Mapa do Sítio - Abel Neves - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
   
   
 

ABEL NEVES

 

Dramaturgo e ficcionista português
Blog em: http://ciberpalheiro.blogspot.com/

  CARTA DE UMA CRIANÇA  A UM SOLDADO DESCONHECIDO EM BAGDAD
23 DE DEZEMBRO DE 2005

Olá Jimmy. Sou o Carlos. Sei que vais morrer porque a minha avó me disse e também o meu pai e por isso toma cuidado, mas se vais morrer nem é preciso tomar muito, não é? Escrevo-te que é para ver se ainda consegues não morrer, mas vai ser difícil, muito difícil. Olha, pelo menos pode ser que te lembres de sair daí. O meu pai diz que é cobardia se ficares. Não sei bem o que é cobardia e até acho esquisito uma pessoa ficar onde está e isso ser cobardia, ainda por cima em Bagdad onde todos os dias rebentam bombas por causa de estares aí. Só uma vez na escola é que me chamaram cobarde e foi porque estava sem vontade para dar um murro num esperto que apareceu e se meteu com a minha namorada. Não sei se te vou falar da minha namorada. Logo vejo. O esperto apareceu, disse-me que eu era um puto e que a minha namorada era melhor para ele, por causa da altura e de ser bonita. Por acaso até acho que sim porque a minha namorada pôs-se a olhar para ele com ar de quem já não me conhece, mas também tenho a impressão de que isso foram os meus olhos que viram, talvez eu tenha inventado, acho que sim. Escusado será dizer que a minha namorada é muito mais velha do que eu. Eu tenho nove e ela já tem onze. O esperto que apareceu e que depois foi embora sem que eu lhe tivesse dado um murro chama-se Leonel, mas um dia que eu possa falo com ele e se ele continuar a armar em esperto não sei se lhe dou mesmo um murro, ou talvez não, ou então um murro que não aleije muito, só para lhe dar a ideia de que não sou o que ele pensa, mas nem vale a pena falar mais disso. Pois é, Jimmy, tenho pena de ti porque sei que vais morrer, deves ter a tua família e os amigos à espera convencidos de que vais chegar a casa porreirinho, mas infelizmente para ti vais aparecer dentro duma caixa coberta com a bandeira do teu país e a umas horas esquisitas para que ninguém veja. Ouvi dizer que te levam à sucapa para a terra onde nasceste, e pronto de repente estás morto e já não tens hipótese de ir passear com a tua namorada ou ir ao cinema ou ler ou ir ao futebol. Não sei se tens namorada, mas acredito que sim. Já imaginaste se ela soubesse o que eu sei? A minha avó diz que se deve ter pena de ti. O meu pai não. O meu pai diz que ter pena é uma cobardia. Por tudo e por nada, o meu pai acha que são todos cobardes. Acho que exagera um bocado, mas como há coisas que eu ainda não percebo muito bem é possível que ele tenha razão, não sei. O meu pai tem quarenta anos. Há uns tempos vi-o chorar. Agarrou-se a mim e começou a chorar. Também chorei mas não percebi. Ele não disse nada. A minha avó e o meu avô é que me disseram que a minha mãe foi trabalhar para um país longe daqui. A última vez que vi a minha mãe foi quando saiu para o hospital. Sei que era o hospital porque ouvi dizer a uma vizinha e achei estranho ela ir trabalhar para um país longe daqui sem se me dizer nada, mas o meu pai disse-me que a minha mãe não gosta de se despedir e assim que foi melhor. Ia com uma saia verde que eu lhe dei uma vez no natal, mas que foi o meu pai que comprou. Eu ainda era uma criança pequena, foi há bastante tempo, tinha seis anos. Tenho a impressão de que a minha mãe morreu porque num outro dia perguntei ao meu pai se ela tinha morrido e comecei a chorar mesmo antes de o meu pai não dizer nada, mas disse-lhe que ia ser forte. Ouvi o meu avô dizer isso uma vez ao meu pai, que era preciso ser forte. Depois chorei mais vezes e agora sei que a minha mãe morreu. A minha avó está sempre comigo e como te disse tem muita pena de ti. Eu, como o meu pai, não tenho pena. Estás em Bagdad porque queres. Faz-me confusão uma pessoa estar em paz e depois ir para a guerra. Nós aqui vivemos em paz e não queremos ir para a guerra, aliás se fôssemos ia ser uma chatice muito grande porque já há tantos problemas para resolver que não sei como é que o governo se ia safar. É claro que um país pequeno, como é o meu, não pode armar-se em esperto e desafiar outro país para uma guerra. Para haver guerra, acho eu, tem que haver motivos muito, muito, mas muito, muito fortes, e ouvi dizer que os motivos que te levaram para Bagdad, afinal, são todos mentira. Eu acho que não é justo andarem a matar pessoas e ainda por cima numa guerra que é mentirosa. Tu achas bem? Deves achar, senão não estavas onde estás. Uma pessoa para ir para uma guerra, acho eu, tem de estar cheia de justiça para conseguir vencer e é esquisito só de pensar nisso. Se há guerra como é que pode haver justiça? Como é possível que as pessoas que vivem em paz queiram a guerra? A não ser que não vivam em paz. Se calhar na tua América não se vive em paz, mas sim em guerra. Deve ser por isso que estão sempre a fazer guerras em todo o lado. Pode ser, claro, que no teu bairro as pessoas não vivam em guerra, mas estou a pensar no teu país todo. Por exemplo: quando vejo os filmes que passam na televisão. É sempre tiros e perseguições. Isso é viver em guerra, não? Perguntei ao meu avô e ele disse-me que sim, e que quando os frutos estão maduros caem da árvore e apodrecem. Não percebi bem, mas fiquei a pensar. Será que o mundo é uma árvore e de vez em quando vão caindo frutos? Não sei se estou a pensar esquisito, mas não me interessa, o que interessa é pensar. Espero bem que também penses enquanto estás aí e não morres. Há muitas coisas que eu vejo na televisão que se passam em Bagdad, e que também ouço dizer, que tu não vês nem ouves. É muito normal. Assim como há outras que só tu é que vês e ouves e eu não vejo nem ouço. O meu grande amigo da escola é o Bruno Miguel, tenho mais, mas o Bruno Miguel é que é o maior, mas chateamo-nos porque ele disse que quer ser motorista de tanques de combate e que tem um sonho: conduzir um tanque no deserto com um capacete com olheiras especiais para a noite e computadores a bordo. Chateei-me com o Bruno Miguel porque ele tem a mania e só quer brincar às guerras e fica cheio de comichão se lhe digo que o melhor é irmos jogar futebol. Ele na avançada é bom e eu prefiro trinco a meio campo, mas não me importo de jogar a guarda-redes. Quando disse ao Bruno Miguel que estava a escrever uma carta para ti ele quis logo ler. Disse-lhe que não podia ser porque só no final é que pode ser, até porque é a minha prima Inês que faz as correcções e arranja maneira da carta ficar mais ou menos bem escrita para tu perceberes tudo o que te quero dizer. Ela está no primeiro ano da Universidade e vai ser médica. Eu ainda não sei, talvez canalizador. Os canos da casa da minha avó estão sempre a avariar-se e ela diz que não há quem os arranje em condições. Estamos chateados. O Bruno Miguel disse que se era o meu melhor amigo eu devia mostrar-lhe a carta e respondi que não, claro que não, ele empurrou-me e foi-se embora. Não sei quando vamos voltar a falar normalmente. Ele tem em casa um jogo que é meu e quando lho pedir vamos ter que falar e nessa altura de certeza que voltamos a ser amigos. Toda a gente diz que o Bruno Miguel tem um feito muito especial e se calhar é por isso que sou mesmo amigo dele, mas não gosto nada quando ele se pôe armado em estúpido. Olha, Jimmy: quando comecei a escrever esta carta pensei que devia apontar os dias em que escrevo, quer dizer, dizer os dias em que me ponho a escrever para ti porque já deves ter percebido que não escrevi tudo de enfiada, mas depois vi que não. Às vezes só escrevo uma linha ou duas, as que posso, não é? O que eu queria era acabar a carta antes de morreres porque senão mando a carta e tu já não a poderás ler. Vou fazer um esforço para conseguir acabá-la a tempo. Ando a pensar como é que depois te envio a carta, mas não acho que seja difícil. Mando para um quartel em Bagdad e alguém te vai entregar depois no tanque, no jeep, onde estiveres, até pode ser que estejas a passear e passe o carteiro e como não deve haver muitos soldados com o teu nome é fácil. Ou há muitos com o teu nome? Só a minha avó, a minha prima Inês e o Bruno Miguel sabem que te estou a escrever. Nem a minha namorada sabe. Ela é um bocado ciumenta e é por isso. Se ela sabe que estou a escrever assim uma carta tão grande para ti e para ela não lhe escrevo nada vai ficar amuada e depois não sei se quer deixar de namorar comigo. Para já não lhe digo nada. É que gosto muito dela e não quero que um soldado que vai morrer estrague o meu namoro com a rapariga mais querida da escola. A Inês vai depois passar a carta no computador e até me perguntou se queria que eu depois pusesse a carta no blog dela. Ela mostrou-me. É giro, ela pôs uns elefantes no lado direito da página e também umas florinhas azuis. Todos os dias escreve para o blog. Eu é que não sei ainda como se faz, mas também para já não me interessa muito. Gosto mais de jogar futebol e ir à piscina, e como o blog é dela disse-lhe que não queria que pusesse lá a carta que é para ti. Ela disse-me que eu é que sabia e ficamos assim. É engraçado eu estar a falar disto e saber que ela depois vai ler para fazer as correcções, mas digo que o blog dela é muito giro e isso é que importa. Se eu tivesse um blog era muito fácil. Punha lá a carta, depois era só avisar-te e tu ias ler no computador do quartel, mas como toda a gente que tem internet pode ler a carta que é só para ti acho melhor meter o papel num envelope e mandá-la directamente para Bagdad. Antes que tu morras, claro. Directamente foi a Inês que escreveu. A Inês corrigue e também me ajuda a dizer melhor certas coisas que às vezes soam mal e estou contente porque até agora está tudo bem. A Inês é fixe. Disse-me para eu não me preocupar com o facto de ires morrer e para eu escrever a carta com calma. Não acho nada. Quero escrever depressa para que tu tenhas tempo de ler, senão para que é que serve eu estar a escrever uma carta para ti? Um dia destes pareceu-me que eras tu em cima dum carro de combate numa daquelas ruas depois que explodiu uma bomba. Normalmente a minha avó diz-me para eu ir fazer trabalhos quando ela e o meu avô estão a ver as notícias, mas eu faço de conta que estou a fazer contas, ponho a mão assim na cabeça, espreito pelo canto do olho e vejo as reportagens. Tenho quase a certeza de que eras tu em cima do carro. Tinhas um fato muito complicado de vestir, se calhar até nem é complicado, mas com aqueles bolsos todos mais os coletes e os computadores e a metralhadora até parece. Eras tu, Jimmy, quase de certeza que eras tu e ainda não morreste. Sabes por que é que me lembrei de te escrever? Porque depois de saber que vais morrer, pensei que se calhar podias não morrer para já se eu te escrevesse. É por isso que tenho alguma pressa e não estou de acordo com a Inês. Ela hoje perguntou-me: “Mas tu conheces o Jimmy?” E eu respondi que sim. É claro que ela sabe que não e depois disse: “Sabes que mais? Tu estás é a escrever uma carta a um soldado desconhecido em Bagdad.” Fiquei a pensar um bocadinho e disse-lhe que não senhora, que te conheço muito bem, és o Jimmy, o soldado Jimmy em Bagdad, é assim que eu acho e pronto, sou eu que estou a escrever a carta e pronto. Hoje o Bruno Miguel veio perguntar se eu queria ir lanchar a casa dele. E fui. Ficámos outra vez amigos. Ele montou uma espécie de quartel dos comandos dentro do quarto. Tem uma data de capacetes da tropa pendurados do tecto, de vários feitios. Foi um tio dele que lhe arranjou. O Tio do Bruno Miguel está velhote e andou na guerra, numa guerra que nós tivemos há muitos anos em África. Os capacetes são esquisitos. O Bruno Miguel gosta mais é de um capacete inglês da segunda guerra mundial que o tio lhe comprou numa loja de velharias. Prendeu o capacete na estante por cima da cama e dorme com ele por cima como se fosse um candeeiro. Não gosto nada, mas isto sou eu a dizer, não é o gosto dele. O Bruno Miguel é mais velho do que eu e está a tentar convencer o pai a trocar o computador para poder jogar um jogo de estratégia que ele acha o máximo. Ele diz que é um jogo de estratégia, mas a mim parece-me que é de guerra. É um jogo que mete batalhões de soldados a andarem de um lado para o outro em cima dum mapa, não percebi bem, está em inglês, mas o Bruno já percebe um bocado como aquilo funciona. Mostrou-me a publicidade ao jogo e pude ver o mapa e os batalhões. Quando falo do Bruno costumo chamar-lhe Bruno Miguel. Toda a gente lhe chama Bruno Miguel, o pai, a mãe, a professora, todos. A mim sempre me fez alguma impressão chamá-lo com dois nomes e combinei com ele que a partir de agora chamo-lhe só Bruno. Não sei se vocês aí no quartel quando estão de folga fazem jogos de computador. E são de estratégia? O Bruno disse de certeza que sim, que quando estão nas tendas no deserto e não fazem nenhum e não podem ir a discotecas e coisas assim, se divertem a jogar jogos de estratégia. Até acontece haver os que jogam na internet. O irmão do Bruno joga com um soldado que está numa cidade que eu agora não sei dizer o nome. O irmão do Bruno trabalha e por isso é que tem um computador que é bom, ainda por cima trabalha numa loja de computadores. O meu grande amigo Bruno sabe muitas coisas que se passam na guerra porque é o tio que lhe diz e também porque vê mais televisão do que eu e tem muitos filmes em casa, mas nunca se lembrou de te escrever uma carta, Jimmy e, não sei, talvez eu até tenha pena de ti como a minha avó, ainda não sei bem. Fico a pensar no que diz o meu pai e também não tenho pena, ou melhor, acho que tenho menos pena. E sabes porquê? Por que é que eu, que só tenho nove anos, havia de ter pena de um soldado como tu, forte e com uma namorada gira, que se meteu a fazer uma guerra mentirosa e que por causa disso morreram e estão morrer sempre pessoas que antes de morrerem só queriam viver como as pessoas que vivem em paz? A ver se consigo dizer mais ou menos o que disse o meu pai: “Os ianquis são cobardolas. Corajosos são os que vivem em paz.” Ianquis não sei o que é, foi assim que ouvi, mas acho que são todos os que vão para a guerra ou pelo menos aqueles que saem da américa para irem fazer uma guerra qualquer noutro sítio, como é