A MENINA DO MAR (fim)
Elvira Maria Moreira

OS LUGARES
A maior parte da história passa-se na praia, junto da casa das dunas. “Era uma vez uma casa branca nas dunas, voltada para o mar... Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos”. A água é o espaço líquido adequado ao encontro com o maravilhoso, duma “poça da água muito limpa e transparente toda rodeada de anémonas” emergem as figuras da Menina e dos seus três amigos . Só a última parte, já mesmo na conclusão, se passa numa ilha distante, na gruta e palácio do Rei do Mar.

Os espaços abertos e luminosos em que vive o rapaz, a casa branca nas dunas e a praia, contrastam com o espaço escuro e fechado em que a menina habita, a gruta no fundo do mar. Os espaços em que se desenrola a história são motivo para longas e maravilhosas descrições que Sophia faz numa linguagem muito simples e concreta, mas não realista, que nos fazem imaginar esses mesmos espaços e desejar estar lá. Acontece isso com a descrição da casa das dunas; da praia, onde “na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limo, de búzios, de anémonas, de lapas, de algas e de ouriços.” Essa praia na qual “Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas...”.

São ainda descrições muito belas a da tempestade, a do fundo do mar e a da viagem do rapaz através do oceano, sobretudo porque algumas não são descrições típicas, mas sim um misto de narração e evocação de espaços: “ Certa noite, as ondas gritaram tanto, uivaram tanto, bateram e quebraram-se com tanta força na praia, que, no seu quarto... o rapazinho esteve até altas horas sem dormir. As portadas das janelas batiam. As madeiras do chão estalavam como madeiras de mastros. Parecia que as ondas iam cercar a casa e que o mar ia devorar o Mundo.” É o narrador omnisciente que em geral descreve enquanto conta: “Atravessaram o mar dos Sargaços e viram os peixes voadores. E viram as grandes baleias que atiram repuxos de água para o céu e viram os grandes vapores que deixam atrás de si colunas de fumo suspensas no ar. E viram os icebergues magestosos...e nadaram ao lado dos veleiros que corriam velozes esticados no vento. E os marinheiros gritavam de espanto quando viam um rapaz agarrado à cauda de um golfinho...”. Noutros casos, a descrição pode estar inserida no diálogo: “Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia fina, branca, lisa”.

Tudo começa em Setembro, numa manhã “linda de sol brilhante” após uma “ imensa batalha em que o mar, o céu e o vento se combatiam”. Foi nessa manhã que o Rapaz viu, pela primeira vez, a Menina do Mar e os seus amigos polvo, caranguejo e peixe. Durante seis dias seguidos o rapaz encontra-se com a Menina e os seus companheiros. Há a seguir uma longa interrupção causada pelo castigo infligido à Menina pela Grande Raia. O castigo foi o seu exílio numa praia muito distante da qual não se sabe nome nem localização. Durante esse tempo o rapaz não sabe dela e espera.

“ Passaram dias e dias... Até que chegou o Inverno” e, numa manhã de nevoeiro, aparece a gaivota que traz ao rapaz o frasco com o filtro mágico para poder mergulhar. Inicia-se, então, uma grande aventura, a viagem do Rapaz através dos oceanos agarrado à cauda de um golfinho. Esta viagem é muito longa e acidentada até que chegam à “ ilha rodeada de corais” onde se dá um desfecho feliz da história com o encontro de todos os amigos.

ELEMENTOS DA NARRAÇÃO
“A Menina do Mar” é uma narrativa aberta. Se no fim desta narração às nossas crianças, na escola, lhes propusesse: Vamos continuar a história? - Certamente muitas vozitas, em coro, diriam: Sim!!! E apareceriam imediatamente várias ideias para a continuação. Daqui se conclui que não se trata de uma narrativa fechada.

As personagens são apresentadas em geral pelo narrador, mas a menina assume a narração, na primeira pessoa, ao contar a sua própria história.

Depois de se conhecerem, o rapaz e a menina tornam-se grandes amigos e contam um ao outro como vivem. Nasce então em cada um o desejo de experimentar a vida do outro – o rapaz, que é um ser humano, deseja saber como é a vida aquática; a menina, que tem pulmões mas vive debaixo de água como os peixes, numa evocação clara das sereias, deseja conhecer a terra. Sucedem-se os acontecimentos e aventuras em sequência linear e, quando são dados ao rapaz os meios para poder viver como um ser aquático, ele abandona a terra onde nascera e sempre vivera. Metamorfoseia-se, depois de tomar uma mistura mágica trazida pela gaivota :

“- O frasco que te dei tem dentro suco de anémonas e suco de plantas mágicas. Se beberes agora este filtro passarás a ser como a Menina do mar. Poderás viver dentro da água como os peixes e fora da água como os homens.

