TEATRO

 
Farsa de Inês Pereira
GIL VICENTE
 
Aqui vem Pêro Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante, e vem dizendo:

PÊRO
Homem que vai aonde eu vou Não se deve de correr Ria embora quem quiser Que eu em meu siso estou. Não sei onde mora aqui... Olhai que m'esquece a mi! Eu creo que nesta rua... E esta parreira é sua. Já conheço que é aqui.

Chega Pêro Marques aonde elas estão, e diz: Digo que esteis muito embora. Folguei ora de vir cá... Eu vos escrevi de lá Üa cartinha, senhora... E assi que de maneira...

MÃE
Tomai aquela cadeira.

PÊRO
E que val aqui uma destas?

INÊS
(Ó Jesu! que João das bestas! Olhai aquela canseira!)

Assentou-se com as costas pera elas, e diz:

PÊRO
Eu cuido que não estou bem...

MÃE
Como vos chamais, amigo?

PÊRO
Eu Pêro Marques me digo, Como meu pai que Deos tem. Faleceu, perdoe-lhe Deos, Que fora bem escusado, E ficamos dous eréos. Porém meu é o mor gado.

MÃE
De morgado é vosso estado? Isso viria dos céus.

PÊRO
Mais gado tenho eu já quanto, E o mor de todo o gado, Digo maior algum tanto. E desejo ser casado, Prouguesse ao Espírito Santo, Com Inês, que eu me espanto Quem me fez seu namorado. Parece moça de bem, E eu de bem, er também. Ora vós er ide vendo Se lhe vem milhor ninguém, A segundo o que eu entendo.

Cuido que lhe trago aqui Pêras da minha pereira... Hão-de estar na derradeira. Tende ora, Inês, per i.

INÊS
E isso hei-de ter na mão?

PÊRO
Deitae as peas no chão.

INÊS
As perlas pera enfiar.. Três chocalhos e um novelo... E as peias no capelo... E as pêras? Onde estão?

PÊRO
Nunca tal me aconteceu! Algum rapaz m'as comeu... Que as meti no capelo, E ficou aqui o novelo, E o pente não se perdeu. Pois trazia-as de boa mente...

INÊS
Fresco vinha aí o presente Com folhinhas borrifadas!

PÊRO
Não, que elas vinham chentadas Cá em fundo no mais quente.

Vossa mãe foi-se? Ora bem... Sós nos leixou ela assi?... Cant'eu quero-me ir daqui, Não diga algum demo alguém...

INÊS
Vós que me havíeis de fazer? Nem ninguém que há-de dizer? (O galante despejado!).

PÊRO
Se eu fora já casado, D'outra arte havia de ser Como homem de bom recado.

INÊS
(Quão desviado este está! Todos andam por caçar Suas damas sem casar E este... tomade-o lá!).

PÊRO
Vossa mãe é lá no muro?

INÊS
Minha mãe eu vos seguro Que ela venha cá dormir

PÊRO
Pois, senhora, eu quero-me ir Antes que venha o escuro.

INÊS
E não cureis mais de vir.

PÊRO
Virá cá Lianor Vaz, Veremos que lhe dizeis...

INÊS
Homem, não aporfieis, Que não quero, nem me apraz. Ide casar a Cascais.

PÊRO
Não vos anojarei mais, Ainda que saiba estalar; E prometo não casar Até que vós não queirais.

(Pêro vai-se, dizendo:) Estas vos são elas a vós: Anda homem a gastar calçado, E quando cuida que é aviado, Escarnefucham de vós! Creo que lá fica a pea... Pardeus! Bô ia eu à aldeia!

(Voltando atrás)

Senhora, cá fica o fato?

INÊS
Olhai se o levou o gato...

PÊRO
Inda não tendes candea? Ponho per cajo que alguém Vem como eu vim agora, E vos acha só a tal hora: Parece-vos que será bem? Ficai-vos ora com Deos: Çarrai a porta sobre vós Com vossa candeazinha. E sicais sereis vós minha, Entonces veremos nós...

 
Farsa de Inês Pereira
Vai-se Pêro Marques e diz Inês Pereira>>>>>>>>>>>>>>>>>
 
Página Principal - Gil Vicente - Teatro - Ciberarte - Letras - Alquimias