costume. Estive a ler a carta lá para trás e não fiz emendas nenhumas. Estou a dizer porque a minha avó disse-me que é importante fazer emendas ao que se escreve sobretudo porque as coisas que dizemos saltam de um dia para o outro e podem não interessar no dia seguinte ou acontece que podemos repetir coisas e isso não ser bom (acho que a Inês vai-me ajudar a dizer isto melhor). Para que saibas, ainda não mostrei a carta à minha avó. Ela falou-me. Disse-me: “Então como é que vai a tua carta? Continuas a escrever?” Eu disse que sim e mais nada. Quando te mandar a carta vou-lhe dar uma cópia. Decidi que vou fazer cinco cópias. Uma para o meu pai, outra para os meus avós, outra para a Inês, uma para a minha namorada e outra para mim. Ainda estou a pensar se dou uma ao Bruno. O mais possível é só dizer-lhe que te mandei a carta e pronto, senão ainda se vai chatear por ter falado nele. A minha cópia vou guardá-la bem guardada ao pé dos cromos da bola e não vou deixar que alguém a leia, a não ser se houver alguma coisa muito especial, por exemplo, se a minha avó perder a cópia dela, ou o meu pai. A minha namorada se perder a cópia dela não lhe dou mais nenhuma. Ela que guarde como deve ser. Ah, é verdade, agora que li para trás. Não te disse o nome da minha namorada. Chama-se Beatriz, tem os olhos castanhos como eu e usa tranças. Gosta muito de trincar as tranças e eu acho giras. Logo depois que conheci a Beatriz disse-lhe que se calhar ia casar com ela, mas ainda não sei bem. Por enquanto é só minha namorada e ela também diz que eu sou o namorado dela. Até temos uma carta assinada onde dizemos que somos namorados. É ela que tem a carta e não me deu nenhuma cópia. Para além de ser muito bonita, tem assim um sinal por cima do lábio que me apetece sempre dar um beijo, a Beatriz também não gosta de guerras como eu e, não sei se estás a ver, mas já somos dois. Ela acha que antes de haver guerra as pessoas deviam falar muito umas com as outras para combinar as coisas de maneira a que não fosse preciso haver guerra. Estou muito de acordo. Ela também acha que vais morrer e também não tem pena porque tem mais pena dos outros que já morreram por tua causa e mais os que ainda vão morrer. Um dia destes estivemos os dois a falar sobre como devem ser as escolas aí em Bagdad e não chegámos a uma conclusão boa, ou melhor, chegámos à conclusão que devem ser tristes, cheias de buracos no tecto e muita caliça no chão por causa das bombas. Assim não se consegue aprender em condições nem os professores devem gostar muito de ensinar. Quem é que gosta de estar na escola com os aviões a passar por cima dos telhados? A não ser que haja crianças com o meu amigo Bruno que gostem de brincar aos tiros e corram atrás dos tanques. O Bruno é que havia de gostar de estar aí. Os tanques são verdadeiros e pelo menos ele ia perceber que numa guerra a sério os tiros matam mesmo e quando se morre, pronto, acabou-se, uma pessoa está morta e já não pode ressuscitar porque para se ressuscitar é preciso acreditar-se em Deus e não estou a ver que as pessoas como tu que fazem guerras podem acreditar em Deus, ou se dizem que acreditam também estão a mentir. São muitas mentiras ao mesmo tempo e está-se mesmo a ver que isso não é bom, e estou avisar-te Jimmy, mas tu é que sabes, só não sabes, para já, é que vais morrer. A propósito daquilo que a Beatriz acha, e que eu também acho, e que é o de as pessoas falarem umas com as outras antes de fazerem as guerras, devia ser uma coisa obrigatória, quer dizer, quando uma pessoa quisesse entrar em guerra com outra devia avisá-la primeiro e marcar reuniões para ver se podia haver uma solução que não fosse logo andar aos tiros, até porque as armas não são iguais, e os mais pobres têm logo mais problemas e é por isso que depois arranjam maneiras muito esquisitas de fazer a guerra, como por exemplo, mandar aviões contra os prédios mais altos do mundo. Também acho que essas pessoas que pôem uns cintos com bombas e que se atiram contra os jeeps e as pessoas aí em Bagdad não são muito boas da cabeça, mas ao mesmo tempo fico a pensar que se calhar são pobres que não têm dinheiro para comprar armas para se defender das outras bombas que caem e então decidem armar-se em bomba e explodir. É muito esquisito uma pessoa explodir e nem consigo imaginar. E então quando isso acontece no meio de pessoas que só querem é viver em paz e que não têm nada a ver com os soldados nem os presidentes que mandam fazer as guerras? Ah, por falar em presidentes, Jimmy. O presidente que te mandou aí para Bagdad é mesmo muito estúpido, quer dizer, não é estúpido, eu é que estou a dizer e espero que não me leves a mal eu dizer que ele é estúpido. O eu dizer que ele é, não quer dizer que seja, mas não sou só eu a pensar. A Beatriz também acha. O meu pai. O meu avó e a a minha avó também, e a minha avó até acha mais que o meu avô. Só o Bruno é que não. Já viste Jimmy?, tu estás em Bagdad e vais morrer porque o teu presidente estúpido te mandou para aí. O que é que dizes? Desculpa, mas agora vou ter que parar. A minha avó está-me a chamar para eu ir lavar os dentes e depois vai-me levar a uma loja para eu comprar um presente para o meu pai que faz anos amanhã. Já cá estou e um bocado chateado. Fomos à loja, mas não encontrámos o que eu queria. Por acaso até encontrámos só que era muito caro. Dissemos boa tarde ao senhor da loja e viemos embora. Queria comprar um candeeiro assim com a capuça em forma de globo (globo foi a Inês que disse para eu escrever) e que era mesmo o candeeiro certo para o meu pai ter ao pé da cama para ele ler quando se vai deitar. A minha avó disse que pelo preço do candeeiro que eu queria podíamos comprar outras coisas que o meu pai gosta e ainda ia sobrar. O mal foi eu ter escolhido sem ter visto o preço. Decidimos arranjar uma máquina de sumos e de certeza que vai gostar. O meu mealheiro está quase cheio e quando tiver de o partir logo vejo se posso comprar o candeeiro para o próximo ano. Quando o meu pai me deu o mealheiro disse-me que ia ser muito fácil enchê-lo e depois passear à custa das moedas que estão lá dentro e eu decidi há um bocado que dou depois um passeio mais pequeno e com o resto das moedas compro o candeeiro. Não vai ser difícil. Tive uma vez um mealheiro que se podia tirar as moedas e por isso não funcionava como devia ser. O que eu tenho agora nem sequer é um porco, mas é de barro e para funcionar tem que se partir. É uma galinha. Por falar em galinhas. Amanhã vou ver um burro a sério. A professora vai-nos levar a uma quinta onde há agricultura para vermos as coisas que comemos em casa e que há nos supermercados, o Bruno, por exemplo, pensava que as batatas nasciam nas árvores como as nozes. Aproveitamos e vemos um burro que há lá. Disseram-me que em Bagdad ainda há burros, é verdade, Jimmy? Que há carroças e que eles levam as carroças com frutos, latas e assim. A palavra que a minha professora disse foi “nobres”, que os burros são nobres. Deve ter a ver com andarem sempre a puxar coisas e parecer que nunca estão cansados, espero perceber melhor. Ando com um joelho esfolado, mas isso não tem importância nenhuma comparado com a história de um menino aí em Bagdad que ficou sem os braços numa dessas bombas que o teu presidente mandou atirar. Ouvi isso a uma vizinha que estava a falar com a minha avó. Não conheço esse menino. Não sei se às vezes vais ao hospital. Se fores e vires o menino podes dar-lhe um grande, grande abraço do Carlos? E já agora também da minha avó, do meu pai, do meu avô, da Beatriz, da Inês e da minha professora, pode ser? Tem de ser antes de morreres, não te esqueças. Perguntei ao meu avô como é que eles iam fazer. Será que os médicos vão conseguir pôr braços novos no menino? Acho difícil, não é? Tens visto amigos teus aí em Bagdad que ficam sem pernas e isso? Aqui já vi, no telejornal, mas ultimamente não se vê muito. Deve ser porque não querem mostrar para que as pessoas não se enervem. É muito possível que o teu presidente tenha pedido ao meu presidente para não mostrar essas imagens. Perguntei ao meu pai. Ele disse-me que o nosso presidente não deve ter recebido nenhum telefonema do teu presidente. Ainda bem. Deve ser muito chato ter que falar com um presidente estúpido. E na tua terra? Vêem-se imagens dos amigos teus que ficam sem pernas e isso? Não deves saber, não é?, estás aí e nem sabes bem o que se passa na tua terra, mesmo que a tua namorada te escreva cartas. E na tua terra sabem onde fica Bagdad? Eu não sabia e o meu pai mostrou-me no mapa. Disse-me que é uma cidade muito antiga onde se passam as histórias do livro das mil e uma noites. Já ouviste falar? Disse-me também que foi mais ou menos aí que os nossos antepassados inventaram a escrita e que é uma terra muito rica de coisas antigas (eu aqui só tinha escrito “terra muito rica”, a Inês é que me disse para eu pôr “de coisas antigas”). Sabias? O meu pai também me disse que é por ser uma terra muito rica que o teu presidente estúpido mandou cair as bombas e o resto. Não percebo como é que um presidente, mesmo estúpido, pode mandar numa terra que não é dele. O meu pai também acha, quer dizer, também não percebe, mas o meu pai diz que não percebe, mas eu acho que percebe, não quer é dizer tudo já, está à espera que eu cresça um bocado mais e depois diz-me. Nessa altura nem vai ser preciso porque entretanto eu já percebi. O Bruno chateou-me. Ele tem um fato de cauboi e um jogo com um arco e flechas. Ele, então, ficava vestido de cauboi e mandava as flechas contra mim e eu tinha de morrer com uma pena de pavão da mãe dele presa na cabeça com um elástico. Disse-lhe que não, que ainda por cima as flechas eram do índio, e discutimos porque ele achava que se o jogo era dele eu tinha de fazer o que ele queria. Eu devia correr, depois parava quando ele me dissesse e atirava as flechas. Se me acertasse, eu estava morto. É um jogo estúpido. É de putos. As flechas têm borracha na ponta e se acertarem num olho uma pessoa até pode ficar como o Camões (não deves saber, mas o Camões era um poeta muito conhecido e pobre que havia aqui há muitos, muitos anos, ainda pouca gente era nascida, foi no tempo das caravelas, não sei se sabes o que eram as caravelas... eram barcos que levavam os portugueses a descobrir o mundo por aí fora uma data de anos seguidos só que muitas afundaram-se porque não havia as tecnologias que há hoje e os mares também tinham monstros que hoje já não há... o Camões é muito usado nos fados que são canções que muita gente canta sobretudo no Santo António no meio do vinho e das sardinhas assadas...), o Camões, um dia, não sei porquê, teve uma luta e enfiaram-lhe uma espada no olho direito, meteu uma pala e pronto, por isso é que eu digo se uma flecha do Bruno entrar no olho posso muito bem ficar com o olho à Camões, estás a perceber? Ó Jimmy, há coisas que de certeza devem ser giras aí em Bagdad e que tu nem sequer podes saber que há. Já pensaste que em vez de estares sempre metido na tua farda complicada com a metralhadora podias estar a apanhar sol numa esplanada, a ouvir música e a ver quem passava? Aqui depois que as pessoas trabalham podem ir para as esplanadas, ou outro sítio qualquer, e na América também, só não percebo é porque o teu presidente estúpido te mandou para Bagdad para não deixar as pessoas estar à vontade nas esplanadas depois do trabalho. Sonhei contigo, sabias? Estavas na praia e não tinhas farda, só calções e comias amendoins. Quando depois entraste no mar desapareceste e eu acordei. Lembrei-me porque estou a comer amendoins. A Inês já passou a minha carta no computador até mais ou menos aqui, até onde eu digo “à Camões, estás a perceber?”. Disse-me que está muito grande, que uma carta devia ser pequena para poder ir melhor no envelope do correio, mas pelos vistos eu não sou capaz de te escrever uma carta pequena, Jimmy. Desculpas se ela for grande? Por mim, não há problema, arranjo um envelope grande. Se fosse uma carta pequena, já viste?, lias num instante e morrias logo a seguir. Assim, sempre tens mais tempo. Disse à Inês que ia pensar, mas já estou a pensar e vou continuar a escrever. Ela não se importa de também continuar a passar no computador, e não sou eu que estou a dizer, foi ela que disse. Fomos à quinta, Jimmy. Vi muitos tomates, cenouras, feijões, couves, milho, batatas, abóboras. Ajudei a fazer uma trança de cebolas. Sabes o que é? É uma trança que se faz com cebolas, com as cascas compridas, vão-se enrolando umas nas outras até ficar uma trança. Depois pode-se pôr ao pescoço. A senhora da quinta pôs-me uma no pescoço e disse-me que eram minhas. Trouxemos todos uma trança no pescoço menos o Bruno. O Bruno enquanto estivemos a ajudar a arrancar batatas e outras coisas da terra preferiu andar a correr atrás dos porcos. Vi que a senhora da quinta não gostou muito mas não lhe disse nada. A nossa professora é que teve de agarrar o Bruno e dizer-lhe para fazer como nós, mas ele disse que não queria porque sujava as mãos. Também vi colmeias, mas de longe. O senhor que trata das abelhas não estava na quinta e só pudemos ver de longe. O Bruno quis ir lá perto, mas a professora não deixou. Passado um bocado o Bruno desapareceu, ninguém sabia onde ele estava. Andámos a chamar e ele não respondia. Ficámos todos preocupados, até que a senhora da quinta se lembrou de irmos a um sítio lá no meio do campo e foi por aí que começámos a ouvir a voz do Bruno a gritar. Então o que foi que aconteceu? O Bruno viu um poço antigo. É um poço que não tem água. Agarrou-se à corda que antes tinha um balde e desceu, só que quando quis subir, não sabe como fez, a corda partiu-se. Quando vimos o Bruno lá em baixo ainda nos fartámos de rir. Depois a senhora da quinta foi buscar uma corda boa e fomos nós que o puxámos para cima. Eu dei-lhe um grande abraço porque é o meu melhor amigo, e estava sério, mas antes ri-me. Senti que ele estava com o coração a bater que parecia um tambor. O tal burro de que te falei chama-se Adalberto. É muito simpático. Andámos em cima dele. Quando foi a vez do Bruno aconteceu uma coisa cómica. Mal o Bruno subiu para cima dele, a pila do burro começou a crescer muito. A Beatriz, que pediu à mãe para ir comigo à quinta, até me disse que o burro parecia que tinha