- Vou beber já - disse o rapaz.

E bebeu o filtro.

Então viu tudo à sua roda tornar-se mais vivo e mais brilhante. Sentiu-se alegre, feliz, contente como um peixe. Era como se alguma coisa nos seus movimentos tivesse ficado mais livre, mais forte, mais fresca e mais leve.”

Depois deste episódio característico dos contos de fadas, o rapaz já tem meios para se aventurar a viajar pelo mar desconhecido com o golfinho, até encontrar a sua amiga com quem fica a viver “feliz para sempre...”

As personagens deste conto são planas, naquele sentido em que a teoria literária garante que planas são as que carecem de dimensão interior – evolução psíquica, mudança afectiva, nesta direcção ou naquela. A verdade, porém, é que elas são completamente redondas noutro sentido, o mágico, pois sofrem mudanças biológicas radicais - transformação de um ser humano num ser fantástico e vice-versa. Neste domínio é de salientar também o facto de os animais terem atribuições domésticas, o que pressupõe a sua transmutação em seres com aspectos humanos. Não esqueçamos que a Grande Raia, por exemplo, tem um exército de búzios espiões, e polvos soldados ao seu serviço: “Os búzios têm muito bom ouvido, ouvem tudo, são os ouvidos do mar. E ouviram as nossas conversas e foram contá-las à Raia que ficou furiosa...”, “ A Raia ordenou aos polvos que não me deixassem passar. As rochas estão cheias de polvos escondidos que nós não vemos, mas que nos vêem e espiam cada um dos nossos gestos... Amanhã já não volto aqui porque a Raia, para me castigar de eu ter querido fugir, decidiu que esta noite ao nascer da Lua eu serei levada pelos polvos...”.

Não tendo dimensão interior equiparável à das personagens do romantismo ou realismo, elas são dotadas de outras particularidades relacionadas com a identidade. É o caso da nomeação. Menina do Mar, por exemplo, sendo um nome genérico, é utilizado como nome próprio. Já o mesmo não acontece com o rapaz, sempre designado pelo substantivo comum. A conclusão a tirar é de que a autora tende para a criação de tipos, neste caso etários e sexuais – o que interessa à autora é marcar o facto de que a infância funciona como personagem, quer no masculino quer no feminino, e que a convivência dos sexos é saudável. De notar que a autora está a escrever numa época em que, em Portugal, nas escolas, não havia classes mistas.

O caso dos animais é semelhante com excepção da Grande Raia e do Rei dos Mares. As personagens não têm denominação própria, o que está de acordo com o mecanismo dos tipos, em que não há evolução psicológica, sim comportamentos repetitivos e automatismos verbais.

A Menina do Mar tem uma origem imprecisa e difusa como o mar que simboliza, é uma figura extraordinária pelo tamanho minúsculo, pela beleza, e ainda pelo exotismo da vida fantástica que vive no fundo do mar, zona profunda e secreta. Sophia descreve-a deste modo: 𠇊 menina que devia medir um palmo de altura, tinha cabelos verdes, olhos roxos e um vestido feito de algas encarnadas.” Esta figura do maravilhoso fala, ri e dança e, ao longo da narrativa, vai desvendar os mistérios da sua gruta. Vai ficar curiosa em relação à vida dos seres terrestres e quer conhecer a terra. Conhece a saudade e, mais tarde, ao longo da história, chega a senti-la.

O Rapaz é - nos apresentado como alguém independente , amante da Natureza e da liberdade que a vida junto do mar lhe proporciona. Inveja a capacidade que os seres marinhos têm de viver toda a vida dentro de água. “...tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar.” e “ tinha inveja das algas que baloiçavam ao sabor das correntes com um ar tão leve e feliz”. Ele é um sonhador e sente uma crescente euforia à medida que vai explorando o espaço marinho.

Também é um aventureiro. Podemos ver na história uma referência às descobertas marítimas protagonizadas por ele quando, “ numa manhã de nevoeiro” larga a terra e se lança no mar desconhecido e perigoso, o que se alia a outro tema da mitologia nacional, a saudade. Não há qualquer descrição física do rapaz a não ser uma ou outra alusão à sua agilidade, força e sensibilidade, o que continua a projectar as personagens para o espaço dos tipos, que neste caso não são sociais, sim literários – trata-se de recurso a figuras já cristalizadas na literatura universal e portuguesa.

