CASA DO POÇO (LAMEGO): EXPOSIÇÃO "A PALAVRA E O ESPÍRITO"
A Casa do Poço, por Nuno Resende
TriploV
07-10-2007
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Casa do poço: Evocação do lugar
Por Nuno Resende

Embora fosse dos Bispos, lugar de vivência e convivência «dos cónegos, e beneficiados, e outras nobres pessoas (...)», como refere Rui Fernandes, em 1532, o couto da Sé, unidade administrativa «autónoma» dentro da cidade, congregava em si toda a sorte de oficiais e indivíduos. A praça da Sé, (distinta do terreiro que se situava a nordeste), espaço privilegiado e simbólico porque frente à estrutura dominante e centralizadora do couto, congregava grande parte da vida social da parte baixa da cidade - por contraposição ao sítio do Castelo.

Da leitura dos livros paroquiais de Lamego, que se iniciam em 1531, pudemos observar alguma da actividade e dos indivíduos que moravam ou, de alguma forma, se ligavam à praça da Sé: entre 1531 e 1652 contabilizámos cerca de 60 habitantes, entre estes um clérigo de epístola (1625), vendeiros (1602 e 1638), um sapateiro (1623), dois alfaiates (1610 e 1611), o sineiro (1627), bem como o auditor geral da beira, António de Almeida Toscano que aí residia, com a sua mulher, em 1651.

Espaço onde se cruzavam ofícios e estatutos, a praça da Sé dividia-se (não formalmente, mas através da visão dos descritores) em dois espaços ou áreas: a praça propriamente dita e o local denominado «à porta da Sé», talvez porque aquela formasse um triângulo irregular que abria para o Coura (a Norte) e estreitava para Sul, junto à torre sineira e portas da catedral.

A casa do Poço não possuía, no século XVI, nem o tamanho, nem sequer a forma que lhe conhecemos actualmente (como os trabalhos arqueológicos puderam evidenciar). E nenhuma referência lhe é dirigida nesta época, fazendo-a sobressair do casario que se abria para a catedral. Em 1535 refere-se Catarina Vaz, «do poço da see» e em 1637 «maria rabella do poso». Porém, dada a existência de vários poços (numa área com abundância de água), não nos é possível associar, nem os indivíduos, nem o local, à actual casa.

E quanto à autoria e significado das janelas manuelinas (fig. 1), com a sua exuberante decoração, que se abrem hoje para a rua dos Loureiros, pouco sabemos. Apenas que antes de 1632 estariam voltadas para os «loureiros de don enrrique», como especificamente refere um assento de baptismo de 1611. Entre uma e outra data talvez se tenha operado a abertura da artéria, ou pelo menos a sua elevação a tal condição. E possivelmente as referidas janelas narrem um acontecimento - ocorrência ou ocorrências relacionadas com a memória genealógica da casa medieval. Embora no século XVIII Felgueiras Gaio, no seu Nobiliário de Famílias de Portugal, construa uma imagem linear e homogénea dos proprietários da Casa - «Morgados do Poço» - o facto é que até finais do século XVII as notícias documentais sobre os mesmos são escassas.

Em Junho de 1656 foi baptizado, na Sé, Diogo, filho de Jerónimo Teixeira de Carvalho e de sua mulher D. Maria Osório. Sabemos, por aquele genealogista, que se trata do primogénito e futuro morgado do Poço, mas nada mais nos informa o assento que nos permita tal associação e a circunstância do referido Diogo ser apadrinhado por António Teixeira, de Britiande e Miguel Rebelo, de Vila Meã, pode ser o indício de um afastamento do Couto da Sé, por motivos que nos são, por ora, desconhecidos. Como refere o mesmo genealogista a origem diversa dos ancestrais de Jerónimo Teixeira de Carvalho e da mulher, podiam ditar uma mobilidade na vivência desta família, ocupada com a gestão dos seus bastos haveres dispersos.