cinco pernas. A minha avó gostou muito da trança de cebolas que trouxe e vai fazer sopas e saladas. Jimmy, tu aí comes sopas e saladas? Sabes, faz-me mesmo impressão saber que o teu presidente estúpido e mentiroso te manda para Bagdad para matar pessoas que não estão de acordo com ele e ainda por cima não é ele que vai, manda ir os outros como tu. E não percebo uma coisa: por que é que os soldados teus amigos que estão aí só dizem mal dele depois de ficarem sem olhos, braços ou pernas? Podiam dizer mal dele antes e nem sequer irem de avião aí para o Iraque. E os amigos dos soldados teus amigos também podiam dizer mal, mas pelos vistos é só quando acontece que morrem. Vi a televisão cheia de caixões com a bandeira americana. Não era um filme, era a sério, e perguntei ao meu pai se já tinha acabado a guerra. O meu pai disse-me que não, que as guerras não acabam, estão sempre a começar. Não percebi bem e fiquei a pensar. Mesmo depois de ter pensado muito ainda não percebi bem, mas não interessa, o que interessa é que percebi que as guerras passam na televisão como se fossem filmes que a gente vê às horas em que come e depois repetem a outras horas duante o dia. Tenho um dente em baixo que está a abanar e não quer cair. Parece que tenho de deixar que ele caia sem forçar. Jimmy, o que é que fazes quando estás de folga? Vês televisão, não é? Na guerra não devia haver folgas. Era uma maneira de todos se cansarem e a guerra acabar mais depressa. Não sei que piada é que tem estar na guerra e passar os dias de folga a ver televisão. Não vais ao menos ao deserto passear de camelo? Não sei se sabes, mas há uns homens no deserto - que não me lembro agora os nomes deles - que alugam camelos. A Inês também disse que há. Deve ser caro. Quem tem camelos, ao saber que és americano deve logo pôr os preços mais caros. A não ser que digas que não és. Ou então não leves a farda. Vai só com óculos de sol, calções, camisa e ténis. Se fizeres de conta que és turista talvez pagues menos que um americano, e mesmo assim não sei. E não fales, não digas nada. Se falares percebem logo que és o Jimmy. A Marta e o Miguel foram ao Egipto com a família e fartaram-se de pagar caro. Iam todos a fingir que eram turistas a ver se não passavam por americanos e mesmo assim pagaram caro, pelo menos o meu pai diz que é caro porque nós não podemos ir ao Egipto. Também, que me importa, não é?, nas férias vou à praia e gosto muito. O Miguel trouxe-me um escaravelho de pedra azul pequenino que dá sorte e guardei-o na gaveta das meias. Sempre que vou buscar meias ou cuecas vejo o escaravelho, passo-lhe a mão por cima e já está, fico cheio de sorte. Se fores ao Egipto num dia de folga compra um escaravelho e mete-o debaixo do capacete num sítio que não te magoe. Pode ser que não morras. É difícil, muito difícil porque eu sei que vais morrer. Seja como for, o escaravelho pode fazer efeito durante algum tempo e vale a pena. Entretanto come romãs porque fazem muito bem. Acho que os escaravelhos não são caros. O Miguel não ia comprar um escaravelho que fosse caro, mas eu não o troco por nada. O Bruno queria trocar por um avião que está com a asa partida. Eu disse que não e ele ficou chateado porque estava com vontade de colar o meu escaravelho em cima dum tanque por baixo do canhão. Além disso não ficava bem. Espero ter esta carta pronta quando chegar o Natal e também espero que ainda estejas vivo para poderes ler. Até lá ainda vou ter que estudar para depois ter umas ricas férias na terra do meu pai que fica ao pé do mar, não sei se conheces, no Alentejo. Também costumo ir à terra da minha avó que tem vacas que se farta (a Inês disse-me que se for escrito como está até parece que é a minha avó que tem vacas, mas é a terra dela que tem, acho que percebes, não?) A terra do meu avô fica perto da terra da minha avó e por isso quando vou à terra da minha avó é como se fosse à terra do meu avô e também o contrário. Não sei se te interessa muito saber, mas na terra do meu avô há um coreto onde a banda gosta de tocar (a Inês disse-me para eu escrever banda filarmónica porque é mais bonito, no computador é mais fácil de escrever filarmónica). Não sei se gostas de música. Eu gosto. É muito possível que um dia eu venha a tocar na banda da terra do meu avô só preciso é de saber tocar um instrumento. Talvez trombone, ainda não sei. Para se tocar trombone é preciso ter uma grande barriga e eu não sei se quero ter. E depois andar com o trombone também não é facílimo, imagina que tens de andar, sei lá, com seis ou sete metralhadoras, conseguias? O meu pai falou-me dum músico que era muito bom logo aos cinco anos, portanto muito mais puto do que eu, chamava-se Mozart, não era daqui, era doutro país, e se ele tocava e dava concertos com violino e com um instrumento que agora não me lembro o nome, por que é que eu também não posso, ainda por cima se sou muito mais velho? Tenho é de escolher o melhor instrumento que seja bom para mim, como se escolhesse uns sapatos para correr bem. Não podendo ser o trombone, talvez o oboé, não sei se já ouviste falar, ouviste? O problema vai ser andar e tocar ao mesmo tempo quando não se tocar no coreto, porque às vezes a banda também toca a andar, há pedras e assim coisas no caminho e um músico pode atrapalhar-se, qualquer pessoa pode quanto mais um músico que tem de tocar enquanto anda! A Beatriz acha que eu devia tocar pífaro. Não sei porque é que ela acha isso, nunca falei de pífaros. O instrumento de que eu gosto mais nem é o trombone nem o oboé. Adivinhas? Não, claro que não. São os pratos. Se pensas que é fácil de tocar, não é. Uma pessoa tem de estar muito mais atenta que todos porque se os pratos saem fora do sítio fica tudo baralhado. Começou a chover e a minha avó, que me veio trazer, está a mandar-me fechar a janela. A guerra com chuva deve ser muito chato. Vocês molham-se todos, as balas ficam com água dentro das metralhadoras e podem escorregar. Se calhar não, é estúpido. Como é que as balas podem escorregar dentro dos canos das metralhadoras? Eu daqui vejo as traseiras da casa da Beatriz e muitas vezes fazemos sinais um para o outro. Hoje ainda não fizemos nada. Ela tem a janela fechada e eu vou fechar a minha. Não sei muito bem se hoje tenho saudades dela. Lá mais para a frente faço anos e estou à espera de que o meu pai me dê uma bicicleta, quer dizer, não sei se é uma bicicleta porque ele não me disse, mas era o que eu queria, e como é o que eu queria deve ser por isso que não tenho hoje saudades da Beatriz. Não lhe vou dizer que hoje não tenho saudades dela. Se lhe digo e se ainda por cima digo que é por causa da bicicleta ela é capaz de ter ciúmes e pode querer deixar de ser minha namorada. Ela às vezes também não deve ter saudades minhas e nunca me disse, portanto não há problema. Ainda gostava de saber como é que fazes com a tua namorada, Jimmy. Ela escreve-te todos os dias? Telefonas ou é pela internet? Ela vai ficar muito triste quando souber que vais morrer, ou se calhar já sabe e não te diz, como eu, e para se armar em forte faz de conta que não sabe. Deves ter uma fotografia dela metida no bolso da farda, não? O meu avô também andou na guerra, na mesma em que andou o tio Bruno, e contou-me que andava sempre com a fotografia da minha avó dentro do bolso da camisa da farda. Dava-lhe beijos e assim, todos os dias. Tu como é que fazes? Também dás beijos na fotografia? Não é o mesmo. Quando dou um beijo na Beatriz sabe-me a qualquer coisa que está agarrada à pele dela. Uma fotografia é só papel e até se pode gastar, enquanto que a pele não se gasta com facilidade, e a fotografia até se pode perder, enquanto que a nossa namorada não se perde. Vês?, era muito melhor não estares em Bagdad e estares ao pé da tua namorada para lhe dares beijos na pele e outras coisas, passeares com ela, pores a mão no braço, na perna, na cabeça, onde ela quiser, e ela também. Não sei se gostas de fazer surf, deves gostar. Eu gosto, mas ainda não sei. Se gostasses de fazer surf levavas a tua namorada para a praia e ela ficava a ver-te enquanto bebia um sumo. É muito diferente fazer surf ou estar aí nessa estúpida dessa guerra, Jimmy, e ela também pode fazer surf, e olha que pode muito bem acontecer ela estar neste momento a fazer surf e ter um amigo qualquer na praia a olhar para ela e a beber sumo e depois ficarem namorados só porque ele faz surf muito bem e tu estás na guerra. Se fosse a ti pensava melhor e telefonava-lhe, o que é que achas? Combinavas um dia para chegar, até podias levar umas flores aí de Bagdad, mesmo que ficassem secas depois não era problema, ela ia gostar porque o meu avô diz que as mulheres gostam sempre de flores, mesmo secas, eu perguntei. Escusavas era de falar com o teu presidente estúpido. Não lhe dizias que te ias embora. Quando dessem por ela já tu estavas longe do acampamento e até podia ser que te emprestassem um desses camelos que há que são muito rápidos a correr no deserto. Num instante chegavas a casa. Tenho a certeza de que ela ia ficar muito feliz, como quando estamos muito tempo sem vermos quem gostamos muito. Já me aconteceu com a Beatriz ela ir passar o fim de semana não sei onde e depois ficar todo a tremer só porque não a vejo, e fico à espera que volte. Não digo nada a ninguém e a minha avó já pensou que eu estava com febre e tal, mas não era, era eu que estava só à espera que a Beatriz voltasse. O meu avô uma vez piscou-me o olho e percebi que ele percebeu, mas não disse nada à minha avó, nem ao meu pai. Só foi chato porque ela obrigou-me a ficar na cama e eu queria era ir até casa do Bruno. É um truque. Se vou a casa do Bruno quando a Beatriz não está e eu fico a tremer, parece que ela volta mais depressa. Uma vez consegui aguentar muito bem e só comecei a tremer em casa do Bruno. A mãe dele telefonou à minha avó e tive de voltar para casa. Estávamos a jogar monopólio, eu ia a ganhar, mesmo com o Bruno a fazer batota, e assim perdi, porque quem desiste perde. O meu pai gosta de cozinhar e disse-me que eu devia aprender a fazer bolos porque as namoradas gostam que os namorados saibam fazer bolos e outras coisas. Logo que eu aprenda a fazer um bolo, depois ensino-te. Gostava de saber fazer um bolo cheio de chantili e meter muitas nozes por dentro e por fora. Quando abro uma noz lembro-me da nossa cabeça por dentro e é como se dissesse: “Olha a minha cabeça por dentro!” Tenho sempre muito cuidado a partir as nozes. O meu avó ensinou-me a parti-las na frincha das portas, mas a minha avó chateia-se e depois não me deixa comer. Há uma coisa para fazer estalar as nozes e parti-las. Não gosto. Quase sempre esmigalho e não me sabem bem. Já sei que vou ter muito trabalho para fazer o bolo. Não me importo. O segundo bolo que fizer é para a Beatriz. O primeiro é para mim e para o meu pai, para nós provarmos e para eu ser classificado. A minha avó não pode comer doces e por isso não come, e o meu avô não gosta. Vai haver uma classificação, uma espécie de concurso, mas só eu é que concorro. O prémio é ir a um restaurante italiano comer uma pizza a sério e portanto já ganhei, e mesmo que não ganhasse só de participar já dava o prémio. Vou ter de escrever a receita e decorá-la, fazer o bolo com a receita dentro da cabeça. Quando estiver na cozinha com o meu pai vou ter de saber muito bem as coisas que vou usar e que vou meter no tabuleiro do forno. O meu pai é que mexe no lume e eu é que digo se quero baixo ou alto. A minha avó vai-me emprestar o avental, já disse. Vou ter de ser eu a fazer o bolo para os meus anos e só estou à espera que o meu pai me traga a receita para eu estudar. Vou comprar um caderno e escrever “receitas” na capa com uma cor fluorescente, em princípio verde alface, fica bem. Estou para ver a cara da Beatriz quando lhe disser que tenho um caderno de receitas e que de vez em quando sou pasteleiro. Se dissesses que eras pasteleiro à tua namorada o que é que achas que ela te dizia? Já te disse o que o meu pai acha de fazermos bolos, não disse? Pois... Hoje continua a chover e eu a escrever. A minha professora perguntou-me porque é que eu tinha cortado o cabelo. Gosto da minha professora, mas às vezes faz perguntas que são um bocado estúpidas (espero que ela nunca leia isto, ainda bem que a carta é só para ti). Cortei o cabelo porque sim. Se agora pussesse um capacete ficava parecido contigo. Não é bem à escovinha, mas é quase. Passam-me a mão por cima e dizem que parece uma alcatifa. A Inês está a gostar de ir para médica. Diz que quer ir um dia para a guerra tratar dos feridos. Eu se puder vou, mas é para um sítio onde possa acabar com as guerras. Não é bem ser presidente da república porque isso é complicado, mete eleições, partidos e ainda tenho de crescer muito. Um sítio onde haja outras pessoas como eu e para dizermos aos presidentes estúpidos para não se armarem em parvos porque assim também morrem mais depressa. Quando houver o dia mundial da criança vou fazer um discurso na minha escola e vou dizer isso. Não sei em que dia calha, mas é costume os adultos avisarem nos jornais, e na escola também é costume haver pinturas e coisas dessas com alguns adultos a fingir que são crianças. Às vezes fazem é figura de parvos e pronto, o dia acaba e tudo volta ao normal. Jimmy, eu se fosse a ti, tentava não morrer, mas tu escolheste morrer, não é? É por isso que não tenho pena de ti. É possível que tenha pena da tua namorada, ainda não sei. Tenho duas casas. Uma é a da minha avó e do meu avô, e a outra é a do meu pai. O meu pai às vezes pede-me para dormir em casa da minha avó e eu durmo. Acontece que às vezes, no dia seguinte, na minha casa do meu pai, a cozinha está toda desarrumada e eu percebo que houve qualquer coisa. O quarto dele também costuma estar confuso, com as roupas da cama todas para trás e baralhadas, e na sala há uma ou duas garrafas de vinho vazias e um cinzeiro com cigarros apagados. O meu pai não fuma, então é porque ele fez uma festa, ou parecido, com outras pessoas. Digo isto porque já aconteceu o meu pai fazer festas só para ele. Comigo também faz às vezes, e comigo e outras pessoas. As festas são diferentes porque as pessoas são diferentes e deve ser isso que faz com que o meu pai goste de fazer festas diferentes. Três vezes por semana a dona