Depois destas duas personagens principais, aparecem-nos três secundárias, seres marinhos, que intervêm directamente na acção. Ficamos a conhecê-las apenas pelos diálogos e pelos seus movimentos. É o caso dos amigos exóticos que criaram a Menina e a acompanham sempre: o polvo, o caranguejo e o peixe. São caracterizadas logo que aparecem pela dedicação, protecção e amizade cega de que rodeiam e que devotam à Menina.

A autora foi muito feliz na escolha destes animais que fascinam as crianças quando, ao longo da narrativa, se fala naquilo que são capazes de fazer. “O polvo arruma a casa, alisa a areia... põe a mesa, ...à noite faz a minha cama com algas muito verdes e ...macias”, “ O caranguejo é o cozinheiro. Faz caldo verde com limos, sorvetes de espuma... é também o meu ourives: ele é que faz os meus colares de búzios, de corais e de pérolas.”, “ O peixe não faz nada porque não tem mãos nem braços...é com ele que eu brinco.” Há ainda a gaivota mensageira que traz o elixir de anémonas ao rapaz, meio de aceder ao pedido da Menina para que ele vá ter com ela ao outro lado do mar

Ainda aparecem outras personagens que não têm intervenção directa na acção: A Grande Raia, dona dos mares, que é a personagem terrível da história e impede a Menina de visitar a terra; o golfinho, que vai acompanhar o Rapaz na sua viagem através dos mares desconhecidos; o Rei do Mar, “sentado no seu trono de nácar”, que permite ao rapaz transformar-se em ser aquático; a gaivota, que traz a menina no bico para a praia e que mais tarde é a portadora do filtro mágico; e ainda os búzios , os polvos e os cavalos- marinhos.

Estas personagens transportam-nos para a Grécia Antiga e para a sua mitologia, que sempre fascinaram Sophia de Mello Breyner pelo que ela representa na relação do homem com o universo. Por isso estes traços ou alusões atravessam toda a sua obra. Aqui e ali, como no caso do Rei do Mar, é fácil associar personagens e situações com obras clássicas como “Os Lusíadas”.

Na cena em que os amigos da Menina se transformam em orquestra “O polvo ...esticando ...sete dos seus oito braços prendeu-os pelas pontas ...e, com o braço...livre, começou a tocar guitarra... Depois pôs-se a cantar”, revivemos o mito de Orfeu, o maior poeta lendário da Grécia, e neste caso já as referências são mais próximas, basta pensar no nome da revista que em 1915 revolucionou o panorama da nossa arte, criada por Mário de Sá-Carneiro, na companhia de Fernando Pessoa e Almada Negreiros.

CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM
Sobre uma base de língua padrão, o discurso de Sophia na “Menina do Mar” caracteriza-se pela simplicidade e tom lírico, poético. Não há vocábulos raros que exijam consulta de dicionários, o que se adapta à classe etária dos leitores a que o conto se dirige. Com efeito, esta linguagem clara, límpida como a água, cativa as crianças porque a compreendem bem e se apaixonam por ela.

Sophia utiliza muito as enumerações e estruturas repetitivas, susceptíveis de fácil memorização. Estes dispositivos da literatura oralizante prestam-se bem a serem passados como testemunho de geração em geração. Nos exemplos que se seguem a estrutura frásica é claramente anafórica e cheia de paralelismos : “Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas.”, “Vieram marés vivas, ventanias, nevoeiros, chuvas, temporais”, “Há cavalos-marinhos suspensos... Há flores que parecem animais... Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia fina, branca, lisa”. Como acabámos de constatar, as descrições são feitas utilizando essencialmente substantivos, embora Sophia use também a adjectivação, que pode ser simples ou múltipla. Mas, quer os substantivos quer os adjectivos, têm sempre significação simples, clara, quase sem transposição metafórica, e estão organizados de tal forma que nos parece estar a observar um quadro vivo em que para além de vermos, sentimos, tacteamos, cheiramos. Há nesta narrativa um apelo fortíssimo a todas as nossa sensações: “A praia estava coberta de espumas deixadas pelas ondas da tempestade. Eram fileiras e fileiras de espuma que tremiam à menor aragem. Pareciam castelos fantásticos, brancos mas cheios de reflexos de mil cores. O rapaz quis tocar-lhes, mas mal punha neles as suas mãos os castelos trémulos desfaziam-se.”.

