NELSON BOGGIO

Fábrica do Vidro

ÍNDICE GERAL

Terceiro acto      

Cena IV

(A prisão. De um lado o Espanhol e Fredi. Do outro o senhor Ualt sentado. Ambiente obscuro por causa da luz que mal atravessa as grades da sala de visitas).

Ualt: Este encontro mostra bem como nada é fruto do acaso e que a vida tal como a julgamos conhecer, não progride sem um sentido de ironia.  

Espanhol: Foi o senhor?  

Ualt: Que há já algum tempo se encontrava na posse da razão, pronto para uma viagem sem regresso e que agora se vê a cair num poço sem fundo?  

Espanhol: Foi o senhor que mandou matar aquele rapaz?  

Ualt: Há provas dizem eles. A culpa é um ciclo. Sou tão inocente como o carrasco.  

Espanhol: Matou-o?  

Ualt: Perguntas. Pisá-los com polés. Nem um que escape. O cão! A cheirar-me o rabo a ver se pegava. Mas eu meti-o na ordem.  

Espanhol: Estou a ver.  

Ualt: Levei-o a tal sítio onde nada mais o faça cometer o mesmo engano.  

Espanhol: Porquê?  

Ualt: Perguntas, nada mais que perguntas. Tenho a resposta no espírito. Indivíduos há que a têm na língua, pronta a soltar-se. A minha vida começou na construção de pontes. Abraçava-as de noite ao luar com uma satisfação tremenda. Nada do que fizera até então me poderia fazer prever o que me estava destinado. Viver um dia como um condenado. Uns há que dizem: basta trair-se uma vez para não mais regressar. Eu digo: regresse-se como for. Mas regresse-se. Só assim se pode voltar a trair. Têm provas dizem eles. Uma gravação que o Eduardo deve ter feito quando eu planeei o assalto do ano passado.  

Fredi: Não foi o senhor.  

Ualt: Fui eu. Deus é minha testemunha. E o estúpido insensível nem sequer me impediu. Está-me no sangue, sabia-o ele. A tendência para a fraude e para o roubo em mim são instantâneos e ele sabia-o ao ponto de lhe chegarem as lágrimas aos olhos tal era a felicidade. Tornou-se uma espécie de sombra que subestimei dada a imbecilidade irritante com que me abordava. Reuniu provas, mas quando se está demasiado confiante, há um entrave que não é senão a impressão de uma ligeira angústia...que começa por se espalhar como um cancro...e nos consome...Há um momento em que as vítimas se apercebem da sua morte: é quando ela constitui para o agressor a sua única hipótese. Olhamos para os seus olhos e não lhes dizemos: vais morrer! Pelo contrário, damos sempre a entender que somos nós as vítimas. É o que resta de consolação às mentes criminosas: a mentira que se vive como verdade. Daí a simular um suicídio é apenas o tempo de um sopro. Mas depois é a tal ironia: uma criança aparece no único sítio onde qualquer outra da sua idade jamais se atreveria a aparecer. Por razões inexplicáveis. E na sua visão de criança vê que se comete uma maldade. Não foge como os outros fariam. Tem inveja do forçado que é arrastado para cortar a própria garganta e quer tomar o lugar dele. Começa a escavar até encontrar o corpo já sepultado e dá de caras com um medalhão. Tira o medalhão e exibe-o como uma riqueza. Em casa recebe-se uma carta de suicídio, mas perante esta prova, nada a fazer. Eu vi, grita com a sua voz de infante. É o melhor aluno da sua escola. Tem uma memória perfeita. Consegue descrever, embora com alguma hesitação, os homens. Os especialistas desenham os rostos dos criminosos.  

Espanhol: E as tais provas? Como fugir-lhes?  

Ualt: Destruindo-as. Matando-o a ele. Mas havia mais alguém. Com cópias. Fac-simile. A porcaria de um fac-simile.  

Fredi: Sinto muito por se terem conhecido assim...nestas circunstâncias. 

Espanhol: Queria saber...e é tudo. ( Saem o senhor Fredi e o Espanhol). 

Ualt: Levem-me para a cidade. Não quero apodrecer aqui. ( Escuro).  

                                                                                           

                                                                                                                      Fim

Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova, no distrito de Castelo Branco. Aos 16 anos ingressa na escola profissional ACE no Porto onde teve as sua primeiras experiências teatrais com  o encenador Rogério de Carvalho, com os actores e professores João Paulo Costa e António Capelo, entre outros. Enquanto aluno da escola participou como figurante na peça de teatro O Coriolano, de Shakespeare, dirigida por Jorge Silva Melo. Entrou em peças encenadas pela escola. Desde Gil Vicente com direcção de António Capelo, a peças como Os sete pecados mortais dos pequenos burgueses, de Brecht com Kuniaki Ida com o qual desenvolve também a máscara neutra. Tem também ateliers à volta do Clown com Alan Richardson.  Aos dezanove anos entra para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde volta a reencontrar o professor e encenador Rogério de Carvalho, e onde começa pela primeira vez a trabalhar em cena os textos clássicos gregos. Tem também como professores o encenador José Peixoto, o Professor Luca Aprea em corpo, o professor Francisco Salgado, Álvaro Correia, João Mota, Carlos J. Pessoa, com o qual trabalhou três peças de teatro na sua companhia O teatro da garagem.  Participou na peça Os Anjos de Teolinda Gersão a convite do professor e encenador João Brites, em Palmela. Participou como actor na peça “Les Bonnes/ As Criadas” de Jean Genet com encenação de Paulo Alexandre Lage, em Julho de 2005 na Casa Conveniente em Lisboa.