De facto Gaio faz recuar a ascendência dos Carvalhos de Lamego, morgados do Poço, a Branca Lourenço de Carvalho, casada com Rui Lopes Rebelo, fidalgo da Casa Real e senhor da Casa da Granja, na freguesia da Figueira. O neto de ambos. Rui ou Rodrigo Lopes de Carvalho, teria sido bispo de Miranda entre 1555 e 1559, e segundo Correia de Azevedo (AZEVEDO, 1974: 80) este teria legado a casa do Poço a seu sobrinho Diogo Lopes de Carvalho (o primeiro deste nome) o qual seria efectivamente "O grande senhor da Casa», morto em Alcácer Quibir, em 1578. Nada disto confirma, porém, a leitura dos livros de registo paroquial, os quais apenas nos anotam o nascimento do acima referido Diogo, filho de Jerónimo Teixeira. Era, em 1679, provedor da Misericórdia, podendo dever-se a ele a segunda fase de acrescentos ao edifício medieval, como habitante da casa (a qual pavaga de foro ao Cabido de Lamego, em 1718, "mil réis em dinheiro e 4 galinhas», vid. COSTA, 1986, vol. V: 557.).

Na transição do século XVII para o XVIII, pressentem-se alterações de maior no desenho da praça da Sé. Em 1700 António Bastos; «mestre pedreiro, morador na rua de S. Lázaro, da cidade de Lamego, riscou a planta para as casa» que José Teixeira de Macedo pretendia edificar defronte da Sé de Lamego», (ALVES, 2001,1:131J-Este José deveria ser o mesmo que Felgueiras Gaio refere como José Teixeira de Macedo da Cunha, cuja irmã casara "defronte da Sé», com Diogo Correia Homem, referido pelo genealogista como cristão-novo.

Em 1701 existiam, também defronte da catedral, certas casas de dois sobrados que partiam, nesta praça, com habitação de Domingos Vieira, e do norte com a ponte da Olaria (estas habitações viriam a constituir o espaço ocupado, já em finais do século XVIII pela casa de Manuel Teixeira Pimentel, uma das que aparece na «Planta da Cidade de Lamego e dos seus arredores (letra F)», mapa oitocentista que reproduz, com grande minúcia, o termo da cidade e seus subúrbios.

A casa do Poço permaneceu nas mãos da família Carvalho, até finais do século XIX.

A circunstância de três dos seis filhos de Maria dos Prazeres de Carvalho Rebelo de Meneses - uma das últimas senhoras da casa - terem falecido solteiros, restringiu a descendência directa dos velhos morgados do Poço, cuja estirpe se viu disseminada por ramos diversos (a genealogia recente da casa pode ser consultada em GRAÇA, 2001). Tal contribuiu para a ruína física e simbólica do edifício, como se prova, aliás, pela alienação do seu património bibliográfico, em 1887 (cf. s/a - Catálogo de livros antigo pertencentes à Casa do Poço (...), 1887).

A casa chega ao século XX repartida por vários espaços com usos múltiplos: os serviços dos correios, uma taberna, uma garagem, e uma pequena área residencial. A circunstância ditada pela nacionalização dos bens da igreja, em 1911 e consequente perda dos edifícios do Seminário Jesus Maria Ana (actual Messe de Oficiais) e do Paço Episcopal (hoje Museu de Lamego), levou a que entre 1920 e 1941 se operassem diligências no sentido da compra da Casa do Poço pela Diocese de Lamego com vista à instalação do novo seminário.

Por esta casa passou o bispo D. Agostinho de Jesus e Sousa que tomou uma ala para seus aposentos e pelo "novo» seminário transitaram os historiadores Manuel Fonseca Pinto da Gama (1921), M. Gonçalves Pinto da Costa (1924), Vasco de Almeida Moreira (1927), José António Marrana (1929), bem como os escritores padre António Ribeiro, também etnógrafo (1943) e J. Mendes de Castro, autor de um livro de memórias sobre a Casa do Poço (2001).

Hoje, este espaço tão multifacetado como, em tempos recentes como passados, tão versátil, demonstra a sua dimensão verdadeiramente histórica, - enriquecida também pelas descobertas arqueológicas - ao acolher o arquivo histórico diocesano e um espaço museológico de arte religiosa.

Inaugura-se, assim, um novo período para a memória da cidade.

 
Texto extraído do catálogo: A Palavra e o Espírito, s/l, s/d [Lamego, Casa do Poço, 2007]