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OS LIVROS DA WALKYRIA
JÚLIO VERNE
VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS

CAPITULO VIII
Os Galeões da Baía de Vigo

Uma vez ultrapassado o estreito de Gibraltar, o Nautilus entrou no oceano e voltou à superfície das águas, possibilitando-nos os passeios diários na plataforma.

Subi nela imediatamente, seguido de Ned Land e Conselho. Soprava um forte vento do sul. Era quase impossível ficar sobre a coberta do navio, invadida a todo instante por grandes ondas. Portanto, tivemos que voltar para o interior do submarino, depois de aspirar um pouco de ar puro.

Fui para meu camarote. Conselho voltou para o seu, e o canadense me acompanhou com ar preocupado. Nossa passagem rápida através do Mediterrâneo não lhe tinha permitido pôr em prática seus projetos, e ele mal disfarçava a sua contrariedade.

Fechada a porta de minha cabina, Ned Lad sentou-se e disse-me:

- Combinamos esperar uma ocasião favorável e ela se apresentou. Esta noite estaremos a poucas milhas da costa espanhola. O céu está encoberto e o vento sopra do mar para a terra. Deu-me a sua palavr e espero que a cumprirá.

E como continuava calado, ele aproximou-se de mim e disse:

- Esta noite, às nove horas. Já avisei Conselho. A essa hora, o capitão Nemo estará dentro de seu camarote e possivelmente deitado. Os maquinistas e os demais integrantes da tripulação não poderão ver-nos. Ficará na biblioteca, bem perto de nós, esperando o meu sinal. Os remos, o mastro e a vela estão no barco e cheguei até a juntar algumas provisões. Arranjei uma chave inglesa para desapertar as porcas que prendem o barco ao casco do Nautilus. Sessa forma está tudo preparado. Até a noite!

Dizendo isso, o canadense se afastou.

Naquele instante, abriu-se a porta do salão e surgiu o capitão Nemo. Ao ver-me, caminhou na minha direção e me disse sem mais delongas, em tom amável:

- A propósito, professor, estava procurando-o. O senhor conhece a história da Espanha?

Embora conhecendo a fundo a história do seu próprio país, qualquer um que estivesse em minhas condições, irritado e confuso, não seria capaz de mencionar palavra alguma.

- O que me diz? - insistiu o capitão Nemo. - Não ouviu a minha pergunta? - Conhece a história da Espanha?

- Muito pouco - respondi.

- Todos os sábios são iguais - respondeu o capitão. - Não sabem nada! Pois - acrescentou ele. - Vou lhe contar uma passagem interessante dessa história. O capitão acomodou-se em um sofá e eu, mecanicamente, sentei-me a seu lado, na penumbra.

- Sr. Aronnax, preste atenção - principiou ele. Minha narração lhe interessará de certa forma, porque responderá a uma pergunta que sem dúvida formulou outrora, sem obter resposta.

- Sou todo ouvidos, capitão - disse, sem saber aonde queria chegar meu interlocutor e imaginando se aquele incidente se relacionava com nossos projetos de fuga.

- No ano de 1792 - prosseguiu o capitão Nemo -, Luís XIV nomeou para governar os espanhóis, seu neto, o duque de Anjou, que reinou com o nome de Felipe V, que teve de lutar contra muitos inimigos do exterior.

De fato, no ano anterior, as casas reais da Holanda, Áustria e Inglaterra haviam feito um tratado de aliança na cidade de Haya, para usurpar a coroa de Espanha, de Felipe V, e colocá-la em um arquiduque, a quem deram o nome de Carlos III. A Espanha opôs-se a essa coalizão, porém não possuía soldados e marinheiros. Em compensação, tinha dinheiro, com a condição, no entanto, de que seus galeões, carregados de ouro e prata da América, pudessem chegar a seus portos de destino.

Exatamente no ano de 1702, era aguardado um riquíssimo comboio, o qual a França faria escoltar por vinte e três navios, comandados pelo almirante Chateau Renault, uma vez que os marujos aliados utilizavam, nessa época, o oceano Atlântico.

- Tal comboio deveria ancorar em Cádiz, porém, o almirante, ciente de que a frota inglesa estava efetuando um cruzeiro por aquelas paragens, resolveu recorrer a um porto francês.

Os comandantes dos navios espanhóis protestaram contra tal decisão, exigindo que fossem conduzidos a um porto espanhol e indicando, na falta de Cádiz, a baía de Vigo.

