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OS LIVROS DA WALKYRIA
JÚLIO VERNE
VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS

CAPÍTULO V
NA EXPECTATIVA

 

Durante vários dias, a fragata seguiu viagem sem incidentes a registrar. Em uma única ocasião pude presenciar a notável perícia de Ned Land e a escolha correta feita pelo comandante Farragut.

No dia 20 de julho, em frente às Ilhas Malvinas, a fragata comunicou-se com baleeiros norte-americanos, que nos informaram não haver observado sinal do narval naquelas paragens. Porém, um deles, o capitão do Monroe, ao saber que Ned Land estava conosco, pediu ajuda para caçar uma baleia que fora avistada. O comandante Farragut não se opôs, pois desejava observar também, com os próprios olhos, a perícia de seu comandado. Por isso, deu-lhe autorização de subir a bordo do Monroe . O canadense teve muita sorte, pois em vez de arpoar uma baleia, arpoou duas. Não havia dúvida de que se o monstro se pusesse ao seu alcance, iria padecer em suas mãos.

A fragata bordejou a costa sudoeste da América com incrível velocidade. No dia 3 de agosto, achávamos-nos na entrada do estreito de Magalhães, na altura do cabo das Virgens. Todavia, o comandante Farragut não quis entrar no sinuoso canal e manobrou o navio para dobrar o cabo Hornos.

A tripulação inteira aprovou essa medida. De fato, não era possível que o narval estivesse em um lugar tão estreito.

No dia 6 de agosto, às três horas da tarde, a Abraham Lincoln, a quinze milhas do sul, dobrou a ilhota solitária, perdida no ponto mais afastado do continente americano. Tomou logo o rumo nordeste e, na manhã seguinte, a hélice tocou finalmente as águas do Pacífico.

- Atenção! Muito cuidado! Olhem bem! - repetiam sem cessar os marinheiros.

Toda a tripulação se esmerava em sondar o horizonte à procura do monstro. Os binóculos não tinham descanso, pois o prêmio de dois mil dólares prometido pelo capitão não era para ser desprezado. A superfície do oceano era observado dia e noite, e aqueles que enxergavam bem à noite, tinham maior probabilidade de ganhar a recompensa prometida.

Apesar de não me incomodar com o dinheiro a ser ganho, também estava atento à presença do monstro. Não saí do tombadilho, exceto para as refeições e para descansar. Apoiado na amurada do castelo de proa e depois na varanda da popa, olhava ansioso a brilhante esteira que branqueava o mar, até se perder completamente de vista. Compartilhava a emoção dos tripulantes da fragata ao avistar alguma baleia caprichosa, crendo como eles que poderia ser o animal que procurávamos. No convés da Abraham Lincoln amontoava-se a tripulação que acompanhava o cetáceo com emoção e depois com desilusão, ao compreender que não era o nosso inimigo. Eu olhava e tornava a olhar até cansar a vista, enquanto Conselho me dizia com voz tranqüila:

- Se o senhor apertasse um pouco os olhos veria muito melhor.

Felizmente, o tempo estava favorável e a travessia se efetuava em ótimas condições. Estava próximo o inverno austral, e em tais áreas o mês de julho corresponde ao mês de janeiro na Europa. O mar se mantinha calmo e era visível em grande extensão. Quanto a Ned Land, continuava em sua incredulidade. Não acreditava na existência do monstro e nem sequer procurava examinar a superfície das águas como faziam todos os seus colegas. De cada doze horas, o teimoso arpoador permanecia oito em seu camarote, lendo ou dormindo. Por várias vezes, não pude deixar de reprovar a sua indiferença.

- Bah! - respondeu ele. - O que quer mais senhor Aronnax? Continua admitindo a existência do animal? Como poderemos descobri-lo? Deve estar dotado de uma incrível mobilidade e, nestas condições, seguimos a esmo, sem nenhuma possibilidade de êxito.

Não pude refutar suas objeções. Era verdade que seguíamos sem rumo, sem saber onde encontrar o monstro. Portanto, as probabilidades de encontrar o animal eram muito escassas. Apesar de tudo, ninguém duvidava do êxito da expedição e todos estavam certos de que logo seria localizado o animal.

No dia 20 de agosto atravessamos o trópico de Capricórnio aos 105° de longitude, e no dia 27 do mesmo mês, passamos pelo Equador, pelo meridiano 110. A fragata dirigiu-se rumo a oeste e adentrou aos mares centrais do oceano Pacífico.

