TEATRO

 
Farsa de Inês Pereira
GIL VICENTE
 

Vem um Ermitão a pedir esmola, que em moço lhe quis bem, e diz:

Señores, por caridad Dad limosna al dolorido Ermitaño de Cupido Para siempre en soledad. Pues su siervo soy nacido. Por ejemplo, Me meti en su santo templo Ermitaño en pobre ermita, Fabricada de infinita Tristeza en que contemplo,

Adonde rezo mis horas Y mis dias y mis años, Mis servicios y mis daños, Donde tu, mi alma, Iloras El fin de tantos engaños. Y acabando Las horas, todas llorando, Tomo las cuentas una y una, Con que tomo a la fortuna Cuenta del mal en que ando, Sin esperar paga alguna.

Y ansi sin esperanza De cobrar lo merecido, Sirvo alli mis dias Cupido Con tanto amor sin mudanza, Que soy su santo escogido. Ó señores, Los que bien os va d'amores, Dad limosna al sin holgura, Que habita en sierra oscura, Uno de los amadores Que tuvo menos ventura.

Y rogaré al Dios de mi, En quien mis sentìdos traigo, Que recibais mejor pago De lo que yo recebi En esta vida que hago. Y rezaré Com gran devocion y fé, Que Dios os libre d'engaño, Que esso me hizo ermitaño, Y pera siempre seré, Pues pera siempre es mi daño.

INÊS
Olhai cá, marido amigo, Eu tenho por devação Dar esmola a um ermitão. E não vades vós comigo

PÊRO
I-vos embora, mulher Não tenho lá que fazer

(Inês fala a sós com o Ermitão):

INÊS
Tomai a esmola, padre, lá, Pois que Deus vos trouxe aqui.

ERMITÃO
Sea por amor de mi Vuesa buena caridad. Deo gratias, mi señora! La limosna mata el pecado, Pero vos teneis cuidado De matar-me cada hora. Deveis saber Para merced me hacer Que por vos soy ermitaño. Y aun más os desengaño: Que esperanças de os ver Me hizieron vestir tal paño.

INÊS
Jesu, Jesu! manas minhas! Sois vós aquele que um dia Em casa de minha tia Me mandastes camarinhas, E quando aprendia a lavrar Mandáveis-me tanta cousinha? Eu era ainda Inesinha, Não vos queria falar.

ERMITÃO
Señora, tengo-os servido Y vos a mi despreciado; Haced que el tiempo pasado No se cuente por perdido.

INÊS
Padre, mui bem vos entendo Ó demo vos encomendo, Que bem sabeis vós pedir! Eu determino lá d'ir À ermida, Deus querendo.

ERMITÃO
E quando? INÊS I-vos, meu santo, Que eu irei um dia destes Muito cedo, muito prestes.

ERMITÃO
Señora, yo me voy en tanto.

(Inês torna para Pêro Marques):

INÊS
Em tudo é boa a concrusão. Marido, aquele ermitão É um anjinho de Deus...

PÊRO
Corregê vós esses véus E ponde-vos em feição.

INÊS
Sabeis vós o que eu queria?

PÊRO
Que quereis, minha mulher?

INÊS
Que houvésseis por prazer De irmos lá em romaria.

PÊRO
Seja logo, sem deter

INÊS
Este caminho é comprido... Contai uma história, marido.

PÊRO
Bofá que me praz, mulher

INÊS
Passemos primeiro o rio. Descalçai-vos.

PÊRO
E pois como?

INÊS
E levar me-eis no ombro, Não me corte a madre o frio.

Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:

INÊS
Marido, assi me levade.

PÊRO
Ides à vossa vontade?

INÊS
Como estar no Paraíso!

PÊRO
Muito folgo eu com isso.

INÊS
Esperade ora, esperade! Olhai que lousas aquelas, Pera poer as talhas nelas!

PÊRO
Quereis que as leve?

INÊS
Si. Uma aqui e outra aqui. Oh como folgo com elas!

Cantemos, marido, quereis?

PÊRO
Eu não saberei entoar..

INÊS
Pois eu hei só de cantar E vós me respondereis Cada vez que eu acabar: «Pois assi se fazem as cousas». Canta Inês Pereira:

INÊS
«Marido cuco me levades E mais duas lousas.»

PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»

INÊS
«Bem sabedes vós, marido, Quanto vos amo. Sempre fostes percebido Pera gamo. Carregado ides, noss'amo, Com duas lousas.»

PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas»

INÊS
«Bem sabedes vós, marido, Quanto vos quero. Sempre fostes percebido Pera cervo. Agora vos tomou o demo Com duas lousas.»

PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»

E assi se vão, e se acaba o dito Auto.

 
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