POÉTICA SURREALISTA: ARTE E/OU VIDA? - CLAUDIO WILLER

Examinar esse assunto é tratar de um aparente paradoxo. Conforme se sabe, o Surrealismo jamais aceitou ser classificado como “escola”, um “ismo” a exemplo de cubismo, futurismo, etc, ou seja, mais um movimento artístico de vanguarda. Quis ir além, projetando-se na vida e na sociedade, para transformá-la. Recusou discussões puramente formais, do campo da estética. Contudo, em qualquer avaliação da sua importância, o melhor argumento sempre será a produtividade, o colossal acervo de obras literárias, visuais, e de outros campos, que nos legou.

Para abordar o tema, utilizo, com adaptações e enxertos, partes de um ensaio sobre Baudelaire que deverá integrar um livro futuro sobre poesia surrealista. Procuro vê-lo a partir de um olhar surrealista, assim como examino o Surrealismo a partir de Baudelaire, colocando-os frente a frente, de modo que cada um contribua à melhor compreensão do outro. Faço um movimento à deriva, da contribuição especificamente literária de Baudelaire, como poeta das analogias e correspondências, até o ser humano, o sujeito criador. Procuro mostrar como, para Breton (e para mim, diga-se de passagem), ambos, autor e obra, se constituem em unidade. Por isso, começo falando dele como expoente do satanismo romântico, da atração ambivalente pelo mal, dando-lhe, contudo, nova dimensão. Buscou, mais que falar sobre o mal, o demônio, a Queda luciferiana e humana, torná-los presentes através da linguagem, das imagens e metáforas da sua poesia. Daí haver empreendido a subversão dos parâmetros do gosto, do permitido em literatura, provocando o conseqüente escândalo.

Tão importante quanto o satanismo, ou mais, é sua contribuição como poeta das analogias e correspondências. Um poema bem representativo, é A Bela Nau. Nele, identifica a mulher que admira a um navio e em seguida a um armário: Teu colo que arfa sob o traje fluido e vário,/ Teu colo vitorioso é como um belo armário,/ Cujos claros gomos convexos/ Como os broquéis capturam rútilos reflexos;// Provocantes broquéis de agudas pontas rosas!/ Armários cheios de iguarias tão preciosas/ Vinhos, perfumes e licores/ que o coração e a mente inundam de torpores (esta e as citações seguintes são de Baudelaire, Poesia e Prosa, Editora Nova Aguilar, organizada por Ivo Barroso, tradução de As Flores do Mal por Ivan Junqueira).

Conforme observou Breton em Le merveilleux contre le mystère (publicado na coletânea La clé des champs, Le Livre de Poche), A Bela Nau nega o princípio da identidade, de que algo, sendo o que é, não pode ser outro, nessa viagem pelo mundo dos símbolos. O poeta e seu leitor vão dos seios da mulher à nau, ao armário e seus estofos, daí aos broquéis, vinhos, perfumes, licores... E não só nesse poema. Entre tantos outros, em O Perfume o cheiro do incenso ou do almíscar é um sutil e estranho encanto que transfigura/ em nosso agora a imagem do passado: por isso remete ao corpo, a outros cheiros, a cabeleiras, alcovas, vestes da amada. Passagens como essas fizeram de Baudelaire o poeta das cenestesias, das sensações vivas, cheiros que são cores que são sons que são lembranças e emoções.

Logo no início de As Flores do Mal, no famoso soneto das Correspondências, há, não apenas uma poética, mas uma interpretação do mundo expressamente declarada. As cenestesias chegam ao ponto de haver um aroma doce como um oboé, verde como uma campina, confundindo, na mesma seqüência, cheiro, sabor, som e cor. É importante observar que tais correspondências e analogias não eram, para Baudelaire, associações subjetivas que habitam apenas o pensamento e a sensibilidade exacerbada do poeta. Ele as via como propriedades da Natureza, o templo, bosque de segredos, floresta de símbolos, de enigmas decifrados através da revelação. Sem dúvida, adotava o pensamento mágico. Correspondências compunham a organização oculta da realidade, com o valor de princípios regendo o Universo, chaves para seu entendimento. Conforme observei em outras ocasiões (inclusive em O cosmos invertido: algumas anotações sobre poesia, ocultismo e gnose, publicado em Agulha 12), daí vem sua parceria com Elifas Levi, mago e teórico ocultista, autor de obras como Dogma e Ritual de Alta Magia, lidas até hoje e de grande repercussão em seu tempo. Levi erigiu um sistema baseado no pensamento analógico, partindo de princípios gerais expostos no decálogo atribuído a Hermes Trimegisto, e chegando a procedimentos e fórmulas de acesso a fenômenos ocultos.

