TEATRO

 
GIL VICENTE
Auto da Barca do Inferno
 
 
Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

Barqueiro mano, meus olhos, prancha a Brísida Vaz.

ANJO:

Eu não sei quem te cá traz...

BRÍZIDA

Peço-vo-lo de giolhos! Cuidais que trago piolhos, anjo de Deos, minha rosa? Eu sô aquela preciosa que dava as moças a molhos, a que criava as meninas pera os cónegos da Sé... Passai-me, por vossa fé, meu amor, minhas boninas, olho de perlinhas finas! E eu som apostolada, angelada e martelada, e fiz cousas mui divinas.

Santa Úrsula nom converteu tantas cachopas como eu: todas salvas polo meu que nenhüa se perdeu. E prouve Àquele do Céu que todas acharam dono. Cuidais que dormia eu sono? Nem ponto se me perdeu!

ANJO

Ora vai lá embarcar, não estês importunando.

BRÍZIDA

Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar.

ANJO

Não cures de importunar, que não podes vir aqui.

BRÍZIDA

E que má-hora eu servi, pois não me há-de aproveitar!...

Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

BRÍZIDA

Hou barqueiros da má-hora, que é da prancha, que eis me vou? E já há muito que aqui estou, e pareço mal cá de fora.

DIABO

Ora entrai, minha senhora, e sereis bem recebida; se vivestes santa vida, vós o sentirês agora...

 
 
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