Lurdes vem limpar a minha casa do meu pai, mas ele já avisou que a partir do próximo mês só vem uma vez por semana. O meu pai diz que não é preciso que a dona Lurdes venha tantas vezes, mas eu acho que é por causa de ele não ter muito dinheiro. Ouvi a minha avó dizer que vinha ela, mas o meu pai disse-lhe que não senhora e ela não falou mais nisso. O meu quarto sou eu que limpo, aos Sábados. Sei ligar o aspirador e aspiro. Gosto de ver como fica depois de passar o aspirador. O meu pai quer falar comigo por causa dos Sábados. Não sei ainda o que é, mas talvez queira que eu passe o aspirador no quarto dele. Não me importo. Eu limpo o quarto e ele dá-me uma receita. Quando estás em tua casa também limpas o teu quarto, Jimmy? A Beatriz gosta que eu passe o aspirador no meu quarto. Diz que assim vai ser muito mais fácil quando nos casarmos. Fiquei a pensar. A Beatriz é a minha namorada, mas eu não sei ainda se vou casar com ela. Preciso primeiro de acabar a escola e fazer depois o curso de canalizador. Ao mesmo tempo acho que posso ser engenheiro porque também é preciso que haja pessoas que saibam inventar boas pontes que não caiam. A Beatriz gostava que eu fosse cantor para depois ir para a primeira fila dos espectáculos para gritar por mim. Não sei se não ia ter vergonha. Eu, claro. Quando lhe disse que podia ter vergonha ela disse logo que então o melhor era eu desistir de ser cantor. Mas eu disse-lhe que não queria ser cantor por isso não tinha nada que desistir. E ela gritou-me que se eu não fosse cantor não queria saber mais de mim. Fechou a porta do quarto e não quis saber mais de mim. Eu estava a beber café com leite e até me engasguei com a torrada que estava ensopada na garganta. A mãe dela chamou-a e a Beatriz não abriu a porta. A mãe disse-lhe que estava a ser mal educada e eu disse que tinha de me vir embora e vim. Não sei se estás a ver o problema, Jimmy. Como é que posso ser cantor se não gosto de cantar? E também não sei. Quer dizer, posso tentar saber quando começar a tocar pratos na banda, mas isso ainda não é certo. Não sei como vai ser comigo e com a Beatriz. Já dura há uma semana. Agora que estou a pensar nela não me apetece escrever mais. Desculpa, pode ser? Há três dias que não te escrevia, Jimmy, e é esquisito porque senti falta de te escrever. Ao mesmo tempo, estou sem apetite. Não sei bem se é por causa da Beatriz ou se é por saber que vais morrer. Tenho um caderno onde escrevo umas cartas pequenas para a Beatriz e um dia quando estivermos outra vez namorados dou-lho. Perguntei ao meu pai. Parece que ainda não há data marcada para o fim da tua guerra. Era bom que fosse já, não é, Jimmy? Mas antes que acabe ainda vais morrer. É muito estúpido. Vi uma reportagem que não vale a pena contar-te. Tu não deves ter visto porque tenho a certeza de que o teu presidente estúpido não te deixa ver as reportagens que nós vemos aqui, nem deves ter tempo porque estar sempre com a metralhadora na mão não te deve deixar fazer outras coisas. Uma pergunta que eu gostava de te fazer: quando estás aos tiros, se te dá vontade de ir à casa de banho como é que fazes? Não me digas que tens dessas casas de banho que agora há por aí e que temos que meter uma moeda. E se não tens moeda? Ah, não devem ser com moeda, a porta fica encostada e pronto. E se tens vontade, como é que fazes?, avisas e os tiros páram enquanto estás lá dentro? Não sei como é que fazes e pergunto. O Bruno é que diz que quando se está na guerra nunca se tem vontade. Tomam-se umas pastilhas e que não há vontade, que as pastilhas mudam tudo dentro de nós e que até os músculos ficam muito maiores por causa disso. Imagino que tenhas muitos músculos. O Bruno tem a mania de que sabe mais coisas da guerra do que eu, e até sabe, mas há umas que não sabe. Está sempre a falar do tio, das medalhas que o tio tem. Já lhe disse que o meu avô andou na mesma guerra do tio dele e que tem uma data de medalhas que ganhou no andebol. Por exemplo: perguntei-lhe quantas pessoas é que já tinham morrido na tua guerra e ele ficou a fazer contas de cabeça e não conseguiu dizer. Disse que era uma conta difícil e que não era uma pergunta sobre a guerra, que eu tinha de lhe fazer perguntas sobre os tanques, os aviões e os helicópteros, ou então sobre armas químicas. Explicou-me que há uma máscara que se põe quando rebentam as armas químicas e que podemos continuar a viver com as máscaras. Tens de me explicar uma coisa, Jimmy: como é que se pode continuar a viver com uma máscara se não podemos depois comer como deve ser? Há um buraco na máscara por onde passam os bifes e as batatas fritas? O Bruno diz que não há buraco nenhum, que eu sou estúpido, que pareço um puto, que temos de ficar com as máscaras senão morre-se. Então, não percebo. Se não podemos comer com as máscaras como é que continuamos a viver? Morremos? É tudo muito mal explicado. Outra coisa: estive a discutir futebol com o meu avô. Na minha família somos todos de equipas diferentes. O meu pai é da Académica, a minha avó é do Benfica e do Belenenses, o meu avô é do Sporting, e eu sou do Porto. O meu avô passa a vida a dizer que sofre com a equipa dele e eu não percebo como é que uma pessoa passa a vida a sofrer com uma equipa. Ele leva-me a ver os jogos e eu nunca salto quando há golo do Sporting, só quando os jogos são internacionais. Aí é como se saltasse por todos os outros jogos em que não salto. A minha avó também diz que sofre muito, mais com o Benfica, e que isso é tradição, é o que ela diz, e que prefere ouvir os relatos do que ver os jogos na televisão. Sofre menos se ouvir os relatos. Por mim é o contrário. O meu pai já me levou três vezes ao estádio do Dragão que é o estádio mais bonito a seguir ao do Braga. O do Benfica também é mais ou menos. Quando não há ninguém nas bancadas vê-se muita publicidade e eu não gosto. Se puder mando-te uma fotografia do estádio do Braga dentro do envelope quando te enviar a carta. E do Dragão. O meu pai já foi do Benfica, mas desistiu. Diz que a Académica é das poucas equipas que ainda jogam por desporto. Ele diz isso porque a Académica não é como o Porto porque se fosse de certeza que dizia que a Académica queria ser campeã e ir à liga dos campeões jogar com o Chelsea e os outros para trazer a taça para Portugal. O Bruno também é do Benfica e a Beatriz acha que somos todos uns parvos. Tenho pena que o Ronaldo não esteja a jogar no Porto, mas não há problema temos o Quaresma e os outros todos. Pelo menos por enquanto. O meu avô é que diz que um plantel é como a vida. Está sempre a mudar. Vocês aí jogam à bola nos intervalos da guerra? Sabes, quando vejo um problema complicado no mundo não me apetece escrever-te, como, por exemplo, quando há terramotos, tsunamis e assim e que faz morrer muita gente, pessoas que não estão à espera de morrer para já. Quando penso nisso só me apetece dizer à Inês que não escrevo mais e que vou jogar à bola, mas logo a seguir penso que tenho de te mandar a carta antes de que morras. O meu pai está-me a chamar. Tenho de ir dormir. Olá, Jimmy! Bom dia. Agora é muito rápido. É só para te dizer que o dia está o máximo e vou pescar com o tio do Bruno, mais o Bruno e o irmão dele. Levo minhocas embrulhadas num jornal dentro dum saco e espero apanhar um peixe qualquer senão o meu pai vai gozar comigo. Depois logo digo-te os peixes que apanhei. Até logo. Espero que consigas saltar se alguma bomba cair ao pé de ti. A minha avó fartou-se de dizer que eram pequenos demais, mas acabou por fritar os pexinhos que eu trouxe. Eu não fui capaz de comer, além disso comiam-se num instante, nem se percebia que eram peixes. O meu pai deu-me uma palmada nas costas e disse que estava bem. Não ficaram espinhas nenhumas nos pratos. Eu comi uma omeleta com salsa e cebola. Depois do almoço, o meu pai veio-me dizer que queria falar comigo. Era por causa dos Sábados. Pediu-me se eu era capaz de ficar em casa da minha avó aos fins de semana a partir de agora e até ele me dizer. Não percebi porque é que ele quer ficar com a casa toda para ele aos fins de semana e quando lhe perguntei ele respondeu que eu não tinha nada que perguntar. Já fiz a mala para o próximo fim de semana em casa da minha avó. Levo roupa, os chinelos, o pijama, a mochila da escola, “O meu primeiro livro de astronomia” que a Inês me deu, e, claro, este caderno, mais uma esferográfica, e um pacote de bolachas com amêndoa. A mãe da Beatriz telefonou à minha avó. Depois que falaram, a minha avó desligou e veio falar comigo. Perguntou-me porque é que eu não ia a casa da Beatriz. Respondi que a Beatriz tinha de me convidar. Pegou no telefone, marcou uns números, deu-mo e disse para eu falar. Do outro lado estava a Beatriz. Voltei-lhe a dizer que não queria ser cantor e ela convidou-me para ir a casa dela comer leite creme com açúcar queimado pela mãe dela. Que doces é que tu comes aí, Jimmy? Se for como o Bruno diz que é, os doces estão transformados em pastilhas, chupas uma pastilha e ficas com a boca a saber, por exemplo, a pudim flã, é isso? E podes repetir? Podes chupar dois pudins flã? Descontas depois no ordenado? E já agora, o teu caixão quem é que vai pagar? Espero bem que seja o teu presidente estúpido. Perguntei à minha professora se sabia quantas pessoas no mundo é que são a favor da guerra. Também não sabe dizer bem. Na tua terra da América parece que há muita gente que é a favor por causa de terem o presidente estúpido que têm. Perguntei se essas pessoas todas eram estúpidas e a professora disse que não. Não percebo. Se me conseguires explicar, agradeço. Faltam poucos dias para os meus anos e estou muito triste. Tenho um porco-mealheiro aqui ao meu lado. O meu pai veio falar comigo. Disse-me que nesta altura não tem muito dinheiro e que não podia comprar-me a bicicleta. Eu não disse nada e depois disse que não fazia mal, mas quando vim para o quarto estive a chorar um bocadinho. Estou-te a dizer isto, mas espero que ele não saiba. Depois de falar deu-me o porco para eu ir guardando as moedas e que daqui a uns tempos juntando as moedas do outro mealheiro talvez já seja possível comprar a bicicleta. O problema é que eu quero comprar para ele o candeeiro. O porco é giro e nem me apetece ter de o partir lá mais para a frente. Se tens uma coisa que gostas muito vais parti-la de propósito? Há um bocado um passarinho pousou ali na beira da janela. Às vezes ponho arroz e eles vêm comer. Vá lá que não são pombos. O tio do Bruno é que diz que os pombos são ratazanas voadoras. Vou buscar arroz. Hoje é Domingo, Jimmy. Estou em casa da minha avó, fui jogar à bola, esfolei os joelhos, estou a pôr água oxigenada e daqui a nada vou comer bacalhau com natas. Agora não tenho tempo para te escrever. Logo à noite escrevo-te, pode ser? Espero que ainda não tenhas morrido. Até logo. Olá, Jimmy. A Inês veio jantar connosco. Foi-se embora há oito minutos, mais ou menos. Pediu-me o caderno para depois passar no computador. Ela diz que isto já não é uma carta, que é mais um diário. Eu disse-lhe que não é diário nenhum. A Beatriz tem um diário e um diário tem os dias marcados e uma pessoa começa por escrever “Querido diário”. A Beatriz já me mostrou o diário dela num sítio em que diz que gosta muito de mim e escreve sempre querido diário todos os dias. Não sei se a Inês já está farta de passar a carta no computador. À mão ficam mais folhas e para enviar é mais fácil se forem menos e no computador ficam menos folhas. Da casa da minha avó não vejo a casa da Beatriz, mas fica perto na mesma. A minha avó tem um quintal com um limoeiro, uma cerejeira, uma nespereira e um pessegueiro. No Verão ajudo a meter os frutos nos cestos e a levar para casa. Este ano vou fazer um cesto especial para levar à Beatriz. Ela é muito gulosa por pêssegos. Antes de comer, pega neles e passa-os pela cara, boca, nariz, na barriga das pernas, lambe a pele devagarinho e só depois é que trinca, devagar. O sumo escorre um bocadinho nos lábios e ela gosta de sentir o sumo a deitar pelo pescoço. Quando a vejo fazer isso fico cheio de vontade de comer logo três pêssegos seguidos. Gostas de pêssegos, Jimmy? É complicado mandar para Bagdad, mas de certeza que aí também deve haver. Se não vires, procura, eles aí têm de certeza. Vou perguntar ao meu avô que percebe de haver frutos no mundo inteiro e depois digo-te. Gosto de escrever com as minhas esferográficas preferidas, esta está a acabar-se e só tenho mais uma na minha casa do meu pai e só amanhã é que vou para lá. Tenho ali uma fotografia da terra vista da lua, aproveito e vou olhar para ela. O meu avô trouxe-me depois de me ir buscar à escola. Não sei quem arrumou a minha casa do meu pai, mas ficou bem. O quarto dele está que parece o meu depois de eu andar com o aspirador. Quando ia a sair da cozinha vi o meu avô sair do meu quarto com um ar esquisito, assim como se tivesse partido qualquer coisa e quisesse disfarçar, e depois pôs-se a sorrir para mim e a fazer-me festas na cabeça. Espreitei para dentro do quarto e vi o porco-mealheiro em cima da cama em vez de estar na mesa ao lado da fotografia do Baía. Perguntei-lhe se tinha mexido no porco e ele respondeu que não. O sofá da sala tem um cheiro diferente, um perfume que fica nas costas e na cabeça quando nos levantamos. O meu avô também achou enquanto esperámos que o meu pai chegasse. Quando chegou vinha todo contente. Fartou-se de me dar beijos. Tinha um lenço ao pescoço que não era dele, de certeza que não era dele, mas não lhe perguntei de quem era. É azul assim do universo. Quando me deu beijos percebi que o perfume do lenço era igual ao do sofá. Depois de amanhã vou ter dez anos e amanhã à noite vou fazer um bolo cheio de nozes com a ajuda do meu pai. É pena não ter a bicicleta, mas quando o meu pai tiver um emprego melhor arranja-me uma de certeza. Pode ser de cross, não me importo. Já tinha dito ao Bruno que ia ter uma, mas não faz mal. Não sei se vou poder continuar a carta amanhã, nem depois. Tenho uma pergunta para te fazer, depois faço. Olá, Jimmy. Queres saber uma coisa? Então vou-te contar como aconteceu. No dia antes dos meus anos fiz um bolo que no dia dos meus anos toda a gente gostou menos eu, mas não é isso que te quero contar. No dia dos meus anos acordei muito cedo. Fui para escola e