Um dos mais belos segmentos do livro diz justamente respeito à sensação:

“ - Trago-te aqui uma flor da terra – disse; chama-se uma rosa.

É linda, é linda - disse a Menina do Mar, dando palmas de alegria e correndo e saltando em roda da rosa.

Respira o seu cheiro para veres como é perfumada.

- A Menina pôs a sua cabeça dentro do cálice da rosa e respirou longamente.

Depois levantou a cabeça e disse suspirando:

- É um perfume maravilhoso...”

Outro tipo de repetições diz respeito a eventos, com sequências de palavras que levam a criança a antecipar-se ao texto e a participar dele. Assim acontece na cena do aparecimento da Menina: “ E, enquanto assim estava deitado (...): ouviu uma gargalhada muito esquisita (...): depois ouviu uma segunda gargalhada ainda mais esquisita (...): em seguida uma terceira gargalhada (...) Mas o mais extraordinário de tudo foi a quarta gargalhada: Era como uma gargalhada humana...”. Ainda na linha do riso, esta outra sequência repetitiva: “E viu um grande polvo a rir, um caranguejo a rir, um peixe a rir e uma menina muito pequenina a rir também.”

De cada vez que há uma referência aos companheiros da menina, a sequência é sempre a mesma: polvo, caranguejo e peixe por fim. Estas personagens, como o próprio facto de assim as designarmos, correspondem a personificações, alteração do estatuto de uma coisa ou ser em pessoa. Há outro tipo de personificações na obra, como em “E a água junto dos seus pés, ia e vinha e bailava também.”

É com as palavras que Sophia recria o mundo infantil, referindo-se àquilo que as crianças preferem e lhes dá prazer : são os animais, os alimentos, os enfeites, as brincadeiras e os povoadores do imaginário. Os animais são humanizados pelas suas funções domésticas para com a menina: o polvo maternal que lhe pega ao colo e a embala, a alimenta e lhe “faz a cama com algas muito verdes e macias”; o caranguejo costureiro de vestidos e ourives de “colares de búzios, de corais e de pérolas” e o peixe que só serve para brincar. Os alimentos são incomuns mas parecem apetitosos: “caldo verde com limos, sorvetes de espuma, salada de algas, sopa de tartaruga e caviar” e servidos numa toalha de alga branca em pratos de conchas. Todas as crianças adoram a praia: brincam nas rochas, observam os regatos e os rios que a água faz na areia, tomam banho nas poças de água transparente, dançam, cantam e gostariam de dar passeios no fundo do mar como fazem o rapaz ou a menina.

O fantástico está sempre presente ao longo da história mas, mais claramente, nas figuras da menina e da Grande Raia, que “É enorme, tão grande que é capaz de engolir um barco com dez homens lá dentro”,

ELEMENTOS DO TRADICIONAL E CLÁSSICO
A Menina do Mar, como foi dito anteriormente, é uma narrativa contemporânea, escrita em prosa poética. Tal como já anotámos também, Sophia de Mello Breyner consegue juntar harmoniosamente à modernidade elementos próprios dos contos populares portugueses, dos contos de fadas, das fábulas, da literatura de viagens e aventuras, da mitologia grega e nacional, com isso não descurarando também de transmitir aos ouvintes/leitores valores culturais. Embora nos seus vários livros para crianças cada um destes elementos esteja mais especialmente desenvolvido, n’ “A Menina do Mar” podemos encontrar vários deles.

Os “monstros e perigos” do mar, a Grande Raia que “é a dona dos mares. É enorme, tão grande que é capaz de engolir um barco...tem cara de má e come homens e peixes e está sempre cheia de fome” e os bruxos “- Tu és bruxo – disse a Menina – sopras e as coisas desaparecem”. Bruxas e monstros são parte integrante do conto tradicional português. Aos contos de fadas foi a autora buscar todo o maravilhoso dos animais e das suas ocupações, os bailes nos palácios, a Menina do Mar, que é misto de sereia e de princesa encantada, tanto pelo seu tamanho como pelos seus dons: “Posso respirar dentro da água como os peixes e posso respirar fora da água como os homens... não posso estar muito tempo fora de água... fico como as algas na maré vaza... todas enrugadas e secas”; o encanto até tem um tempo de duração como o da Gata Borralheira e, por fim, o elixir que permite a transmutação do rapaz: “Se beberes agora esse filtro passarás a ser como a Menina do Mar”.

