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CLAUDIO WILLER
GNOSE, GNOSTICISMO, A POESIA DE HILDA HILST
9. Sem dúvida, Hilda Hilst fez isso

Sem dúvida, Hilda Hilst fez isso. Passagens de sua obra - em Amavisse, a declaração de que o poeta habita nas ardências, e mais, o poeta habita/ O campo de estalagens da loucura , e sua crítica à repressão e ao ascetismo, Ó senhora, porque mora na morte/ aquele que procura Deus na austeridade - permitem associá-la, como já o fiz em Amavisse , de Hilda Hilst: pacto com o hermético , à famosa máxima de William Blake, em O Casamento do Céu e do Inferno : O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria . Ou a uma projeção direta da recomendação do desregramento dos sentidos de Rimbaud.

Mas pode-se, também, observar ambivalência nessa dualidade lirismo-obscenidade. Insisto: poetas não precisam ser ideólogos ortodoxos. Sob a regência do pensamento analógico, para eles, em lugar do isto ou aquilo, existe o isto e aquilo.

Ambivalência já foi vista como qualidade importante em outros poetas - por exemplo, em Baudelaire (por Auerbach e outros de seus estudiosos). É possível ler Baudelaire de ponta a ponta, desde os primeiros poemas de As Flores do Mal , da década de 1840, passando por A Tampa e outros textos blasfematórios, até seus escritos finais, como a crítica a Os Miseráveis, como poeta e pensador gnóstico. Pode-se interpretar o célebre A Carniça e outros poemas "realistas" como retrato ou metáfora do mundo degradado, sob a tutela dos Arcontes e do Demiurgo. E, também, as passagens em que, desde Ao Leitor, de As Flores do Mal , é dito que inferno e mundo são equivalentes, e o verdadeiro inferno é este mundo em que vivemos, algo reiterado no Crepúsculo Vespertino de O Spleen de Paris - Pequenos poemas em prosa : ... eu posso, quando o vento sopra lá de cima, acalentar o meu atônito pensamento com esta imitação das harmonias do Inferno . (do já citado Baudelaire - Poesia e Prosa ). E, especialmente, em uma passagem como esta, dos Escritos Íntimos :

Em que consiste a queda?

Se é a unidade feita dualidade, então foi Deus quem caiu.

Ou, posto em outros termos, não será a criação a própria queda de Deus?

A polaridade aguda, a intensa vivência de antinomias, dotadas de peso ontológico, impulsionaram sua criatividade e estão na base de suas idéias e intuições. Ivan Junqueira, em seu prefácio para As Flores do Mal (na edição citada de Baudelaire - Poesia e Prosa), comenta a religião particular de Baudelaire, estabelecendo um estranho gnosticismo neopagão e maniqueísta em que Lúcifer ocupa todos os altares.

No entanto, contrasta com seu maniqueísmo a idéia das correspondências, de fundo místico e de um hermetismo pronunciadamente monista, que inaugurou uma poética. No soneto Correspondências, A natureza é um templo no qual se ouvem ecos de uma harmonia, de uma vertiginosa e lúgubre unidade . São as mesmas correspondências presentes na poesia de Hilda, em trechos como o aqui citado, de Amavisse , em que ela quis ouvir o vermelho do bronze ; ou em deitei-me como quem sabe o Tempo e o vermelho:/ Brevidade de um passo no passeio, e no restante de sua riquíssima imagética.

Principalmente - e assim como em Hilda Hilst - o gnosticismo de Baudelaire coexiste com o esteticismo, o culto ao belo, e o lirismo da exaltação do corpo feminino e do mundo, como A uma Dama Crioula , Perfume Exótico e A Bela Nau ; ou seu correlato entre os poemas em prosa do Spleen de Paris, o Convite à Viagem . O Baudelaire lírico e apaixonado corresponde, portanto, a uma das dimensões de sua obra múltipla e complexa; em outra, se expressa o pessimista, o crítico radical, através de blasfêmias de fundo gnóstico.

Até onde poderiam ir esses paralelos, aproximando Hilda Hilst de autores tão distintos entre si sob outros aspectos quanto Blake, Baudelaire, Breton, apresentando o pensamento gnóstico como ponte, elo ou fio condutor? Adverti, ao longo deste ensaio, quanto ao risco do reducionismo. Mas, através de doutrinas herméticas, arcaicas, esotéricas, pode-se enriquecer os estudos comparados e, por extensão, a crítica e interpretação de obras literárias. Esta parece ser a opinião, a meu ver ousada, até revolucionária, de Harold Bloom. Em Presságios do Milênio , não apenas examina gnose de um modo erudito, mas declara-se gnóstico. Independentemente da aceitação de sua teoria da influência, ou do modo como tentou configurar um cânone, ele alça a discussão da gnose e gnosticismo em literatura a um novo patamar. Insiste em seu caráter universal (nisso coincidindo com as idéias de sensibilidade religiosa de Sontag e atitude religiosa de Doresse, já mencionadas), associando-o ao xamanismo arcaico:

Um eu mais velho e que é a melhor parte de nós, um eu divino e mágico: essa crença xamanista, que também chamamos de órfica, me parece a origem de todo gnosticismo - judaico, cristão ou islâmico - do gnosticismo secular, alexandrino, chamado Corpus Hermeticus, que se tornou a base de Bruno e outros mistagogos do Renascimento italiano. O xamanismo é universal, e isso talvez explique o curioso universalismo do que os crentes normativos de todas as eras chamam de "heresia gnóstica". (em Presságios do Milênio: Anjos, Sonhos, Imortalidade )

Em Poesia e Repressão , Bloom vai mais longe. Comenta os poetas, muitos dos quais foram implicitamente gnósticos, embora explicitamente mais misteriosos ainda , e afirma que tanto gnosticismo quanto Cabala podem ser instrumentos, mais efetivos que modelos e paradigmas correntes na teoria literária, de interpretação. Referindo-se a um dos ramos do gnosticismo, a gnose de Valentino, diz que: A doutrina valentiniana da criação presta-se ao meu propósito revisionário, que consiste em adotar um modelo interpretativo mais próximo da postura e da linguagem da poesia "moderna" ou pós-iluminista do que foram os modelos filosoficamente orientados. (em Poesia e Repressão - O Revisionismo de Blake a Stevens, Imago, 1994, assim como a citação a seguir)

Ao tratar da Cabala, também desafia paradigmas e teorias literárias: Toda leitura é tradução, e todas as tentativas de comunicar uma leitura parecem provocar uma redução, talvez inevitável. A utilização adequada de qualquer paradigma crítico deveria diminuir os perigos do reducionismo; entretanto, quase todos os paradigmas são, em si mesmos, redutivos. A teologia negativa, mesmo quando beira a teosofia, parece-me a "disciplina" apropriada para as incursões dos críticos literários revisionários na sua incessante busca por outras metáforas para o ato de ler, bem mais do que a lingüística estruturalista ou o raciocínio por negação da filosofia continental.

Aceito isso, adotada essa perspectiva, certamente chocante para as mentes mais cientificistas e positivistas, então haverá muito, ainda, a ser examinado na obra de Hilda Hilst, e de tantos outros poetas inquietos, rebeldes, e, acima de tudo, densos e talentosos.