TEATRO

 
Farsa de Inês Pereira
GIL VICENTE
 

Vem o Escudeiro, com seu Moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando só:

ESCUDEIRO
Se esta senhora é tal Como os Judeus ma gabaram, Certo os anjos a pintaram, E não pode ser i al. Diz que os olhos com que via Foram de Santa Luzia, Cabelos, da Madanela... Se fosse moça tão bela, Como donzela seria?

Moça de vila será ela Com sinalzinho postiço, E sarnosa no toutiço, Como burra de Castela. Eu, assi como chegar Cumpre-me bem atentar Se é garrida, se honesta, Porque o milhor da festa É achar siso e calar.

(Falando para Inês:)

MÃE
Se este escudeiro há-de vir E é homem de discrição, Hás-te de pôr em feição, De falar pouco e não rir E mais, Inês, não muito olhar E muito chão o menear Por que te julguem por muda, Porque a moça sesuda É uma perla pera amar.

(Falando para o criado:)

ESCUDEIRO
Olha cá, Fernando, eu vou Ver a com que hei-de casar. Avisa-te, que hás-de estar Sem barrete onde eu estou.

MOÇO
(Como a rei! Corpo de mi! Mui bem vai isso assi...)

ESCUDEIRO
E, se cuspir, pola ventura, Põe-lhe o pé e faz mesura.

MOÇO
(Ainda eu isso não vi!)

ESCUDEIRO
E se me vires mentir Gabando-me de privado, Está tu dissimulado, Ou sai-te pera fora a rir Isto te aviso daqui, Faze-o por amor de mi.

MOÇO
Porém, senhor digo eu Que mau calçado é o meu Pera estas vistas assi.

ESCUDEIRO
Que farei, que o sapateiro Não tem solas nem tem pele?

MOÇO
Sapatos me daria ele, Se me vós désseis dinheiro...

ESCUDEIRO
Eu o haverei agora. E mais calças te prometo.

MOÇO
(Homem que não tem nem preto, Casa muito na má hora.)

Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, e levantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o Escudeiro:

ESCUDEIRO
Antes que mais diga agora, Deus vos salve, fresca rosa, E vos dê por minha esposa, Por mulher e por senhora; Que bem vejo Nesse ar, nesse despejo, Mui graciosa donzela, Que vós sois, minha alma, aquela Que eu busco e que desejo. Obrou bem a Natureza Em vos dar tal condição Que amais a discrição Muito mais que a riqueza. Bem parece Que a discrição merece Gozar vossa fermosura, Que é tal que, de ventura, Outra tal não se acontece. Senhora, eu me contento Receber vos como estais: Se vós vos não contentais, O vosso contentamento Pode falecer no mais.

LATÃO
(Como fala!

VIDAL
E ela como se cala! Tem atento o ouvido... Este há-de ser seu marido, Segundo a coisa s'abala.)

ESCUDEIRO
Eu não tenho mais de meu, Somente ser comprador Do Marichal meu senhor E são escudeiro seu. Sei bem ler E muito bem escrever E bom jogador de bola, E quanto a tanger viola, Logo me vereis tanger Moço, que estais lá olhando?

MOÇO
Que manda Vossa Mercê?

ESCUDEIRO
Que venhais cá.

MOÇO
Pera quê?

ESCUDEIRO
Por que faças o que eu mando!

MOÇO
Logo vou. (O Diabo me tomou: Sair me de João Montês Por servir um tavanês Mor doudo que Deus criou!)

ESCUDEIRO
Fui despedir um rapaz Que valia Perpinhão, Por tomar este ladrão. Moço!

MOÇO
Que vos praz?

ESCUDEIRO
A viola.

MOÇO
(Oh! como ficará tola Se não fosse casar ante Co mais sáfio bargante Que coma pão e cebola!). Ei-la aqui bem temperada, Não tendes que temperar

ESCUDEIRO
Faria bem de ta quebrar Na cabeça bem migada!

MOÇO
E se ela é emprestada, Quem na havia de pagar? Meu amo, eu quero m'ir.

ESCUDEIRO
E quando queres partir?