Os animais que falam são próprios dos fabulários, sejam de Esopo ou de La Fontaine, com a diferença de que neste conto estes animais são apenas os do mar ou aves marinhas, como a gaivota.

As descrições de lugares desconhecidos, como o fundo do mar, são características dos livros de viagens e a cena de luta com os polvos, ou a viagem do rapaz agarrado à cauda do golfinho, poderiam fazer parte de um dos romances de Júlio Verne :

“E, tendo dito isto, pôs a Menina do Mar dentro do balde e pôs-se a correr. Mas, no mesmo instante, as rochas cobriram-se de polvos. Para qualquer lado que ele olhasse só via polvos... Em sua roda os polvos tinham feito um círculo fechado. E ele estava no meio do círculo e não conseguia fugir. Então tentou saltar por cima dos polvos, mas logo dezenas de tentáculos lhe ataram as pernas.

- Larga-me, larga-me – dizia a Menina do Mar. Larga-me senão matam-te.

- Não, não te largo – respondeu o rapaz.

Mas já os polvos lhe envolviam a cintura e o peito, lhe prendiam os ombros, lhe atavam os pulsos e ele caiu nas rochas sem poder fazer nenhum gesto...”.

Próprias do classicismo, podemos perceber várias entidades ao longo da narrativa. O rapaz é o herói que abandona o lar e a pátria para realizar o seu sonho, como fez Ulisses ou o Gama. Os objectos que o rapaz escolheu e levou à Menina para que ela ficasse a conhecer a terra: a rosa - símbolo do amor -, o fogo e o vinho fazem-nos lembrar divindades pagãs - Cupido, Vulcano e Baco, mas o Rei do Mar que “estava sentado no seu trono de nácar, rodeado de cavalos- marinhos, com o seu manto de púrpura a flutuar nas águas” é, sem qualquer dúvida, a representação de Neptuno. Nem do sebastianismo Sophia se esqueceu, pois o rapaz viu renascer a esperança de voltar a ver a Menina do Mar quando, “numa manhã de nevoeiro”, a gaivota lhe trouxe o elixir. O Desejado configura a utopia mais tradicional da literatura e “Filosofia Portuguesa”. Juntamente com as viagens marítimas dos Descobrimentos fazem parte da nossa herança histórica e fundamento esotérico da cultura nacional que vem desde Padre António Vieira e continua nos nossos dias, mesmo na tradição religiosa cristã, como acontece nos Açores, depois de ter passado por “A Mensagem” de Fernando Pessoa – a utopia do Quinto Império, Império do Espírito Santo, introduzido em Portugal por D. Dinis e D. Isabel, a cujo milagre é necessário referir o símbolo da Rosa.

O conto acaba com uma viagem marítima pelo e para o desconhecido, como fizeram os nossos antepassados:

“Nadaram muitos dias e muitas noites através de calmarias e tempestades. Atravessaram o mar dos Sargaços... e viram os icebergues magestosos... e os marinheiros gritavam de espanto quando viam um rapaz agarrado à cauda de um golfinho. Mas eles mergulhavam e desciam ao fundo do mar... aí estavam os antigos navios naufragados com os seus cofres carregados de oiro e os seus mastros quebrados...”.


Os outros contos para crianças escritos por Sophia, mantendo aspectos comuns à “Menina do Mar”, como a existência de muitas descrições, o tipo de linguagem poética ou a denominação das personagens principais que não existe, com excepção para a Fada Oriana, variam muito tanto nos temas como nos tipos de contos.

“A Fada Oriana” é claramente um conto de fadas, em que existem fadas boas e fadas más, com suas asas e as respectivas varinhas de condão com que fazem as suas mágicas. As más acções são castigadas e as boas recompensadas. A fada Oriana, que tem a seu cargo tomar conta dos seres da Floresta, um dia, vê-se reflectida no riacho, apaixona-se pela sua beleza e esquece as suas obrigações. Perde os seus dons até que se arrepende e tenta remediar o mal que entretanto causara. Tudo termina em bem, com uma lição de moral, característica do conto de fadas.

O espaço e as personagens do conto “O Rapaz de Bronze” são também dos preferidos de Sophia: o jardim e as flores. As flores são as personagens principais - de noite, por magia, ganham vida, comportam-se e têm sentimentos como as pessoas. De tal modo o fazem que, depois de observarem um baile no palácio, resolvem fazer o mesmo na Clareira dos Plátanos. Quem manda naquele jardim é o rapaz de bronze que, de dia, é estátua no jardim, e de noite se transforma e ganha vida, tal como as flores. “O Rapaz de Bronze” e “A Fada Oriana” têm uma estrutura comum, a divisão do texto em capítulos, o que não acontece com os restantes.