Por infelicidade, essa baía forma um baixio muito amplo, que não se pode evitar. Era, pois, mister que se descarregassem os galeões antes da chegada das frotas aliadas.

Teria havido tempo para tal fim, se não houvesse surgido um mesquinho problema de rivalidade.

O capitão Nemo fez uma pausa e perguntou-me:

- O senhor está acompanhando o desenrolar dos fatos?

- Perfeitamente - respondi, sem compreender ainda onde ele queria chegar com aquela lição de história.

- Então, vou continuar. Os comerciantes de Cádiz usufruíam um certo privilégio, o de receberem todas as mercadorias que viessem da América. Portanto, desembarcar os lingotes na baia de Vigo constituía um atentado contra o direito deles. Recorreram a Madri e souberam por meio do fraco Felipe V que o comboio, sem efetuar a descarga, ficaria confiscado na baía de Vigo, até que as frotas inimigas se afastassem. Pois bem, ao mesmo tempo em que se adotava essa resolução, no dia 22 de outubro de 1702, os navios ingleses chegaram à baía de Vigo. O almirante Chateau Renault, apesar da inferioridade de suas forças, bateu-se com coragem; mas quando percebeu que o inimigo iria apoderar-se das riquezas do comboio, incendiou e pôs a pique os galeões, que afundaram com todos aqueles tesouros em ouro e prata que havia trazido da América.

Não havia ainda compreendido que interesse poderia ter para mim essa descrição histórica, quando o capitão Nemo me disse:

- Estamos agora na baía de Vigo e do senhor depende conhecer, em seus detalhes, o segredo dos mistérios que ela encerra.

Levantou-se e convidou-me a segui-lo. O salão estava às escuras; porém, através do visor, as ondas do mar brilhavam. Em volta do submarino, em um raio de meia milha, as águas pareciam impregnadas de uma claridade elétrica, destacando-se perfeitamente do fundo arenoso. Alguns marinheiros, usando escafandros, estavam ocupados em esvaziar tonéis semiapodrecidos e caixas arrebentadas entre destroços escuros. Daquelas caixas e barris saiam lingotes de ouro e prata, e montes de moedas e diamantes. A areia estava repleta deles. A seguir, carregando a preciosa mercadoria, aqueles homens voltaram ao Nautilus, depositavam seus achados e prosseguiam a pesca incessante de ouro e prata.

- O senhor sabia, professor - perguntou-me sorrindo o capitão -, que o mar possuía tantas riquezas?

- Sabia - respondi - , que era avaliada em dois milhões de toneladas a fortuna submersa nas águas.

- Não há dúvidas; porém, para extrair essa fortuna, os gastos eram maiores que o lucro obtido. Aqui, ao contrário, basta recolher o que os homens perderam. - O senhor entende agora porque sou tão rico?

- Entendo, capitão. Entretanto, permita-me dizer-lhe que, ao explorar a baía de Vigo, o senhor nada mais fez do que antecipar-se aos trabalhos de uma sociedade concorrente.

- A que sociedade se refere?

- Uma firma que obteve do governo espanhol o monopólio da busca dos galeões afundados. Os acionistas estão incentivados com o possível grande lucro da empreitada, porque é avaliado em quinhentos milhões o valor das riquezas submersas.

- Quinhentos milhões? - respondeu o capitão. - Eles existiam, porém não existem mais.

- Seja como for - respondi -, não deixaria de ser um gesto de caridade informar os acionistas a respeito da existência dessa fortuna. Em geral, os jogadores costumam sentir menos a perda de suas fortunas que a de suas esperanças insensatas. Além disso, são menos dignos de piedade do que esses milhares de infelizes que poderiam aproveitar tantas riquezas, se fossem repartidas, ao passo que agora de nada lhes servem.

Notei que havia ofendido o capitão Nemo.

- De nada me servem? - respondeu, animando-se aos poucos. - Por acaso, o senhor considera perdidas essas riquezas, porque sou eu quem as recolho? Acha que sou motivado por um fim egoísta, amontoando esses tesouros? Quem lhe disse que não faço bom uso deles? O senhor pensa que ignoro a existência na terra de seres enfermos, de grupos étnicos oprimidos, de miseráveis precisando de alívio e de vítimas a serem vingadas?...

Então, entendi o destino dos milhões despachados pelo capitão Nemo, quando o Nautilus navegava nas águas de Creta rebelde.