MOÇO
Ante que venha o Inverno, Porque vós não dais governo Pera vos ninguém servir

ESCUDEIRO
Não dormes tu que te farte?

MOÇO
No chão, e o telhado por manta... E çarra-se m'a garganta Com fome.

ESCUDEIRO
Isso tem arte...

MOÇO
Vós sempre zombais assi.

ESCUDEIRO
Oh que boas vozes tem Esta viola aqui! Leixa-me casar a mi, Depois eu te farei bem.

MÃE
Agora vos digo eu Que Inês está no Paraíso!

INÊS
Que tendes de ver co isso? Todo o mal há-de ser meu.

MÃE
Quanta doudice!

INÊS
Oh! como é seca a velhice! Leixai-me ouvir e folgar, Que não me hei-de contentar De casar com parvoíce. Pode ser maior riqueza Que um homem avisado?

MÃE
Muitas vezes, mal pecado, é milhor boa simpreza.

LATÃO
Ora oivi, e oivireis. Escudeiro, cantareis Alguma boa cantadela. Namorai esta donzela E esta cantiga direis:

Canta o Judeu

«Canas do amor, canas, canas do amor Polo longo dum rio Canaval vi florido, Canas do amo.»

Canta o Escudeiro o romance «Mal me quieren en Castilla» e diz Vidal:

VIDAL
Latão, já o sono é comigo Como oivo cantar guaiado, Que não vai esfandegado...

LATÃO
Esse é o Demo que eu digo! Viste cantar Dona Sol: Pelo mar voy a vela, Vela vay pelo mar?

VIDAL
Filha Inês, assi vivais Que tomeis esse senhor Escudeiro cantador E caçador de pardais, Sabedor revolvedor Falador gracejador Afoitado pela mão, E sabe de gavião... Tomai-o por meu amor.

Podeis topar um rabugento, Desmazelado, baboso, Descancarado, brigoso, Medroso, carapatento. Este escudeiro, aosadas, Onde se derem pancadas, Ele as há-de levar Boas, senão apanhar.. Nele tendes boas fadas.

MÃE
Quero rir com toda a mágoa Destes teus casamenteiros! Nunca vi Judeus ferreiros Aturar tão bem a frágoa. Não te é milhor mal por mal, Inês, um bom oficial, Que te ganhe nessa praça, Que é um escravo de graça, E mais casas com teu igual?

LATÃO
Senhora, perdei cuidado: O que há-de ser há-de ser; E ninguém pode tolher O que está determinado.

VIDAL
Assi diz Rabi Zarão.

MÃE
Inês, guar'-te de rascão! Escudeiro queres tu?

INÊS

Jesu, nome de Jesu! Quão fora sois de feição!

Já minha mãe adivinha... Folgastes vós na verdade Casar à vossa vontade? Eu quero casar à minha.

MÃE
Casa, filha, muit'embora.

ESCUDEIRO
Dai-me essa mão, senhora.

INÊS
Senhor de mui boa mente.

ESCUDEIRO
Per palavras de presente Vos recebo desd'agora.

Nome de Deus, assi seja! Eu, Brás da Mata, Escudeiro, Recebo a vós, Inês Pereira Por mulher e por parceira Como manda a Santa Igreja.

INÊS
Eu, aqui diante Deus, Inês Pereira, recebo a vós, Brás da Mata, sem demanda, Como a Santa Igreja manda.

LATÃO
Juro al Deu! Aí somos nós!

Os Judeus ambos

Alça manim, ó dona, ha! Arreia espeçulá. Bento o Deu de Jacob, Bento o Deu que a Faraó

MÃE
Espantou e espantará. Bento o Deu de Abraão, Benta a terra de Canão. Para bem sejais casados! Dai-nos cá senhos ducados.

MÃE
Amenhã vo-los darão.

Pois assi é, bem será Que não passe isto assi. Eu quero chegar ali Chamar meus amigos cá, E cantarão de terreiro.

ESCUDEIRO
Oh! quem me fora solteiro!

INÊS
Já vós vos arrependeis?

ESCUDEIRO
Ó esposa, não faleis, Que casar é cativeiro.

 
Farsa de Inês Pereira
 
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