S. PEDRO DAS ÁGUIAS (TABUAÇO) /
Sob o manto cristão, a língua da serpe : Maria Estela Guedes
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26-03-2006

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No fundo de um vale de paredes a pique, de rochas lançadas sobre o rio Távora, situa-se o eremitério de S. Pedro das Águias, onde, reza a lenda, o abade Gelásio casou a princesa moura, Ardinga, com D. Tedon, cavaleiro cristão. O pai de Ardinga, ao tempo governador de Lamego, saiu no encalço da fugitiva princesa, tendo-a encontrado em S. Pedro das Águias. Furioso, decapitou a filha junto do rio, cujas águas até hoje estão impregnadas do seu sangue.

Associada a um lugar habitado por grandiosas pedras, e por esta estranha igreja, cuja ornamentação zoomórfica aponta para um sagrado pré-cristão, a decapitação de Ardinga, ou Ardínia, faz-nos pensar no que a respeito de lugares como este diz Célio Rolinho Pires, em "O País das Pedras": que certos monumentos, topónimos e antropónimos, apontam para espaços de execução nas antigas povoações lusitânicas. Duas penas capitais eram a decapitação e a precipitação. Precipícios é o que não falta neste lugar que se remira no abismo. É bem provável então que a igreja de S. Pedro das Águias, sob o manto cristão, revele factos históricos anteriores, a ela subjacentes.

A igreja tem a porta principal voltada para uma escarpa abrupta, de que se erguem, no cume, rochas muito altas: duas parecem gémeas, ladeando uma porta no céu, e outra atira-se para cima como um dedo indicador ou gigantesco falo. Nesta posição, para entrar na igreja é preciso fazer fila indiana e pessoas obesas terão de se voltar de lado. Quanto a Cristo, no interior, não tem o céu nem o rio à frente dos olhos, sim a muralha de pedra, pedra bruta, muito mais pedra que Pedro... Quisesse ele ressuscitar, passe a má comparação, não poderia, de tão encurralado, ou de tão sepulto na rocha.

A igreja é românica, de decoração algo bizarra, não tanto pela riqueza de figuras animais como pela presença constante e insinuante do elemento serpentino - ofita. Entre as figurações mais ou menos naturalísticas, mais ou menos estilizadas, encontrámos a serpente Ouroboros para a qual, em Lisboa, Fernanda Frazão nos alertara, mostrando-nos fotografias.

Na generalidade, não reconheci os animais, até porque a pedra está muito gasta. Porém entre as figuras do beiral, uma despertou-me a atenção, por parecer uma lagosta, ou qualquer outro artrópode com muitas patas, tipo centopeia. Também parece estar presente o sardão, Lacerta sp., cujo valor simbólico é o da serpente. É no entanto a ornamentação não zoomórfica, em figuras lineares, serpentinas, ou em espirais, algumas entrelaçadas em cruzes, que mais presente torna a cobra.

Neste lugar ermo, as serpentes existem, como em todo o lado, mas existe algo mais assustador, se bem que pouco perigoso - talvez a Vipera latastei, víbora cornuda. Da primeira vez que visitei S. Pedro das Águias, há muitos anos, com a família, vimos uma viborazinha, que devia ser um juvenil, de nariz arrebitado, a atravessar a estrada. Infelizmente, ficou esborrachada debaixo de um sapato.

S. Pedro das Águias, com as suas rochas venusinas, de Vénus, é um lugar que eu diria feminino, apesar de o macho estar em exibição, não só nas rochas fálicas como na serpente, não só no fogo que enegreceu o grande penedo perfurado, como no amarelo sulfúreo de um conjunto de rochas em posição altaneira, que francamente parecem blocos de enxofre. As terras vulcânicas existem no Norte, por exemplo na Serra da Estrela, como já no século XVIII descobriram os discípulos de Domingos Vandelli. Nada obstando a que o dito enxofre não passe de líquenes ou algo parecido. Não me admiraria, de resto, que as rochas tivessem sido pintadas. A verdade é que o lugar é habitado, e a igreja visitada. Pelo janelo aberto na parede, a máquina fotográfica conseguiu passar: no escuro, em frente, o que no negro da foto parece uma caveira, é uma cruz em rosácea, igual a outras que surgem nos pórticos. Ao lado, no peitoril interior, estavam pousados recipientes de vidro com pedras dentro. É com certeza algo tão natural como pedras para segurar flores dentro dos vasos, mas também pode ser outra coisa qualquer, enfiada clandestinamente no interior por aquela abertura, pois a igreja está quase sempre fechada.

Ali, na região (1), existe um velho castanheiro protegido por um muro, à roda do qual se faziam outrora procissões. Cristo, dentro da igreja, olha para a muralha de rocha: cada altar com sua deidade. Cá fora, nitidamente, as pedras são divinas, por isso foram adoradas, isto se o não forem ainda, exactamente como o velho castanheiro.

 
(1) Veja "O castanheiro de Vila da Rua"