cantaram-me os parabéns. Estava vento. Antes de sair de casa o meu pai deu-me um beijo, umas calças novas e um chapéu de pala que eu queria. Combinou que à tarde vinha mais cedo do emprego para fazer a festa comigo e alguns dos meus amigos, a minha avó, o meu avô, a Inês, a Beatriz, a mãe da Beatriz, o Hugo, o Bruno, a Mafalda, o Tim, o Miguel, a Licas, o Luís e o Leonel, que são gémeos. Logo a seguir a terem cantado os parabéns, o meu avó disse que tinha uma coisa especial para mim. Quando fui a ver era um martelinho. Era giro, mas não achei nada de especial. Então, o meu avô perguntou se eu tinha coragem para partir o meu porco-mealheiro e foi buscá-lo. Ficaram todos a olhar para mim e eu tinha o martelinho na mão. Pôs o porco à minha frente e eu não sabia o que havia de fazer. O Bruno disse-me para partir. A Beatriz dizia que o porco era giro. O Hugo tinha os olhos fechados, a Inês estava a olhar para mim e a sorrir. O meu pai disse que eu é que tinha de decidir, ou partia ou não partia. De repente, olhei para o tecto, para o martelo, e parti o mealheiro. Tinha poucas moedas, muitos cacos e um papel. Peguei no papel e vi que tinha um número. O meu avô falou: isso deve ser um número de telefone, o mealheiro é teu tens de telefonar. Tenho de telefonar? Para quem?, perguntei. O meu pai deu-me o telefone e eu marquei o número. Sabes quem me atendeu, Jimmy? O senhor Martins, o dono da loja das bicicletas! Disse-me que tinha uma bicicleta à minha espera. Fui a correr e trouxe a bicicleta para casa. Tem pneus de cross e tudo, um autoclante no quadro que diz tx cross, as rodas são azuis. Fiquei muito, muito, muito, muito contente. O Bruno deu-me um grande abraço e disse que era burro se não partisse o porco. Tirei uma fotografia com a bicicleta, eu sentado e a Beatriz ao lado. Se puder faço uma fotocópia e mando-te. Ah, já me esquecia: o meu pai estava com uma amiga dele que se chama Catarina e é muito simpática. É um bocado parecida com a Beatriz, eu acho. Deu-me um globo terrestre que fica iluminado à noite se eu quiser, não é bem um candeeiro, mas quase. A Inês ofereceu-me três cadernos e duas esferográficas das que eu gosto para continuar a escrever. Deu-me também um grande beijinho e piscou-me o olho. A minha avó, para além da bicicleta com o meu avô, ainda me ofereceu um mealheiro que é um ouriço-cacheiro. Tive muita sorte. À noite ainda pensei escrever-te um bocadinho, mas estava tão contente que ia ficar triste, muito triste, só de pensar que tu vais morrer, e então decidi só voltar a escrever hoje. Vou-te fazer a tal pergunta que te queria fazer. Respondes se conseguires: como é que se chama o Deus do teu presidente estúpido? Não é preciso responderes logo, mas eu gostava de saber. É que ele está sempre a falar de Deus, aliás todos falam de Deus, e ando baralhado. Se Deus é só um e é inimigo de guerras, como é que pode ser só um para o teu presidente estúpido e ser ao mesmo tempo o mesmo para os outros presidentes e pessoas no mundo inteiro? Será que quando há guerras o Deus se divide em vários para poder estar em todas as partes que chamam por ele? A minha avó que vai à missa diz que é um grande pecado usar o nome de Deus em vão. Não perguntei à minha avó, mas perguntei à Inês o que quer dizer “em vão” e ela respondeu-me que se pode dizer doutra maneira e que quer dizer o mesmo, por exemplo, que é um grande pecado usar o nome de Deus à balda. O teu presidente estúpido, pelos vistos, usa o nome de Deus à balda. Lá na América ninguém repara nisso? Mentiroso e pecador é o que ele é. Outra pergunta: tu pensas em Deus antes de disparares a tua metralhadora para que as balas matem os que estão à tua frente e as balas deles não te matem a ti? Se a tua metralhadora é melhor do que a dos outros tens mais hipóteses de Deus ficar contigo, acho eu. E sabes o que ouvi dizer: que o teu presidente mandou fazer a guerra porque tinha os armazéns cheios de armas que tinha de deitar fora porque os amigos dele arranjaram uma data de armas novas e as outras só estavam a empatar. É verdade? Ele decidiu que o melhor era inventar uma guerra para atirar as armas contra um país que fosse pobre e não conseguisse ser melhor do que ele e ele pudesse ganhar facilmente e depois dizer que é um grande presidente. E também uma outra coisa que toda a gente fala, Jimmy. É o petróleo. De certeza que já viste poços de petróleo, eu é que não. Parece que debaixo da terra aí há petróleo que nunca mais acaba e então está-se a ver, se o teu presidente ficar dono da terra também fica dono do petróleo. Sei que o petróleo serve para aumentar a riqueza que há, quer dizer, se essa terra é pobre, mas tem petróleo, então podia ficar rica e o teu presidente não quer, só quer para ele e depois diz que é para ajudar os pobres, mas como é mentiroso ninguém acredita. E outra coisa mais, e esta foi o Bruno que me disse: a guerra também serviu para fazerem experiências com aviões e helicópteros, e também fazerem testes com óculos escuros de ver à noite. Os jornalistas aproveitaram e também experimentaram telefones novos e computadores portáteis, videos e coisas que nem sei. O irmão do Bruno falou-me numa coisa que se chama videofone. É por causa destas coisas todas, mas mais das mentiras, que tu vais morrer, Jimmy, e hoje a tua sorte é que estou parecido com a minha avó e sinto pena de ti. É o tempo do recreio da escola e estão-me a chamar para ir jogar à baliza e eu vou. A Inês já passou tudo no computador até à parte em que eu parto o porco-mealheiro. Perguntou-me: por que é que não escreves um poema para enviar ao Jimmy? Nunca tinha pensado nisso. É importante? Para escrever um poema vou inventar uma palavra para começar, é melhor. Assim: “Venticara é frio.” Quer dizer: “O vento que passa na cara é frio.” Não sei se isto é o princípio de um poema, não me interessa. Vou pensar. Fui ver o filme do Pinóquio do Walt Disney. Não sei se te lembras. O grilo falante é a consciência do Pinóquio para ele fazer as coisas certas. Por que é que vocês lá na América não arranjam um grilo falante para o vosso presidente, que se fosse o Pinóquio teria um nariz do tamanho duma auto-estrada? Lembrei-me muito de ti e do teu presidente mentiroso e mais até porque o Disney também era americano e falava de querer um mundo de fantasia. Mas como é possível um mundo de fantasia com tantas crianças a morrer de fome, milhões de crianças? A fantasia é só para poucos, não é Jimmy? A minha professora disse-nos que um menino como eu come tanto como cinquenta meninos com fome, e eu até nem como muito, agora pensa tu ou aqueles gordos dos hamburgueres. Se eu fosse presidente havias de ver. Mandava acabar com a fome, isso era logo, em vez de estar a gastar dinheiro com o terrorismo. Os terroristas, não sei se sabes, se souberem que um presidente, como eu podia ser, quer acabar com a fome, eles mudam ideias, não sabias? Não é preciso ser muito adulto para perceber isso. Os terroristas só existem porque é a fome que faz que existam para matarem os muito gordos, mesmo que alguns disfarcem muito bem e até pareçam magros. Um dia hei-de explicar isto melhor, mas para já é assim. Os muito gordos deviam ter mais atenção e comerem menos. Por que é que uma pessoa há-de comer dois bifes, ou um bife muito grande com batatas e arroz? Quase que enjoa e faz mal. Se todos comessem menos e distribuissem bem o que não comem por aqueles que precisam mesmo, o mundo ia ficar melhor. Já viste, Jimmy, como é que uma criança com a barriga vazia vai pensar em fantasia? Fartei-me de andar de bicicleta na praceta. Ando a treinar para depois ir nas férias com ela para a terra da minha avó. Aí é que vai ser andar nas lombas a sério dos caminhos por onde andam as cabras e as vacas. Estou cheio de vontade. Perguntei ao Bruno se ele sabia onde ficava o Iraque e ele disse logo que sim, só que depois não se lembrava quando lhe pedi para apontar no meu globo, com ele iluminado. Estivemos a ver bem e descobrimos. Vimos o Mediterrâneo, para a esquerda, que tem a África para baixo e a Europa para cima. O meu pai é que me disse que leu um livro que dizia que as pessoas que vivem no Mediterrâneo são todas vizinhas umas das outras e isso faz com que as pessoas que são diferentes sejam parecidas ao mesmo tempo. Nós aqui quando estamos na praia e olhamos em frente, e vê-se bem no meu globo, não temos vizinhos logo, logo. Há os Açores, claro, e a Madeira, mas não contam porque fazem parte da nossa terra. O Bruno acha que a Terra não é tão redonda como o meu globo que me deu a Catarina e eu como não sei não quis discutir, que era o que ele queria. Perguntou-me se eu sabia que na parte de baixo só há gelo e pinguins, e que um dia o gelo se vai soltar e cair no céu e eu respondi que sim. Perguntei-lhe se os pinguins também vão cair com o gelo e ele começou então a discutir, mas como eu não queria, fui buscar a mesa de matraquilhos e fizemos vários jogos, o primeiro e o último ganhou ele, mas o último fui mais eu a deixá-lo ganhar para ele não ficar chateado por eu não querer discutir. Tenho pensado muito em ti, mesmo quando não te estou a escrever. Tento imaginar a tua cabeça com o capacete e as antenas que estão presas à tua mochila. Não consigo ver bem a tua cara e se fecho os olhos para me concentrar quase não vejo nada ou então aparece a Beatriz que está sempre no meu pensamento. Tu também estás, claro, mas é diferente. A Inês disse que era giro, lá atrás, a barriga vazia rimar com fantasia, e falou-me também do Pinóquio que foi o segundo filme que ela viu na vida. O primeiro já não se lembra. De manhã quando fui para a escola vi um acidente, quer dizer, não vi, vi depois, os restos. Dois carros muito amachucados e os bombeiros a tirarem três pessoas do meio dos ferros. Uma delas era mais pequena do que eu, não vi bem, devia ser criança. Estava um senhor a dizer que deviam estar todos mortos. Nunca tinha visto mortos assim ao vivo. Estive o dia todo a pensar neles e amanhã se calhar vou continuar a pensar. Quanto mais se pensa melhor, acho eu. Parece que ficou uma fotografia na minha cabeça, uma fotografia a mexer-se. Vejo a criança a ser levada por uma bombeira e um bombeiro e uma doutora que lhe estava a pôr uma máscara. Estava sangue nos vidros partidos e no chão. No meio da confusão andava um cão que se pôs a cheirar e a lamber o sangue e a ladrar muito para a ambulância. Tinha um coleira e foi a correr sempre atrás da ambulância, mas depois não conseguiu e voltou para trás. É um daqueles cães cómicos que têm as orelhas quase até ao chão. É castanho e preto. Não sei porquê pôs-se a olhar para mim e veio atrás, até à escola e ficou à minha espera, sentado ao lado do portão. Todos me perguntaram se era o meu cão novo e respondi que sim. Perguntaram o nome e tive de inventar um à pressa. Chamava-se “Orelhudo”, mas que ia mudar de nome. Todos queriam mexer nas orelhas e ele olhava para cima como que a pedir não sei o quê. Quando saí da escola continuou atrás e quando cheguei a casa não sabia como é que ia ser. A minha avó acha que o Orelhudo pertence às pessoas do acidente, mas ele agora está ali a olhar para mim e é como se fosse o meu cão desde sempre. A coleira tem uma morada que deve ser a morada das pessoas. O meu pai também gosta muito do Orelhudo, faz-lhe muitas festas. A Beatriz gosta de enrolar as tranças nas orelhas dele e farta-se de rir. O Bruno perguntou-me se ele mete as orelhas no prato da comida quando está a comer. Disse-lhe que sim e que não, dependia, e ele disse logo que há cães que têm os rabos cortados. Vou com o meu pai comprar comida de pacote, pode ser que ele goste, e também um osso no talho só para ele não se esquecer de que é cão. Depois digo mais coisas, até logo. Desculpa, Jimmy, mas só agora é que posso continuar a carta. O Orelhudo está cá em casa e da minha avó há cinco dias. Está triste, é muito querido. Fica sentado muito tempo a olhar para mim, e quando eu não estou, a minha avó diz que fica encostado ao canteiro da salsa à espera que eu chegue. Comprámos comidas diferentes e mesmo assim ele não come. Às vezes bebe. Se calhar bebe para poder chorar. Estivemos todos a falar sobre o Orelhudo e a minha avó acha que o meu pai deve ir entregá-lo na morada que está na coleira. Vou ter muita pena se for assim. Dizem que um cão perdido pode morrer por falta do dono. Não sei. De qualquer maneira ele não está perdido. Pensei outra vez no acidente e se o dono era uma das pessoas não sei como é que vai ser com o Orelhudo. Ficou decidido que vamos levá-lo no Sábado, eu e o meu pai. E se o dono não está? Se não estiver, ficamos com o Orelhudo. Eu queria muito que o dono estivesse e ao mesmo tempo não estivesse porque sei que vou ter saudades. Cheguei à conclusão de que não sei pôr vírgulas e pontos e que há palavras difícieis que às vezes aparecem e que não sei se posso escrever. É a Inês que está sempre a corrigir e assim aprendo. Escrever é desenhar letras e fazer ideias com elas. A Inês escreve muito depressa no computador. Eu é muito devagar em cima aqui do papel. As letras estão desenhadas nas teclas e desde que se conheça cada uma é só combinar, é muito fácil, mas por enquanto gosto mais de desenhar as letras no papel com a minha esferográfica. O meu computador é um que era do meu pai e que ele já não usa, mas dá para alguns jogos e ver museus em cdrom que são difíceis de ver ao vivo, por exemplo, as artes egípcias do museu do Louvre, em Paris. Nunca fui a Paris e não sei se alguma vez irei, depende. Vou fazer uma experiência. Vou ligar um gravador que é do meu e pai e falar. Depois peço à Inês para escrever o que ficar gravado. É uma boa ideia e fico com mais tempo para brincar com o Orelhudo. Para a Inês é que pode ser mais complicado. Tem de ouvir com atenção e escrever o que eu falar. Fiz a experiência e não gostei de ouvir a minha voz. Além disso, o que eu te queria dizer não era bem o que quero dizer quando estou a escrever, parece que quando escrevo fico a pensar melhor as coisas que escrevo, por isso, desisti do gravador. Tens tatuagens, Jimmy? Se tens e um dia quiseres tirar como é que fazes? Ou ficam para sempre? O Bruno quer meter uma tatuagem no tornozelo. No Inverno não se vê por causa das meias, mas não se importa. Disse que no Inverno nem é preciso ter. Basta