O comandante Farragut decidiu, muito acertadamente, que era preferível sulcar as grandes profundezas e afastar-se das ilhas e continentes, cuja proximidade parecia ser evitada pelo monstro marinho. A fragata se abasteceu do carvão necessário e, a seguir, cruzou as ilhas Pomotu, Marquesas e Sandwich, dirigindo-se, por último, aos mares da China.

Segundo nossos dados, achávamo-nos no local das últimas aparições do narval. Todos estavam nervosos; ninguém comia ou dormia a bordo, aguardando o grande acontecimento. Durante o dia todo, um erro de adaptação ou talvez uma ilusão arrancava de nós gritos de entusiasmo, por acreditarmos que já tínhamos encontrado o narval.

Durante três meses o Abraham Lincoln navegou pelos mares setentrionais do Pacífico sem nada encontrar. Não ficou um único ponto sem ser explorado, desde as praias japonesas até a costa norte-americana.

Nada encontramos que se parecesse com um narval gigante. Começou a despertar, então, o desânimo. Da euforia passou-se ao pessimismo e deste à incredulidade. Havia sido uma ingenuidade ter se deixado enganar por aquela trama tão bem urdida.

Essa reação provocou veementes protestos entre os marinheiros que queriam abandonar a expedição. por não mais crerem nela. Porém, a obstinação do comandante Farragut impediu que a fragata seguisse o rumo sul e desistisse da empreitada.

De qualquer maneira, era lógico que aquela busca não podia prolongar-se por mais tempo. Não se podia pedir mais nada à tripulação e, por outro lado, ninguém era culpado pelo fracasso. Não havia outra alternativa senão voltar.

O comandante Farragut também percebia isso; porém, assim como Colombo antes de descobrir o Novo Mundo, pediu a seus homens um prazo de três dias. Se nesse tempo não aparecesse o monstro, a Abraham Lincoln zarparia rumo aos mares europeus.

Essa petição foi feita pelo capitão no dia 2 de novembro e teve como resultado a reanimação dos tripulantes. Voltou-se a observar a superfície das águas em um último e desesperado esforço. Passaram-se dois dias sem novidades.  A fragata era mantida à baixa pressão. Tentaram-se mil modos de chamar a atenção do animal ou força-lo a sair, caso estivesse por aquelas latitudes. Foram colocados presos ao navio grandes pedaços de toucinho, porém a única conseqüência dessa atitude foi saciar a fome dos tubarões que por ali se encontravam. Chegou a noite do dia 4 de novembro, prazo dado pelo capitão, e não foram vistos, em nenhuma parte, sinais do misterioso narval.

Expirava o prazo e, fiel à sua promessa, o comandante Farragut deu ordens para rumar para sudoeste e sair das regiões setentrionais do Pacífico.

A fragata achava-se naquela ocasião a 31°15' de latitude norte e a 136°42' de longitude oeste. As terras japonesas ficavam a cerca de duzentas milhas e sotavento. Anoitecia. Eram oito horas e densas nuvens encobriam o disco lunar.

Naquele momento me encontrava na proa, apoiado sobre a amurada de estibordo. Conselho estava ao meu lado olhando ao longe, não sei se o mar ou as nuvens. A tripulação observava o horizonte. Os oficiais, por sua vez, esquadrinhavam as sobras com os binóculos.

Pareceu-me que Conselho observava minuciosamente para ver se descobria  presença do monstro e ganhava o prêmio, por isso lhe disse:

- Pode aproveitar essa última oportunidade para ganhar os dois mil dólares.

- Obrigado, mas se o senhor me permite, a verdade é que não me importo com o dinheiro, e se o governo americano oferecesse cem mil dólares, o prêmio continuaria sem importância para mim...

- Você tem razão, Conselho. Em última análise, lançamo-nos apressadamente em um empreendimento absurdo. Foi uma perda de tempo. Teria sido melhor se tivéssemos voltado para a França...

- O senhor tem toda a razão. Como seria bom se pudéssemos estar em sua agradável residência! Eu já teria classificado todos os fósseis e a babirussa estaria instalada em sua jaula no Jardim Zoológico.

- De fato, Conselho, sem contar que ainda zombarão de nós...

- Sim, zombarão do senhor... Quer que eu fale com toda a franqueza?

- Sobre o quê?

- Pois o senhor merece o que lhe aconteceu.

- Não há dúvida.

- Quando uma pessoa é sábia como o senhor, não se expõe a...

Conselho não pode terminar de falar. Uma voz acabava de ressoar, em meio ao silêncio geral. Era Ned Land que gritava:

- Aí está! Atenção!