: A obra não é um fim em si nem tem uma existência própria: a obra é uma ponte, uma mediação. A crítica do sujeito tampouco é equivalente à destruição do poeta e do artista, mas à noção burguesa do autor. Para os românticos, a voz do poeta é a voz de todos; para nós é rigorosamente a voz de ninguém. O poeta não é um “pequeno deus”, como queria Huidobro. O poeta desaparece atrás de sua voz, uma voz que é sua porque é a voz da linguagem, a voz de ninguém e de todos. Qualquer que seja o nome que demos a essa voz – inspiração, inconsciente, acaso, acidente, revelação – é sempre a voz da outridade. (Paz, op. cit.) Ao emprestar sua voz àquela do fantasma de Pessoa, de ninguém e do outro, é como se Cesariny pretendesse realizar essas idéias.

Concluindo, O Virgem Negra traz à tona a conexão entre arte e vida, habitualmente descartada pelo academicismo formalista. Falar de obras, sem referir-se também a autores e suas intervenções e conflitos, é trair um pressuposto do surrealismo, que jamais admitiu a dissociação entre o escrito e o vivido, a criação e o sujeito criador, ética e estética.

A unidade surrealista de poesia e vida, seu propósito de superar a contradição entre o real e o simbólico, entre ação e sonho (Breton), foi tema de comentários meus, entre outras ocasiões em artigo sobre a antologia de Perfecto Cuadrado. [17] Em seu prefácio, é citado um depoimento de Cesariny, lembrando as atividades fortes e jovens no Café Herminius: ações e situações, dizia eu, que podiam muito bem, se inventadas em vez de acontecidas, figurar em algum texto de escrita automática, dentre tantos que os participantes daquelas reuniões produziram.

Também já havia invocado O Virgem Negra, e proposto uma interpretação nesta chave da relação entre poesia e vida, em outra ocasião, em artigo na revista Cult, [18] questionando a crítica de orientação formalista e a exclusão do biográfico em estudos literários. Observava como a defesa do biográfico, a personalização de questões literárias, havia sido feita de modo paroxístico por Waly Salomão, em debate transcrito na revista literária Babel. [19] Por exemplo, nesta provocação: Kavafis nunca recebeu um Prêmio Nobel! Toda a vida dele ele escreveu foi poemas de pegação, de pegação de rapazes que ele encontrava nas ruas, em bares horrendos! Os poemas de Kavafis são pequenos lances de pegação, pegação em quartos escuros de hotéis onde se entra para trepar – TREPAR! E por aí afora, em passagens que parecem ecoar as referências ao sublimado ou reprimido em Pessoa por Cesariny. Tais afirmações, ao pé da letra, seriam redutoras, além de depreciarem Kavafis. Mas o propósito do poeta tropicalista não foi desqualificar o poeta grego, porém questionar, valendo-se do exagero, a dissociação acadêmica entre poesia e vida, o desconhecimento do biográfico a pretexto de examinar a literatura em sua autonomia. Algo semelhante, observava nesse artigo, ao que Cesariny fez em O Virgem Negra, aparentemente tripudiando sobre a memória de Pessoa, para mostrar que poesia é feita por gente de carne e osso, e não uma escritura em abstrato, um fenômeno exclusivamente textual. A crítica de Waly a um tipo de poeta que é totalmente biônico, fabricado nos departamentos de letras das universidades, absolutamente despido de qualquer experiência e se vangloriando disso. Meras estações repetidoras de esquemas, de professores, de departamentos de Letras é correlata (prosseguindo minha argumentação no artigo da Cult) ao que outro poeta contemporâneo, Roberto Piva, disse neste poema: Dante/ conhecia a gíria/ da Malavita/ senão/ como poderia escrever/ sobre Vanni Fucci?/ Quando nossos/ poetas/ vão cair na vida?/ Deixar de ser broxas/ para serem bruxos? [20] É esta - a Malavita – a tônica dominante em O Virgem Negra, em seu ímpeto dessacralizador, iconoclasta, fiel ao espírito do surrealismo.

NOTAS

1. Segunda edição, revista e aumentada, Assírio & Alvim, Lisboa, 1996.

2. Fernando Pessoa, Obra Poética, organização, introdução e notas de Maria Aliete Torres Galhoz, participação de João Gaspar Simões, Editora José Aguilar, 1960.

3. Lautréamont, Obra Completa, Editora Iluminuras, São Paulo, 1997.

4. Ed. A Regra do Jogo, Lisboa, 1985.

5. Mais a respeito nas minhas notas de rodapé de 122 a 125, pg. 279 de Lautréamont – Obra Completa.

6. Simões, João Gaspar, Vida e Obra de Fernando Pessoa, História duma Geração, 2 volumes, Livraria Bertrand, Lisboa, 1980, em sua 10ª parte, Iniciação Esotérica, vol. II.

7. 1930 segundo Cesariny; na edição da Obra Poética de Pessoa, consta como de 1929.

8. Martins, J. Cândido, Teoria da Paródia Surrealista; eds. da APPACDM Distrital de Braga, Braga, 1995.

9. Chegou a minhas mãos através de Mauro Jorge Santos e do seu ensaio Portugal e Manuel de Castro: a viagem interior ao além-mar e além-real, publicado em Agulha, nº 34.

10. Edição da Casa Fernando Pessoa, Lisboa, 1995.

11. Eliane Robert de Morais, O corpo impossível, Iluminuras, 2002,

12. Encontrável em www.triplov.com.

13. Uma Teoria da Paródia, de Linda Hutcheon, Edições 70, Lisboa, s/d.

14. Breton, André, Anthologie de l’humour noir, Jean-Jacques Pauvert, éditeur, Paris, 1966.

15. Perfecto E. Cuadrado, A Única Real Tradição Viva – Antologia da poesia surrealista portuguesa, Assírio & Alvim, Lisboa, 1998.

16. Octavio Paz, Los Hijos del Limo, Editorial Seix Barral, 1974, edição brasileira Os Filhos do Barro, tradução de Olga Savary, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984.

17. A permanência da anarquia – a propósito de uma antologia do surrealismo português, em Agulha, revista de cultura, nº 10, março de 2001.

18. A crise da crítica, revista Cult, nº 49, agosto de 2001

19. Depoimento, Waly Salomão, Babel, Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ano I – número 3, setembro a dezembro de 2000, Santos, SP.

20. Em Ciclones, Editora Nankin, São Paulo, 1997.





IN: Revista Agulha, nº 36.
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DE COOPERAÇÃO
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