dizer que se tem, não se vê. Quando chegar o Verão diz que se apagou. Assim é fácil ter tatuagens. As tatuagens podem servir para mostrar que somos especiais? O Bruno diz que sim. Tu tens ou não? Tenho visto muitos soldados com tatuagens. O tio do Bruno tem uma que diz “amor de mãe” e “guiné”, mas não é às cores, é só azul. Nunca mais saiu, mas ele também nunca quis tirar. Quando está com os amigos, no Verão, gosta de mostrar o braço e contar histórias. Também deves ter muitas histórias para contar, não é Jimmy? O problema é que as pessoas já sabem mais ou menos quais são as tuas histórias. Metem sempre os outros a morrer ou a sofrer, menos tu, que tens truques para continuar a viver. O meu pai disse-me que o teu presidente estava a rir mesmo antes de dizer que a guerra ia começar, que estava a rir na televisão todo bem disposto antes de começar o programa. Tu não tens vergonha do teu presidente-pinóquio, Jimmy, a rir dos que vão morrer por causa dele? Se vocês todos se viessem embora do Iraque sem lhe dizer nada é que seria giro, mas depois ficam sem ordenado, não é? Também percebo, mas se uma pessoa imaginar bem encontra empregos que dão dinheiro sem ser preciso andar a matar pessoas. Pensa bem, Jimmy, antes de morrer, pensa bem. Não sei quanto tempo leva uma carta daqui para Bagdad. Espero que não leve muito. Se fosse uma encomenda mandava também uma tigela de marmelada que a minha avó faz, mas aí nos correios podem pensar que é uma bomba, abrem a caixa, descobrem a marmelada e em vez de ir para ti, comem-na e é bem feito. Se não houvesse guerra podias receber a encomenda à vontade que ninguém ia ver se tinha bomba. Mando só a carta num envelope e já vi que tem de ser mesmo dos grandes. Comprei dois, um maior do que o outro. Ainda não tenho a certeza de quantas folhas vão ser. Se a Inês escrever em letra pequena, podemos poupar, mas é difícil ler e então não serve de nada poupar nas folhas se não conseguires ler. Vamos fazer com letra normal. Tenho andado muito de bicicleta e ontem no jardim bati com a roda da frente contra as pernas de uma mulher que foi fazer queixa à minha avó. Pedi-lhe desculpa, mas mesmo assim ela foi fazer queixa. Não ficou nada aleijada, mas pôs-se aos gritos a dizer que eu era um assassino, que devia ser proibido andar de bicicleta no jardim. A perna ficou vermelha, mais nada. Nem arranhada nem nada. A minha avó mandou-me parar e sentei-me ao lado dela a ver os pombos. Detesto ficar sentado a olhar para os pombos. Quando a mulher se foi embora, disse-me para ter mais cuidado e para andar devagar. Gostava de entrar numa corrida de ciclismo. Gosto dos fatos e dos capacetes. Capacete já tenho. O meu pai não me deixa andar se não puser o capacete. Conheces o Armstrong? É muito fixe. É da tua terra. Vês, não há só pinóquios. O meu capacete é parecido com o dele. Jimmy, ainda há cinemas aí em Bagdad? Que filmes passam? Espero que haja filmes que não sejam só de guerra, mas se calhar são. Têm a guerra e ainda vêem filmes de guerra e ainda por cima feitos na América, é? A minha professora diz que sim. Acho mal haver filmes de guerra. O Bruno não. Ele acha que as guerras servem para que haja paz a seguir. Eu acho esquisito que as pazes sejam feitas depois das guerras e não antes, mas não me apetece discutir com ele porque se discuto vai haver uma espécie de guerra entre nós. Não percebo porque é que as pessoas são contra as guerras e depois vêem filmes de guerra. O Bruno diz que é porque os filmes de guerra têm acção. Tenho de fazer os trabalhos da escola. A Catarina, a amiga do meu pai, telefonou-me. Quis falar só comigo. O meu pai atendeu o telefone e ela só quis falar comigo. Era para me dizer se eu queria almoçar ou jantar com ela e o meu pai um dia destes num restaurante à minha escolha. Perguntei se ela queria falar primeiro com o meu pai, e ela respondeu que era comigo que queria combinar primeiro. É muito simpática, a Catarina. Há um restaurante que tem umas pizzas que eu adoro. Foi esse que disse, num dia qualquer que ela quisesse, e que podia ser almoço. Então, combinámos para Domingo. Depois desligou. O meu pai disse-me que a Catarina tem uma filha que é da mesma idade que eu e que talvez fosse almoçar connosco também. O meu problema foi: e se a Beatriz sabe que eu fui almoçar fora com uma rapariga nova? Não há problema, disse o meu pai, se for preciso eu falo com ela. Eu disse que não vai ser preciso. Não tenho nada que lhe dizer e não vou fazer mal nenhum. A miúda chama-se Leonor. É um nome bonito. Não sei se te interessa, mas vou dizer-te na mesma. Hoje fomos levar o Orelhudo à morada da coleira. Fomos no carro do meu pai porque a morada é ali para os lados do Castelo. Eu e o Orelhudo no banco de trás. Eu ia cheio de pena e o Orelhudo estava muito atento às ruas. Quando chegámos à rua, ele ficou a dar ao rabo e as orelhas abanavam muito com ele a mexer a cabeça dum lado para o outro. Tocámos à campainha e um senhor atendeu. Quando viu o Orelhudo nem quis acreditar, baixou-se e abraçou-o. Era o dono e vi que tinha umas lágrimas no olho direito. Expliquei o que aconteceu, com o cãozinho a vir comigo para a escola e depois para casa no dia daquela tristeza na rua. O senhor contou ao meu pai e eu ouvi que a sua mulher tinha morrido e que a filha estava a recuperar no hospital. O Orelhudo ia, como eu, no banco de trás do carro onde ia também a filha. Ele não ia. O outro carro é que teve culpa, o condutor ia bêbado, parece que vinha duma discoteca qualquer e não morreu. O Orelhudo chama-se Nicolau e o senhor disse que a sua filha ia ficar muito contente por vê-lo e que de certeza que ia ajudar muito para ela recuperar. O senhor, que se chama Vitorino e é advogado, agradeceu muito, muito, e deu o número de telemóvel ao meu pai para o caso de ele precisar de alguma coisa. O meu pai também lhe deu o número do telemóvel, disse que se chamava Mário, que era professor, e que seria boa ideia eu e ele irmos visitar a miúda. O senhor Vitorino deu as indicações para entrarmos no hospital, que ia avisar a Clara – é o nome da miúda – e agradeceu muito. O Nicolau Orelhudo estava muito contente e cheirava por todo o lado. Quando saímos e entrámos no carro eu disse ao meu pai: se eu vou ver agora a Clara então é que a Beatriz fica mesmo chateada. Não te preocupes, disse ele, vou só eu. Está bem... também vou, senão ainda vais dizer que sou cobardolas, disse eu depois. A minha professora tinha-nos dito que depois de visitarmos a quinta íamos ver uma bibioteca. E fomos. Gostei de saber como se guardam os livros e como se podem ler sempre que se queira, pedindo para ler de maneira certa. Fiquei sentado numa mesa a ver um livro com imagens antigas de cogumelos e de repente pensei ao pensar em ti: uma pessoa se está em guerra pode estar assim como eu, sossegado, a ver um livro de cogumelos? Numa guerra toda a gente deve andar muito depressa com medo de apanhar com um tiro e se a guerra acabar essas pessoas depois ficam habituadas a andar a correr e por isso é dífícil ler um livro de cogumelos como eu estou a ler mesmo depois duma guerra chegar ao fim. Estava eu a pensar isto quando o Bruno me deu uma cotovelada para eu ver um livro de submarinos que ele tinha à frente. Disse-me que nós em Portugal também vamos ter um grande submarino especial. Eu perguntei para quê?, e o Bruno disse que eu não percebia nada de marinha e que era preciso perceber para ver que um submarino é muito importante para um país como o nosso que está cheio de água à volta e que em qualquer altura podem querer invadir-nos. Perguntei: “Quem?”, e o Bruno disse logo que qualquer um pode querer invadir-nos e além disso se os outros países têm submarinos nós também temos de arranjar e se possível maior, e que dentro de água o submarino assusta os mergulhadores que queiram vir pôr bombas nos barcos que estão estacionados e que nem é preciso gastar dinheiro com ele a andar debaixo da água, basta ficar parado na doca que assim podem vê-lo e saber que nós temos um grande submarino, e não fazem nada. É para isso que serve o nosso submarino, para nos defender, disse o Bruno. Depois desta visita à biblioteca, a professora vai levar-nos a um barco à vela e ver salinas, que são montes pequenos de sal que ficam ao sol antes de serem metidos nos sacos e irem para as lojas. Não sei se há salinas em Bagdad, não perguntei. Sabes se há? O Bruno disse que vai ser uma seca andar num barco que não anda nada, mas seja como for quer ir. Estou chateado, não sei porquê estou chateado. O céu está azul, não tenho fome nem sede, fui lanchar com a Beatriz, fiz os trabalhos, tenho a bicicleta ao pé de mim, o meu pai é fixe, a Inês e os meus avós também, e estou chateado, não me apetece escrever. À noite já sei o que me vai acontecer: vou ficar com os olhos abertos a olhar para o tecto. Acendo o globo e faço-o girar. O meu pai vai dizer-me para a apagar a luz e adormecer. Páro o globo com um dedo e vejo em que país acertei. Abro o livro dos países e vejo onde é a capital e outros assuntos desse país, e imagino que estou lá. Se o dedo pára no mar, apago a luz e adormeço mais cedo. O último país em que parei foi a Austrália. Tem muitas coisas para se conhecer e apetecia-me que esta noite o meu dedo voltasse a parar na Austrália. Gostava de saber porque é que estou chateado, mas não posso dizer a ninguém senão vão achar que estou doente ou assim, só estou chateado. Vou-me sentar no sofá e esperar que chegue a noite para depois me deitar a olhar para o tecto. Que chatice. Adeus, Jimmy. Hoje não te escrevo mais. Bom dia, Jimmy! Estou a assobiar! Muito rapidamente, porque vou para a escola: sabes que país é que me saiu ontem à noite no globo? A Espanha. Por um bocadinho e era Portugal. Fiquei a saber um bocado de touradas e dum pintor que fazia quadros parecidos com uns desenhos que eu às vezes faço, mas, claro, não quero comparar. Chama-se Miró. Conheces? Ao deitar, o meu pai perguntou-me se eu estava chateado e eu disse que não, para ele não se preocupar. Chau, tenho de ir. Eh, pá, Jimmy, nem queiras saber! Há cinco dias que não te escrevia. E sabes porquê? Perdi o caderno! Mas agora tenho-o outra vez. Esqueci-me dele em cima da cama e a dona Lurdes guardou-o, encontrei-o no bolso do avental dela que estava pendurado atrás da porta da cozinha. Será que ela leu alguma coisa? Deve ter lido, e depois em vez de o pôr na cama esqueceu-se e meteu-o no avental. Daqui para a frente vou andar sempre com ele. A dormir, meto-o debaixo do travesseiro. Antes de acabar a carta não quero que ninguém leia, só a Inês. Sabes, Jimmy, como sei que vais morrer gostava de escrever palavras mais bonitas do que estas que tenho escrito até aqui, mais certas e difíceis. Se fosse daqui a mais tempo talvez escrevesse como deve ser, mas nessa altura já morreste e as palavras bonitas e difíceis não iam servir para nada. A Inês de vez em quando põe uma que ela acha que fica melhor. Ela agora não tem tido tempo para passar no computador as últimas folhas. Anda a estudar muito e arranjou um namorado. Decidi uma coisa: mando-te a carta no Natal. Parece que é uma altura boa para mandar cartas aos soldados. Até lá espero que esteja toda pronta, com mais ou menos tudo o que te quero dizer. Se te chateares, olha, paciência. A vida é muito diferente uns para os outros. Enquanto o Bruno foi com o tio a um almoço de antigos soldados da nossa antiga guerra, eu estive com a minha avó a aprender a fazer sopa de legumes. Vamo-nos encontrar daqui a pouco, ele vem a minha casa e de certeza que me vai falar de bombas e granadas. Não custa nada fazer sopa desde que se tenha tudo pronto em cima da mesa e descascado. Não é fácil descascar, esse é o meu maior problema, e também não sei ainda comprar. Imaginando que tens tudo em cima da mesa, vou-te dizer como é, Jimmy. Na guerra é bom saber fazer sopas. Se cais numa armadilha qualquer e não tens hipótese de comer bife e caiste ao pé duma horta? Arrancas as cenouras, os tomates, o que houver, limpas e fazes uma sopa. Com água, claro. Tens é de ter um bocadinho de azeite, pelo menos a sopa da minha avó leva um bocadinho de azeite. Se conseguires andar com uma garrafinha de azeite escondida na farda, é boa ideia, daquelas garrafinhas do vinho do Porto, sabes?, daquelas que oferecem aos turistas. Então, descascas os legumes, se estiverem descascados melhor, alguns feijões já inchados e deitas para dentro da panela com água e sal, não é preciso muito, e um fio de azeite como diz a minha avó. Quando tudo estiver cozido, esmagas. Não sei como fazes, mas tens de te desenrascar, podes esmagar com o garfo. Depois metes uma mão de feijões, já cozidos, cenoura, batata e nabo cortados aos quadradinhos, e folhas de couve, se arranjares lombarda é fixe. Para mim, a melhor lista de legumes para a sopa da minha avó, é esta: abóbora, courgette (foi a Inês que escreveu a palavra certa), cebola, alho francês, cenoura, tomate, batata e nabo. É a sopa oito legumes, mais a couve. Perguntei à Inês se ela sabe doutras pessoas que tenham escrito cartas assim a soldados em Bagdad. Disse que não sabia, mas que ia ver. Chegou o Bruno. Traz uma granada na mão. Vou fechar o caderno e logo venho. Disse que logo vinha, mas já passaram três dias depois que o Bruno veio com a granada. Atirou-a para cima da cama. Não explodiu. Estava cheia de areia. A minha avó não achou graça nenhuma quando viu o brinquedo e proibiu o Bruno de voltar a entrar em nossa casa com coisas de guerra. Pedi para ela não dizer nada ao meu pai e acho que não vai dizer. Às vezes nem sei porque te conto estas coisas, mas pensando bem acho que deve ser para que tu vejas que a vida aqui é diferente daí e que deve ser muito triste obrigar os outros a viver como nós queremos, que é o que o teu presidente- pinóquio quer que faças aí. A mim não me apetecia nada andar na rua e estar sempre a ver tanques e jeeps e as bombas a explodir sem aviso a qualquer hora. Ouvi a minha professora dizer ao meu pai que eu andava um bocado distraído. Também acho. Nos últimos tempos sempre que vou para a escola fico a ver com atenção tudo à minha volta e depois fico distraído com isso. Perguntei depois ao meu pai se olhar com muita atenção as coisas é ficar distraído e ele, que estava a ler o jornal, disse-me que é