NELSON BOGGIO

Fábrica do Vidro

ÍNDICE GERAL

Segundo acto                          

Cena III

(Casa do senhor Ualt. Este está de costas. Coloca objectos pessoais numa mala. Entra Eduardo).  

Eduardo: ( Parado olhando-o fixamente. O outro continua). Sabe, eu também não simpatizo muito com a maioria das pessoas. ( Avança) Acho-as tacanhas, cheias de instintos baixos, demasiado crentes e em suma sem uma linha de horizonte definida. Mas até mesmo esta gente tem um património, um legado cultural. Não esperava vir a encontrar alguém tão esperto quanto eu pois não? Aqui nestas bandas? Só resineiros e curtidores de peles bem como lenhadores e sopradores de vidro.  

Senhor Ualt: ( Continuando de costas, parando agora de arrumar as coisas na maleta). Não me faça rir. Vamos ser concisos meu rapaz! O que é que quer de mim?  

Eduardo: ( Vendo que o outro não está surpreendido). Estava à minha espera.  

Senhor Ualt: Ligeiramente surpreendido com o facto de ter entrado com uma facilidade dessas. Acho que terei de rever a confiança que tenho no meu pessoal não concorda? Alto. Pare aí mesmo. Nem mais um passo.  

Eduardo: Eu só quero dizer que ainda está a tempo. Venho fazer-lhe uma proposta. 

Ualt: Se estiver calado, ocupado com os achaques da sua mãe, ainda a proposta pode ir para a frente, mas não sei se quero perder os benefícios a troco de uma simpatia que me sairá demasiado cara.  

Eduardo: O senhor só tem que me dar aquilo que eu peço e nada mais.  

Ualt: O que quer de mim rapaz?  

Eduardo: Um milhão. ( Mostrando um maço de folhas que tira de uma pasta) E estas provas...desaparecem.  

Ualt: Não sei a que se refere.  

Eduardo: O senhor só tem que me dar aquilo que eu peço e depois pode partir. Sem problemas.  

Ualt: Está a criar um ninho de serpentes sobre o qual poderá um dia mais tarde vir a tropeçar. E depois, tal como um acontecimento esquecido que por instantes nos fez hesitar entre o agora e o depois, virá mais tarde prestar contas sobre tudo isto.   

Eduardo: Já disse. Agora pode estar descansado.  

Ualt: Ás vezes estou a olhar para si e recordo a minha não menos séria presunção quanto a certos factos da vida. Não se demore mais. Somos iguais no fundo. Também eu vomitei o pior de mim para não perder oportunidades. Está a ouvir rapaz?  

Eduardo: Se me der aquilo que eu quero...talvez esteja a ouvir... 

Ualt: Não seja teimoso... 

Eduardo: Não contava pois não? Não estava à espera. E o senhor via-me todos os dias tal como um alferes pensa na possibilidade de estar na presença de um subalterno. Enigmático isso...e no entanto não posso deixar de dizer que me não surpreende o que de monstruoso é revelado...o que sai de si como poeira. As solas dos sapatos...se dissertasse sobre a porcaria que acumulam, teria matéria de sobra para oferecer à humanidade. Então? O que vai ser? O cordeiro bale como o urso. Não se deve desviar os olhos do rebanho. Vamos...então? O que vai ser?  

Ualt: Vamos ver se eu o percebi. Aquilo que me pede não é nada mais do que um milhão, com a condição de não revelar as provas. Quer então que eu lhe adiante desde já essa quantia?  

Eduardo: Nem mais. Sabe...eu nunca esperei que isto viesse a acontecer assim. Ver-me na posse de todas essas provas.  

Ualt: Eu nunca me enganei muito...uma surpresa nunca vem mal acompanhada...vi gerar-se um verme que não andava muito longe de procriar um dia.  

Eduardo: É tudo uma questão de dúvidas e certezas.  

Ualt: Mas antes de nascermos estávamos mortos, certo?  

Eduardo: Possivelmente, sim. Mas quem nos garante?  

Ualt: O que é que se decidiu? O que é que terá motivado os fenómenos? Não há que temer a morte, é o que eu acho. Nem eu sei a que se deve este discurso. Nem eu sei. Mas sou levado a ele como o condenado à forca. Veja bem estas mãos. Já viram muito. Corrupção, fraude, enfim...todas essas coisas que até as crianças aprendem...nas escolas...no colo das mães. E ainda me pergunto se serei capaz de matar um homem. Penso nisso sim...em casos extremos...do pensar ao fazer vai um passo...mas ainda assim...se não se tem outra hipótese...Eu tenho hipótese...posso pagar-lhe...mas ainda bem que me chama à razão...ainda bem. Acho que o subestimei. Quando o via a correr atrás de mim nunca pensei...mas podia ter dito...para eu parar...chamar-me à razão...não o fez mais cedo...e a honestidade tem um preço... 

Eduardo: Vai pagar.  

Ualt: Sou um homem de palavra. ( Dirigindo-se para o lado oposto). A morte...todos morremos.  

Eduardo: Pois é.

Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova, no distrito de Castelo Branco. Aos 16 anos ingressa na escola profissional ACE no Porto onde teve as sua primeiras experiências teatrais com  o encenador Rogério de Carvalho, com os actores e professores João Paulo Costa e António Capelo, entre outros. Enquanto aluno da escola participou como figurante na peça de teatro O Coriolano, de Shakespeare, dirigida por Jorge Silva Melo. Entrou em peças encenadas pela escola. Desde Gil Vicente com direcção de António Capelo, a peças como Os sete pecados mortais dos pequenos burgueses, de Brecht com Kuniaki Ida com o qual desenvolve também a máscara neutra. Tem também ateliers à volta do Clown com Alan Richardson.  Aos dezanove anos entra para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde volta a reencontrar o professor e encenador Rogério de Carvalho, e onde começa pela primeira vez a trabalhar em cena os textos clássicos gregos. Tem também como professores o encenador José Peixoto, o Professor Luca Aprea em corpo, o professor Francisco Salgado, Álvaro Correia, João Mota, Carlos J. Pessoa, com o qual trabalhou três peças de teatro na sua companhia O teatro da garagem.  Participou na peça Os Anjos de Teolinda Gersão a convite do professor e encenador João Brites, em Palmela. Participou como actor na peça “Les Bonnes/ As Criadas” de Jean Genet com encenação de Paulo Alexandre Lage, em Julho de 2005 na Casa Conveniente em Lisboa.