VI ENCONTRO DE TEATRO IBÉRICO / RETRATOS DE ARTISTAS / Entrevista a Nelson Boggio, dramaturgo, encenador e actor da peça exibida neste VI Encontro, "As questões inerentes", interpretada também por Mafalda Santos e Ana Freitas.
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08-12-2008

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Nelson-Boggio

Entrevista a Nelson Boggio

Maria Estela Guedes - Umas palavras sobre o cenário de "As questões inerentes"...

Nelson Boggio - Quanto a esse tópico, dispensei o cenário como forma por um lado prática, e por outro lado por questões estéticas. Penso que nesta fase o prático e o estético vão acompanhar-me. Nesta fase de poucos meios está claro. E de facto o essencial para mim é o jogo dos actores. A mecânica de um texto e a forma como os actores se encaixam nela é para mim essencial. 

Meg - Notei que parte da roupa de cena é a roupa da actriz. 

Nelson Boggio - Isto deve-se a uma espécie de projecção do que está para vir. Isso cria uma espécie de ansiedade e curiosidade no público que me agrada. A roupa já lá está mas ninguém sabe para que vai servir. Isso é uma forma de ligar as cenas também. 

Meg - A cena vive da boa representação, de um discurso muito pessoal assente em jogos e desconstruções da linguagem. 

Nelson Boggio - Obrigado por este tópico. Preocupou-me tudo aquilo que poderia distrair o público. Por isso trabalhei insistentemente as inflexões, os desenhos das frases, para que parecesse o mais natural possível. O natural é que é realmente complicado pois num texto desta natureza a nossa primeira vontade é brincar sem limites. Se o natural ou o orgânico aparecer, as desconstruções que já existem no texto aparecem com mais vigor. 

Meg - És simultaneamente dramaturgo e actor. Sentes necessidade de agarrar todas as componentes da peça? 

Nelson Boggio - Mais uma vez por questões práticas fui actor do meu texto. Mas é um prazer sentir que posso dar voz com alguma simplicidade aos meus próprios textos. Sinto necessidade, sim, de representar. Isso seja que texto for. 

Meg - Há, nalguns quadros, uma espécie de agricultura das letras. Que autores sentes mais enraízados em ti? 

Nelson Boggio - Todos aqueles que me fazem sentir, que me fazem pulsar, que me põem os cabelos em pé. A minha primeira paixão foi o Miguel Torga, aos 14 anos. Depois penso que de certa forma todos aqueles que eu fui referindo na peça me estão enraizados.  

Meg - Fala do texto da peça, das situações que põe em cena... E das duas actrizes, que estiveram tão bem a acompanhar-te, a Ana Freitas e a Mafalda Santos...

Nelson Boggio - O texto em si é muito simples e orgânico. As situações também. A condensação de informação numa situação banal é que faz a riqueza do texto e arranca-o daquilo que poderia ser um teatro simplista ou banal, corriqueiro, enquadrado, o que é precisamente aquilo que não pretendo. 

Meg - Elas agarram bem o anti-texto...

Nelson Boggio - Não sei se é um anti texto, e não me parece inconcluso, já que essa foi a minha preocupação: ter uma linha à volta da qual a história progrida e se feche. Agora que tem várias camadas incluídas numa mesma linha que vai progredindo, sim. As actrizes não tiveram dificuldade, isso é que é curioso, pois bastou lhes entender que tudo aquilo era um jogo. Desembaraçaram-se, não seria o mais adequado, pois isso significaria livrarem-se de qualquer coisa que é penoso e difícil, quando na verdade houve prazer e aceitação. Penso que é isso. Acho que o texto já em si está desembaraçado. Por isso é que resulta. As actrizes tiveram sim que emprestar aos subtextos a subtileza dos ritmos, das variações. 

Meg - Elas têm de representar jogos de linguagem, e isso não é fácil...

Nelson Boggio - O jogo surge ao nível das respirações, pois sem esse lado atlético de ter que estar sempre atento para se entrar a tempo, o jogo perde a vitalidade. As actrizes entraram muito bem na mecãnica deste universo absurdo e contundente. Os diálogos absurdos são ao mesmo tempo os mais filosóficos pois condensam muitas contradições sobre a existência. Muitas vezes temos textos onde percebemos tudo e não retiramos nada, não pulsamos. Mas também temos textos que têm muitas variações e são obscuros, não teatrais. Este texto não cai nessa obscuridade porque assenta em códigos de teatro dentro do teatro e tem situações onde as pessoas se sentem confortáveis. A diferença é que eu incluí uma loucura que de repente é uma espécie de abanão no espectador. Tudo até ali é próximo, a cena passa-se no doutor. Mas de repente algém se lembra de uma notícia sobre o Afeganistão. E isso transporta-nos para outro espaço mental que depois é fechado e justificado com o facto de tudo aquilo ser um simples jogo entre três personagens.

Meg - E além dos jogos de palavras, toda a peça é como um jogo, o que vai contra a ordem da própria representação, que é um fingir a realidade...

Nelson Boggio - Toda a situação é um jogo. Mas não funciona assim com todas as cenas. E podemos ter um texto simples mas não teatral, como podemos ter um texto complicado mas que se descomplica no simples acto de se levar à cena. Um texto cria os seus proprios códigos desde que a parte humana esteja sempre alerta, sempre presente. E humano é o homem do campo, o médico. E humano é também o tom dos discursos. Um discurso em que o actor vive a situação e não onde apenas narra o que aconteceu. Penso que é isso que aproxima as pessoas do teatro e as leva a reflectir. Um discurso que se passa naquele momento com uma acção que parte do momento e não uma acção que parte apenas de lembranças e recordações. Não é só o comer-se em cena, ou o beber-se, mas sim, onde é que esse beber leva o personagem. E isso deve mostrar-se através do corpo. As marcas da embriaguez devem tornar-se visíveis no corpo e muitas das vezes só porque se diz, já partimos do princípio que se está bêbedo. Não devemos partir do princípio que se está bêbedo. Temos de acreditar através da acção até ao ponto de sentirmos que estamos nós a ficar bêbedos e contagiramo-nos com o corpo do actor. Ainda há muito para dar. As pessoas estão muito carentes. Eu como espectador quero emocionar-me, quero reflectir, e muitas vezes acontece ver uma peça que me dá isso.        

 

18h00 - “Das questões Inerentes, pelo Teatro Intenso

Local: Sala Estúdio do Teatro Garcia de Resende

Aquilo que vemos nem sempre está à vista, quer dizer, nem sempre é óbvio. Muitas vezes somos enganados sem dar por isso, e isso deve-se à falta de ironia que temos perante a vida. Porque a ironia permite uma distância que aproxima a inteligência à realidade

Encenação: Nelson Boggio

Interpretação: Mafalda Santos, Nelson Boggio e Ana Freitas