mais ou menos. O meu pai é uma pessoa especial. O teu pai também deve ser e não acredito que esteja contente por estares aí em Bagdad. As pessoas especiais inventam coisas e fazem o mundo andar para a frente, quer dizer não é bem o mundo a andar para a frente, somos nós em cima dele. Os outros que não são especiais também fazem o mundo andar para a frente, mas doutras maneiras. O mundo avança sempre e nós é conforme. Falei disto com a minha avó. A minha avó nunca inventou nada e eu sei que o mundo anda para a frente com ela. Se não fosse ela o meu pai não estava cá e depois eu também não estava, por isso, afinal, já inventou muito e se calhar muito mais do que muitos que julgam que são muito especiais. Além disso, inventa pratos e sopas, é boa nisso, é uma inventora. Hoje estava a correr no recreio e o vento batia-me na cara. Pus-me a pensar se tinha frio ou não. Cheguei à conclusão de que o frio é só quando pensamos nele. Uma pessoa sente frio, mas só sente mesmo quando pensa que sente frio. Fui escrever isto no meu caderno da escola para não me esquecer (agora estou a passar para aqui) e continuei a correr. Mas também é verdade que há sítios que são mesmo frios, por exemplo, o Pólo Norte. Jimmy, eu não sei como são os hospitais de Bagdad, mas os nossos aqui cheiram a esquisito. Fui com o meu pai ver a Clara, a miúda do desastre, a dona do Nicolau, o Orelhudo. Tinha as duas pernas enroladas em gesso e um braço também. O pai dela levou-nos até à cama onde ela está e consegue falar bem. Disse-lhe que por acaso tinha sido eu a guardar o Orelhudo e ela agradeceu. Não falámos muito mais. Eu não sabia o que havia de dizer e ela também não, e o cheiro do hospital estava-me a enjoar. Dei-lhe um beijo na testa e viemos embora, não foi uma grande visita. Ela agora tem de aguentar e depois volta para casa. Não sei se o pai já lhe contou que a mãe morreu, talvez não, não falámos disso. Quando saímos do hospital, cumprimentámos o pai da Clara e fiquei com a sensação de que nunca mais nos vamos ver. Não achas esquisito? Ela é gira, mas a Beatriz é mais. É a vida. Está a chegar o dia especial em que eu e o meu pai vamos almoçar com a Catarina e a Leonor. Até estou um bocadinho nervoso. Não vou mesmo dizer nada à Beatriz só para ela não ficar a inventar histórias. Digo depois. Também nem percebo porque é que estou nervoso. Vai ser já no próximo Domingo. Acho que esta noite até vou sonhar com as pizzas que fazem lá. Já fiz os trabalhos e agora vou jogar à bola. Até logo, Jimmy! E não te esqueças de fazer exercício, uma pessoa com calor nem lhe apetece muito, mas tem de ser. Estou rebentado! Fartei-me de jogar. O Luís e o Leonel, os tais meus amigos que são gémeos, decidiram que jogam os dois à defesa, mas eu não gosto deles à frente da baliza. Se o Luís manda a bola para fora, o Leonel a seguir faz o mesmo. Só atrapalham e depois quase nunca conseguem atirar a bola para a frente, atrasam e assim tenho de jogar com os pés e eu gosto é de fazer defesas, agarrar a bola com as mãos e atirá-la para a frente com um grande pontapé. Já pensámos que o melhor era eles passarem a ser árbitros, mas o Luís não gosta de apitar. E como não gosta de apitar, o Leonel também não. A minha equipa perdeu, mas vamos fazer a desforra. Agora vou lavar as mãos e a cara para ir jantar. Chau, Jimmy! Esqueci-me de te perguntar uma coisa e agora antes de me deitar lembrei-me: quantas pessoas é que tu já mataste, sabes? Quando disparas consegues ver a pessoa lá à frente, mesmo na linha do tiro? É claro que consegues, não? A tua metralhadora não tem um óculo para ver ao longe? O Bruno disse-me que tem, de certeza. E antes de disparares, como é? Ficas a olhar para a pessoa um bocado de tempo ou finges que não é uma pessoa e disparas como se disparasses para um boneco? Deves pensar que a pessoa é um boneco, quase que aposto. Faz impressão uma pessoa disparar contra outra e a pensar que ela é um boneco, ou outra coisa qualquer. E depois, vês a pessoa a cair e o que é que fazes? Olhas para o lado? O que é que pensas? Às vezes imagino-te a dizer asneiras enquanto disparas, como nos filmes. Quando penso nisto tudo fico sem vontade de comer, mas logo a seguir se a Beatriz me telefona para eu ir a casa dela, ganho outra vez a vontade. Vou dormir. Perguntei e aqui são menos três horas que aí e já deves estar a dormir. Não deve ser fácil dormir no meio duma guerra. Logo volto, okei? Bom dia, Jimmy. É hoje. Tomei duche primeiro que o meu pai. Disse-me que estou todo janota só porque meti gel no cabelo e vesti as minhas calças novas com os ténis de riscas e a camisa à Indiana Jones. Estou sentado na sala completamente pronto, com o meu casaco sem estar vestido porque não está frio, e o meu pai ainda está no duche. Não gosto nada de estar atrasado, mas é a Catarina que passa a buscar-nos, porque o carro do meu pai avariou, ou não tem gasolina, não percebi bem, e ela ainda não chegou. Estou cheio de vontade de ir ao restaurante que gosto mais, comer a pizza com a Catarina, a Leonor e o meu pai. De certezinha que o meu pai também vai pôr gel no cabelo, mas eu não posso dizer que ele está janota porque fica logo chateado. Olho para ele, faço um sorriso e não digo nada. É o meu truque e ele já sabe, e é como se dissesse, quer dizer, digo sem dizer. Está-me a perguntar que horas são e eu vou dizer que a Catarina ainda não chegou. Está a sair muito fumo de vapor da casa de banho. Depois digo mais coisas. Vou guardar o caderno. O almoço foi um espectáculo, Jimmy! Comi uma pizza inteira com alcaparras. Fui eu que escolhi o que queria. Já vesti o pijama e vou-te contar o que a Catarina me disse. Para já, digo-te que a Leonor é tão gira como a Beatriz e agora não sei como vou dizer à Beatriz. Amanhã logo penso. A Leonor vive com a Catarina como eu vivo com o meu pai. O pai da Leonor vive noutra casa e por isso a Leonor tem sorte, tem duas casas. No restaurante eu fiquei sentado à frente da Leonor e ao meu lado estava a Catarina. Foi bom. A mesa tinha duas velas acesas, mais ou menos ao meio. Gostei muito de falar com a Leonor. Disse-me que a casa da mãe é muito grande e que cabem lá muitas pessoas e que às vezes há festas com gente que gosta de estar a conversar muitas horas seguidas sobre muitas coisas. A Catarina é pintora e faz muitas ilustrações de livros para crianças. Fiquei a saber que há muitos quadros espalhados pela casa dela. A Leonor, já te disse, tem os mesmos anos que eu e ao fim de falarmos não sei quanto tempo parecíamos irmãos. Quando chegou a sobremesa, a Catarina disse que tinha uma coisa muito importante para nos dizer, a mim e à Leonor. Eu comi um doce especial com nozes e ela uma musse de chocolate muito fofa. No fim – ouve bem, ó Jimmy! – a Catarina disse que a seguir ao próximo Natal, eu e a Leonor vamos ter um irmão! Dei logo um salto na cadeira. Não sei se estás a ver o que isso quer dizer, o meu pai se calhar vai casar, ainda não sabemos, e eu vou passar a ter mais uma casa onde ir. Perguntei ao meu pai se podia dizer à minha avó, ele disse que sim e ela ficou também muito contente, mas pareceu-me que já tinha adivinhado porque não deu nenhum salto na cadeira quando lhe contei. Ficou a sorrir e a olhar para o meu avô, que também sorriu. Foi uma notícia muito boa, não achas, Jimmy? Tens irmãos? Deves ter. O problema é o que eles vão sentir quando souberem que vais morrer. Este ano a escola está quase a acabar e temos as férias. A Leonor disse-me que gostava de passar as férias comigo. Perguntei ao meu pai e à Catarina e eles disseram claro que sim. A Leonor costuma ir com a mãe para uma praia, sobem e descem uma serra a pé ou de bicicleta, e isso dá-lhes apetite para o jantar. Gostam de ver pássaros com binóculos e um livro com desenhos coloridos de pássaros para saberem que pássaros é que vêem, e também, tiram fotografias às plantas que encontram pelo caminho, e ainda gostam de comer saladas. O meu pai ri-se, ainda não percebi porquê, e a Catarina ri-se do riso dele. Isto vai ser complicado, Jimmy, não sei como vou ter tempo para te escrever, por isso não te chateies se eu estiver não sei quantos dias sem te falar. Ainda por cima a Inês continua muito ocupada com o namorado e não me pediu o caderno para passar a carta no computador. Mas vai-se arranjar tudo, tenho a certeza. Estou em pulgas para ver como vai ser com o meu irmão. Espero que seja parecido comigo. Vou comprar um presente para ele quando nascer. Acho que vai ser um gorro. Azul, um gorro azul. E agora tenho de ir, não te chateias, pois não? É a vida, não é? Pelo menos é o que a vizinha da minha avó diz quando acabam uma conversa. Umas vezes fazemos umas coisas, outras vezes outras. Só não gosto mesmo é da guerra, e quando pego na caneta para te escrever fico sempre um bocadinho triste, mas passa, tenho percebido que passa, mas isso é porque tenho a sorte de estar aqui e não ter guerra nenhuma, a não ser a guerra dos dirigentes dos clubes, mas isso não é guerra, é só uma estupidez. É como se não tivessem mais nada para fazer e inventassem coisas estúpidas só para fazer com que toda a gente fique mais estúpida. Uma terra com gente estúpida não tem graça nenhuma, e espero que isso nunca venha a acontecer aqui. Agora vou. Grande bronca, Jimmy! A Beatriz pediu-me para ir lá a casa e sabes o que é que ela fez? Nós tínhamos aquela carta que estava assinada pelos dois em que dizíamos que éramos namorados, lembras-te? Ela pôs-me a carta à minha frente e disse para eu a rasgar. Não percebi nada, quer dizer, eu percebi, só não percebi foi como é que ela soube que eu sou amigo da Leonor. Peguei na carta e rasguei-a. Ela começou a chorar e a dar-me encontrões e a dizer que não me queria ver mais porque eu já não podia ser amigo dela. Também não percebi, mas fiquei calado para não baralhar mais as coisas. Ela sentou-se na cama e ficou muito tempo a olhar para os pés e eu também fiquei a olhar para os pés dela. Depois, levantou-se, saiu e deixou-me sozinho no quarto a olhar para as paredes. Não gosto nada de ficar a olhar para as paredes. Estive aí uns vinte minutos à espera que acontecesse qualquer coisa, e como não aconteceu nada, saí do quarto. Ela estava na cozinha a comer flocos com leite e disse-me para comer também, mas não me apetecia nada e disse-lhe que não me apetecia nada e ela perguntou-me se não me apetecia estar com ela na cozinha. Eu respondi que isso apetecia-me, e ela disse-me que eu estava a mentir, que eu era um mentiroso, que não me apetecia nada estar com ela na cozinha, que muitas vezes eu dizia uma coisa e apetecia-me outra. Não percebi e fiquei calado a olhar para os flocos e quando ela acabou de comer e eu já não tinha flocos para olhar, pus-me a ver as tranças. Ela perguntou-me se eu ainda gostava das tranças dela e eu disse que sim, claro, e ela desfez as tranças. Depois disse para eu me ir embora porque já não me queria ver mais na vida. Também não percebi. Perguntei porquê e ela respondeu porque sim. Uma pessoa precisa de saber, não é, Jimmy? Então, perguntei outra vez, e foi aí que ela me atirou com o pacote dos flocos à cabeça. Ficaram todos espalhados no chão da cozinha e quando quis apanhá-los, ela começou a atirar-me com nozes. Houve uma que ela me atirou com mais força e eu com o braço desviei-a e foi bater numa jarra que estava em cima do frigorífico. A jarra caiu não sei como e partiu-se. Quando lhe pedi para parar, ela continuou a atirar outras coisas e a dizer que eu era um puto, que não percebia nada de namorar, e eu agarrei-a e apertei-lhe o braço. Tinha que fazer qualquer coisa, não é Jimmy? E foi nessa altura que a mãe entrou na cozinha. Ela pôs-se a gritar e a dizer que eu lhe tinha atirado com a jarra e as nozes e que a estava a magoar. Não percebi e não sei se a mãe dela acreditou. Vim-me embora para casa e agora estou chateado. Não sei se vou voltar a ver a Beatriz. Gosto muito dela, mas também gosto da Leonor. Pode-se, não se pode? Acho que o melhor é não assinar mais cartas a dizer que sou namorado, é melhor, não achas, Jimmy? Tu alguma vez assinaste uma carta com a tua namorada? Espero bem que não. Mas também podes ter assinado e estar tudo bem, não é? O problema é ires morrer, isso é que é chato. A tua namorada vai olhar para a carta que tem lá a assinatura e vai ter saudades tuas, vai chorar e depois tem de arranjar outro namorado, ou não arranja nenhum e fica a pensar em ti até ficar cansada e só lhe apetecer morrer como tu, mas assim a vida é triste e mais vale que não morras, mas o problema, já disse, é que vais mesmo morrer. A não ser que não morras, quer dizer, que saias daí às escondidas e apareças de surpresa à tua namorada. Ela ia gostar, tenho a certeza. O teu presidente-pinóquio quando soubesse é que ia ficar inchado de raiva, mas eu até gostava de o ver irritado. Já viste se todos os soldados saíssem de Bagdad para irem ter com as namoradas? Havia de ser giro. Não sei se fale ao meu pai da história da Beatriz. Ele é capaz de pensar que fui eu que lhe atirei com as nozes. Não vou falar. A escola vai acabar, é fixe, são as férias. Para o ano há mais. Vou ficar com mais tempo para te escrever, mas escrever o quê? Nunca mais vi a Beatriz. Não sei se continua a usar tranças. Eu gostava das tranças da Beatriz. A barriga da Catarina está a ficar cada vez maior. A Leonor já tirou mais de cem fotografias da barriga da mãe e também já filmou a Catarina a fazer ginástica em cima da relva do parque. Estamos todos contentes. Perguntei à minha avó e parece que a paz é isso. O meu avô decidiu que vai passar mais tempo na terra dele. Quer plantar árvores e plantas. Combinei com ele que vou plantar uma nogueira. Não sei quanto tempo demora a crescer para dar nozes, mas logo se vê. Faz-me confusão que as pessoas aí em Bagdad não possam plantar nogueiras assim calmamente como eu, ou se calhar podem, mas eu é que não sei. O que sei é que estás mal aí onde estás. Fartei-me de rir! O meu pai deixou-me ver umas fotografias em que aparece o teu presidente-pinóquio vestido com roupas antigas de mulher. É para gozar. Gosto duma em que ele está na praia a brincar com uma bola e com um biquini às bolinhas vermelhas. Também é preciso rir, é o meu avô que diz. Vou começar a pensar nas férias. Quando começo a pensar nas férias, deixo