“O Cavaleiro da Dinamarca” é mais uma longa narrativa de viagens, passadas na Idade Média, em que a autora, ao longo do vasto território percorrido pelo Cavaleiro, aproveita para fazer as descrições de lugares símbolos da cultura da humanidade : Palestina ; Itália, com as suas cidades de Veneza e Florença; a Flandres e Antuérpia. Há várias personagens que narram ao cavaleiro as histórias de Vanina e Guidobaldo em Veneza; em Florença, cidade das ciências e dos pintores, é contada a história de Giotto e Dante; na Flandres, um capitão de navio que navegara com os portugueses conta o episódio de Pero Dias. Finalmente, o Cavaleiro regressa a casa na noite de Natal e o caminho é-lhe apontado pelo pinheiro iluminado pelas estrelas. A intenção deste conto não é tanto de entretenimento ou de deleite da leitura mas sim a transmissão de conhecimentos a outro tipo de crianças, um pouco mais velhas e ávidas pelo saber.

CONCLUSÃO
A escolha deste conto para análise tem a ver com o meu gosto pessoal e ainda com a circunstância de eu o considerar um modelo da literatura para as crianças do nível etário correspondente ao 3º e 4º anos do 1º ciclo do ensino básico, embora seja um livro que quer pelo tema tratado quer pela beleza da sua linguagem poética possa encantar qualquer leitor. Por experiência própria, dou-me conta que é um dos contos que lidos na aula e, em seguida em casa, mais cumpre os requisitos necessários para desenvolver o gosto pela leitura nas crianças. Com esta narrativa, a criança pode obter informação, sente o prazer das palavras bonitas, alimenta a sua sede de sonho e do maravilhoso, estimula a imaginação e satisfaz a afectividade e curiosidade próprias da sua idade, o que representa um papel importante no desenvolvimento integral e harmonioso da sua personalidade.

Quanto a mim, este conto tem ainda a vantagem de quase não ter ilustrações, o que dá à criança muito maior liberdade de imaginar e criar as personagens e os espaços. Não acontece, nem pode acontecer o mesmo com os livros ricamente ilustrados, em que as crianças se prendem imediatamente à beleza dos desenhos; neste caso, a interpretação do ilustrador domina a do leitor. A criança já não precisa de imaginar, o trabalho já está todo feito. Quase que já nem é preciso ler. Não quero dizer que eu seja contra a ilustração dos livros, mas tudo se quer com peso e medida.

BIBLIOGRAFIA

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1978) – A Fada Oriana. Edições Ática, Lisboa. Ilustrações de Luis Noronha da Costa

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1974) – A Menina do Mar. Livraria Figueirinhas, Porto. Arranjo gráfico de Armando Alves.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1975) – O Cavaleiro da Dinamarca. Livraria Figueirinhas, Porto. Arranjo gráfico de Armando Alves.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner (1977) – O Rapaz de Bronze. Moraes Editores, Lisboa. Ilustrações da colecção particular da autora.

COELHO, Nelly Novaes (1973) – O Ensino da Literatura. Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação e Cultura, Brasília.

FONTES, Vitor, BOTELHO, Mª Leonor e SACRAMENTO, Mário ( s/ data) – A Criança e o Livro. Livros Horizonte, Lisboa.

MOISÉS, Massaud (1970) – Guia Prático de Análise Literária. Editora Cultrix, São Paulo.

TRAÇA, Mª Emília ( 1992) – O Fio da Memória – Do Conto Popular ao Conto para Crianças. Porto Editora.

Outras fontes:

Online in: http://www.instituto-camoes.pt/escritores/sophia/bibliografia.htm ( 28-12-2001)

Online in: http://www.instituto-camoes.pt/escritores/sophia/biografia.htm ( 11-12-2001)

Online in :http://www.instituto-camoes.pt/escritores/sophia/premiomax4.htm ( 28-12-2001)

Online in : http://www.instituto-camoes.pt/escritores/sophia/sophiaepc.htm

(11-12-2001) Sophia de M. B. Andreson fala a Eduardo Prado Coelho

Online:http://www.instituto-camoes.pt/escritores/sophia/sophiaporto2001.htm (11-12-2001)



www.triplov.com
PORTUGAL-SETEMBRO DE 2002