TEATRO

 
GIL VICENTE
Auto da Barca do Inferno
 
 
Começou o frade a dar lição d'esgrima com a espada e broquel,
que eram d'esgrimir, e diz desta maneira:

FRADE

Deo gratias! Demos caçada! Pera sempre contra sus! Um fendente! Ora sus! Esta é a primeira levada. Alto! Levantai a espada! Talho largo, e um revés! E logo colher os pés, que todo o al no é nada!

Quando o recolher se tarda o ferir nom é prudente. Ora, sus! Mui largamente, cortai na segunda guarda! - Guarde-me Deus d'espingarda mais de homem denodado. Aqui estou tão bem guardado como a palhá n'albarda.

Saio com meia espada... Hou lá! Guardai as queixadas!

DIABO

Oh que valentes levadas!

FRADE

Ainda isto nom é nada... Demos outra vez caçada! Contra sus e um fendente, e, cortando largamente, eis aqui sexta feitada.

Daqui saio com üa guia e um revés da primeira: esta é a quinta verdadeira. - Oh! quantos daqui feria!... Padre que tal aprendia no Inferno há-de haver pingos?!... Ah! Nom praza a São Domingos com tanta descortesia!

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:

FRADE

Vamos à barca da Glória!

Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do Anjo desta maneira:

FRADE

Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã; rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã. Huhá!

Deo gratias! Há lugar cá pera minha reverença? E a senhora Florença polo meu entrará lá!

PARVO

Andar, muitieramá! Furtaste esse trinchão, frade?

FRADE

Senhora, dá-me à vontade que este feito mal está.

Vamos onde havemos d'ir! Não praza a Deus coa a ribeira! Eu não vejo aqui maneira senão, enfim, concrudir.

DIABO

Haveis, padre, de viir.

FRADE

Agasalhai-me lá Florença, e compra-se esta sentença: ordenemos de partir.

>>>Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira...
 
 
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