de pensar noutras coisas e só me apetece ir depressa. É muito possível que deixe de escrever a carta por causa das férias, mas não te preocupes porque logo escrevo, está bem? Daqui a nada vai ser Natal, quer dizer, daqui a alguns meses, e nessa altura mando pelo correio. Já comprei o envelope. Comprei dois para o caso de me enganar. São grandes. Dá para meter muitas folhas. A Inês telefonou-me a dizer que um dia destes vem buscar o caderno para passar no computador. Disse-lhe que não há pressa porque o Natal ainda não é já e também porque não me parece que vás morrer já-já, não é? Tens de aguentar até eu mandar. Por favor, sim? Está decidido: vou de férias com a Leonor para a casa dela, lá na praia e na serra. Vou levar a minha bicicleta. Estou a fazer a mala e só vim escrever este bocadinho para te dizer que se calhar até sou teu amigo, embora às vezes não pareça. O que eu queria mesmo era que te fosses embora de Bagdad. Pensa nisso, sim, Jimmy? Agora vou de férias. Meto o caderno no meu armário e quando voltar continuo. Se tiver coisas para te contar, conto, está bem? Chau. Olá Jimmy! Já cheguei de férias há uma semana. Fui à terra dos meus avós e à da Catarina. Se eu te disser que não me apetecia nada voltar para casa ficas logo a perceber que gostei muito de estar com a Leonor e por isso não me admira que o meu pai goste tanto da Catarina. Andei a apanhar borboletas com uma rede, e fartei-me de comer coisas do mar, lapas, ameijoas, caranguejos, búzios, burriés. Sabes o que são burriés? São caracóis do mar. Também não sabia. Falta pouco para começar a escola. Comprei cadernos novos, mas este ainda é o antigo. Hoje vi a Beatriz toda contente com um amigo do Bruno que eu não conheço. Ainda bem que não tinha tranças, porque se tivesse eu ia querer falar com ela. Assim, só a vi passar. Ia a rir com ele. Acho que ela me viu, mas se viu fez de conta que não viu. Eu também fiz o mesmo, quer dizer, eu não fiz de conta, mas ela não tinha tranças e portanto se fosse falar com ela não sabia o que lhe havia de dizer. Se tivesse as tranças dizia-lhe que eram bonitas e pronto podíamos começar a falar. Mas ainda bem que não tinha as tranças. Se tivesse, começávamos a falar e depois não sabia o que lhe havia de dizer a seguir. Foi melhor assim. O amigo do Bruno é mais alto do que eu e ia com uma prancha de surf. Se calhar nem sabe surfar, mas é para fazer de conta que sabe. Não me importa. A barriga da Catarina está um espectáculo. Dá vontade de dar beijinhos o tempo todo. Vai ser um rapaz. O meu pai queria uma menina, mas diz que é igual. Se queria uma menina não percebo como é que pode ser igual. De certeza que é para a Catarina não se chatear. Um irmão para mim é fixe, e a Leonor diz que é fixe também. Já comprei o gorro azul e está guardado no meu armário. Só ofereço quando ele nascer. Vai ser uma surpresa. O embrulho tem uma fita azul também. Fui eu que escolhi. Hoje passei no parque que tem um lago com patos e gansos. Atirei uma pedra à água. Antes pensei: se deslizar e bater mais que uma vez em cima dela é porque não vais morrer, Jimmy. Mal bateu, afundou-se logo, nem deslizou. Fiz outra vez, a pensar melhor, e atirei mais uma pedra. Bateu uma vez, escorregou e afundou-se. E se fizesse só mais uma vez? E fiz. Também não deu. Vês?, acho que não tens mesmo hipótese, e fico chateado. O Natal agora vai chegar depressa, já sei como é. Entro na escola e de repente vai ser Natal, mas como a escola este ano vai ser diferente, estou convencido de que o Natal não vai chegar logo. Todos os dias penso no meu novo irmão. Sabes como se vai chamar? Tomé. Parece que foi a Catarina que escolheu e o meu pai não disse que não. Ele preferia Afonso. O que a Catarina disse foi que vai ser muito difícil alguém chamar tomezinho ao Tomé enquanto ele for pequeno e que isso é muito bom, chamam-lhe logo o nome certo e pronto, é assim de pequeno até ser grande. Se fosse Afonso de certeza que ia ser Afonsinho muito tempo. Todos gostamos de Tomé. Não convinha nada que o Tomé nascesse no vinte e cinco de Dezembro, mas nunca se sabe. O médico diz que vai ser no dia vinte e seis, ou então no dia vinte e três. Acho que lhe dá mais jeito lá na clínica. Ouvi o meu pai falar disso. Ele está sempre a gozar e a dizer que eu e a Leonor podemos fazer de vaquinha e de burrinho nas palhinhas do presépio lá da clínica. A minha avó diz que ele anda muito nervoso e então diz essas coisas, mas eu acho que não, eu acho que ele gosta é de brincar. Ele diz isso porque eu já fiz de anjinho numa festa da paróquia da minha avó. Tinha uma espada na mão e tinha que empurrar o Adão e a Eva para fora do Paraíso. Só que naquele dia o Adão estava mal disposto e quando o empurrei com a espada, ele virou-se contra mim, agarrou-se à espada e puxou-me. Eu estava em cima duns degraus, desequilibrei-me e caí em cima da Eva, e a espada partiu-se. Agarraram no Adão e levaram-no para fora. Voltei para o meu lugar com metade da espada e passado um bocado apareceu outro Adão, mais pequeno do que eu, e ao perceber que eu tinha de o mandar embora do Paraíso, não quis sair logo e tive que lhe dizer que era assim na história que estávamos a contar, que eu o empurrava com a espada e ele saía. Mas ele não quis sair e então teve de vir o senhor Padre e levá-lo para fora. A peça depois continuou e eu fiquei sempre em cima dos degraus com a espada partida na mão, levantada, até me doer e não poder mais. Então baixei o braço e pedi um copo de sumo. Como o anjo que eu estava a fazer não podia falar, o meu pai põs-se a rir e eu não achei graça nenhuma, e como só estava a Eva ali ao pé e de certeza que ela sozinha não ia entrar outra vez no Paraíso, saí dos degraus onde estava e fui-me embora. Mas antes disse-lhe para ela não sair porque na história ela já não podia entrar mais no Paraíso. E ela disse: “Ai, é?, então vou contigo!”. E saímos. Quem estava a fazer de Eva era a Beatriz. E tinha as tranças. Por isso é que o meu pai goza comigo quando diz que eu posso fazer de burrinho no presépio, mas eu não me importo. Gosto de ver o meu pai contente, a brincar comigo. Sabes, estive a ler a carta toda para trás até aqui. Houve umas coisas que eu achei que não ficavam bem e vou pedir à Inês para apagar. Vou-lhe pedir para corrigir a sério as coisas que ela achar que não estão bem. Um dia quando escrever como deve ser, vou ler isto tudo que escrevi para ti e vou achar que o melhor era não ter escrito nada, mas não tenho a certeza, por isso, escrevo até ao fim. Boa noite, Jimmy. Ando a pensar tanto no nascimento do Tomé, que até me esqueço que tenho de te mandar a carta. O Bruno, não sei porquê, agora gosta é de ralis e fórmula um. Trocou alguns tanques por carrinhos amarelos e vermelhos Ferrari e passa o tempo a querer que eu vá andar na pista eléctrica que tem no quarto. Às vezes vou e deixo-o ganhar que é para ele não armar discussão. Como não gosto muito de correr com automóveis, não me faz impressão nenhuma estar sempre a perder, e o Bruno fica todo feliz. A escola este ano é diferente. Cada dia que passa aprendemos mais coisas e acho que posso dizer que gosto. Se não gostasse também dizia. Olha lá, Jimmy, se a guerra acabasse agora, o que é que fazias? Já pensaste o que é que fazes se a guerra acabar? Não sabes. Vais morrer antes da guerra chegar ao fim. Quantas vezes já te disse isto? Estou-te a avisar e tu não ligas nenhuma, e juro que não volto a falar de ires morrer. Andam a pendurar luzes nas árvores. Eu não dizia que o Natal aparece num instante? A Catarina já disse que vai passar o Natal na maternidade, e se ela diz é porque vai ser mesmo, mas também o médico já tinha dito, e se for assim o meu pai não vai poder comer o bacalhau cozido da consoada porque prometeu à Catarina que não comia e que ficava com ela. Ele está mais nervoso do que ela e eu também estou a ficar um bocadinho. Fazem-se apostas para o dia em que o Tomé vai nascer. Agora vou dormir, estou com sono. Boa tarde, Jimmy. O meu pai anda a dizer que vamos vender a nossa casa para podermos ficar todos na casa da Catarina que é maior. Eu pensava que ia ter duas casas, mas afinal vai ser só uma. Não faz mal. Fico mais perto da Leonor. Este Natal vamos ter o melhor presente que se pode ter, disse a minha avó. Também acho. A Catarina já foi para a maternidade. Em cima da cama do quarto da Catarina, o meu pai deixou uma flor de papel que fui eu e a Leonor que fizemos. É da cor do leite creme com açúcar queimado. Também deixei o embrulho com o gorro azul e a Leonor não me disse o que é que tinha dentro a caixa que pôs em cima da almofada. Os meus avós convidaram os pais da Catarina para passarem o dia de Natal connosco e o meu pai vai dormir ao pé da Catarina. Vamos ficar todos à espera que o meu pai telefone. Vou ajudar a minha avó a fazer doces para a noite de Natal. Quando disser à Leonor que fui eu que fiz a aletria e os bolinhos de coco, nem vai acreditar. Logo vamos todos, menos o meu pai e a Catarina, ouvir um concerto de música numa igreja. O meu avô diz que é música barroca, nem sei bem o que quer dizer, mas depois de ouvir talvez perceba. Tenho a certeza de que vou gostar. A minha avó quer levar uma manta para pôr em cima dos joelhos porque diz que a igreja à noite é fria, é velha e de pedra, e o meu avó já lhe disse que não é preciso levar a manta, que pode levar duas camisolas grossas, uma vestida e a outra para deixar em cima das pernas. Não sei qual é a música que vamos ouvir, mas tem um coro e orquestra. Vou aproveitar para ver as paredes e as cores da igreja à noite. A Leonor também vai e vou ficar ao lado dela. A minha avó comprou cacau para depois bebermos quando chegarmos a casa. Gosto imenso, imenso, de cacau quente, tu não gostas, Jimmy? Gostava de te dizer que música é que vamos ouvir na igreja, mas não me lembro do nome. Depois digo-te, depois de ouvir. Agora, estou aflito, tenho de ir à casa de banho, já venho. Engraçado, Jimmy, agora reparo que quando páro de escrever a carta para ir fazer qualquer coisa ou porque me vou deitar, ou vou para a escola, ou outra coisa qualquer, é como se eu pudesse fazer com que tu não morras já. Não sei se percebes. Eu escrevo-te, não é?, e tu vais morrer, e enquanto te escrevo tu não morres. Então, logo que páro de te escrever parece que ainda é mais difícil que morras porque ficas à espera que eu chegue para continuar, e assim é que não morres de certeza. Mas eu tinha dito que não falava mais de morreres, desculpa, ainda por cima é Natal e no Natal o melhor é falar doutras coisas, por exemplo, a prancha de surf que o meu disse que me dava. É o presente. Depois vou aprender, e as lições também fazem parte do presente. A Leonor já disse que depois fica a ver-me, sentada na praia. Espero ser bom e que ela depois me diga que gostou de me ver em cima das ondas. Estás a ver as coisas que se podem fazer quando não se está em guerra? Já pensaste bem, Jimmy? Eu acho que já pensaste bem, por isso é que não percebo como é que consegues ainda estar em Bagdad. Tenho de ir jantar à pressa por causa de ir à igreja ouvir a música. Estão-me a chamar. Chau! Sabes o que é que estou a fazer? A escrever em cima do programa do concerto. A igreja é mesmo fixe, e está cheia de gente. A Leonor está ao meu lado e tem um cachecol azul. O cabelo dela é castanho, assim às manchas e apetece-me tocar-lhe. Estava a pensar isto e a Leonor olhou para mim e sorriu, sem dizer nada. Queres saber a música que vou ouvir? É “Música Sacra”, do músico Carlos Seixas. Diz aqui que é do século dezoito. Até logo, vai começar. Ainda tenho cacau na chávena. Estivemos a falar na sala antes de a Leonor ir embora com os avós dela. Todos gostámos da música do Carlos Seixas. Sempre que houver mais, acho que vou. Também estou com sono agora, no meu quarto, depois de beber o cacau quase todo. Amanhã é vinte e quatro, e depois é vinte e cinco. Aposto que o Tomé vai nascer no dia vinte e seis. Nem sei se vou conseguir dormir. Boa noite, Jimmy. Dia de Natal. Ontem à noite o meu pai passou em casa quase a correr só para me dar a prancha de surf e à Leonor um grande puzzle e uma viola. Depois, saiu e foi para a maternidade. Ainda comeu uma fatia de aletria, um sonho e uma rabanada. A minha avó nem foi à missa do galo. A Leonor vai aprender a tocar viola. Houve mais presentes, mas o que interessa é saberes que o Tomé está mesmo quase a chegar. Estamos à espera que toque o telefone, e espero bem que o telemóvel do meu pai tenha bateria. Ele esquece-se sempre de a carregar. Quando ele telefonar, vamos todos para a maternidade, está combinado. Tocou o telefone e ficámos todos nervosos, mas não foi nada. Era a mãe da Beatriz a desejar festas felizes. Depois, o telefone tocou outra vez. Era a Inês a querer saber novidades e disse-me que amanhã, se eu quiser, que pode passar a carta no computador até ao fim e que se não for amanhã depois vai ser difícil porque tem muitos trabalhos para fazer. Disse-lhe que sim e agora vou ter que acabar a carta, ou então só acabo amanhã quando o Tomé nascer. Ainda dá tempo. Ficámos acordados até tarde, e o telefone não tocou mais. Já estou na cama e espero que o Tomé nasça amanhã. Como é que está aí o tempo, Jimmy? Há um bocado, aqui, estava neblina. Não tenho sono, só penso na Catarina e no Tomé. Enquanto não tenho sono, acho que vou escrever a tua direcção no envelope. No outro dia, passei nos correios e fui perguntar se os selos para Bagdad eram caros. A senhora olhou para mim como se eu fosse um étê e perguntou-me porque queria eu saber isso, e eu respondi que só queria saber se os selos eram caros para Bagdad e que se ela não sabia eu ia a outros correios perguntar. Ela disse-me que não são caros, depende. Quando lhe disse que ia mandar um envelope cheio de folhas, ela não me soube dizer se os selos são caros ou não. Tem de se pôr o envelope com as folhas dentro em cima duma balança e pesar. Vou gostar de saber quanto pesa a carta que te vou mandar. O meu pai telefonou: o Tomé nasceu! Foi às oito! Vamos todos para lá. Levo o caderno para dar à Inês. Olha, Jimmy, se por acaso não morreres e passares um dia por aqui, tens a minha morada no envelope.

Um grande abraço, e é a vida.

Carlos.

   
   
   
 
   
   
   
   
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