Tais idéias foram reiteradas por Baudelaire em sua prosa. Em um dos trechos de O Spleen de Paris, Pequenos Poemas em Prosa, intitulado O Convite à Viagem, dirige-se à amada, perguntando-lhe: Não ficarias, lá, emoldurada em tua analogia, e não poderias espelhar-te, para falar a linguagem dos místicos, em tua própria correspondência? (grifo do próprio Baudelaire) E segue: Esses tesouros, esses móveis, esses luxos, essa ordem, esses perfumes, essas flores miraculosas, tudo isso és tu. És tu, ainda, aqueles grandes rios e aqueles canais sossegados. Os enormes navios que eles carregam, atulhados de riquezas, e donde sobem os monótonos cantos de manobra, são os meus pensamentos que dormem ou que rolam sobre o teu seio (de Baudelaire, Poesia e Prosa, tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira).

Nessa passagem, recorre à antropomorfização, confundindo amada e mundo. É um modo poético que viria reaparecer, de forma radical, extrema, na lírica surrealista, em poemas como Union Libre de Breton, que termina assim: Minha mulher com sexo de alga e de bombons antigos/ Minha mulher com sexo de espelhos/ Minha mulher com olhos cheios de lágrimas/ Com olhos de panóplia violeta e de agulha imantada/ Minha mulher com olhos de savana/ Minha mulher com olhos de água para beber na prisão/ Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado/ Com olhos de nível de água de nível de ar de terra e de fogo. O sexo dessa mulher não é parecido com alga, não é como se fosse alga: ele é alga; uma coisa é a outra. Ela é o mundo. O mesmo vale, entre inumeráveis exemplos, para passagens de Je sublime de Benjamin Péret, com seu paroxismo da analogia, ou no Paul Éluard de Capitale de la douleur, e em tantos outros autores e obras assimiláveis a esse movimento.

A especulação sobre o universo não impediu a Baudelaire de observar, com lucidez penetrante, o que se passava ao seu redor. Por isso, foi ao mesmo tempo o poeta dos mistérios, dos abismos, do sublime, e das cidades, ou, mais propriamente, da sua cidade, da metrópole em que Paris ia se convertendo. Em Quadros Parisienses, das Flores do Mal, é a Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde/ O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante! Nela, Flui o mistério em cada esquina, em cada fronde,/ Cada estreito canal do colosso possante. Em O Spleen de Paris, multiplica-se a captação de aspectos da vida urbana, sob forma de crônicas. E, desde sua estréia como crítico de arte (em Salão de 1846, da edição já citada, tradução de Cleone Augusto Rodrigues), já vinha argumentando em favor da beleza moderna, uma beleza nova e particular, presente na cidade: A vida parisiense é fecunda em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e sacia como a atmosfera; mas não o vemos.

Walter Benjamin mostrou que Baudelaire assim inaugurava uma nova relação entre o poeta e a metrópole, simbolizada pelo flâneur, o caminhante desgarrado. É preciso dar especial atenção ao conceito baudelairiano de maravilhoso, adotado pelo Surrealismo, conforme fica claro no texto de Breton, Le merveilleux contre le mystère. E, de modo mais enfático, insistindo na relação entre poesia e vida, em seu prefácio de 1962 para o importante livro de Pierre Mabille, Le miroir du merveilleux, contrapondo-o ao realismo fantástico ou realismo mágico então (e ainda) em voga: O maravilhoso, ninguém conseguiu defini-lo melhor (que Mabille) por oposição ao fantástico que tende, infelizmente, cada vez mais a suplantá-lo junto a nossos contemporâneos. É que o fantástico, quase sempre, pertence à ordem da ficção sem conseqüência, enquanto o maravilhoso brilha na ponta extrema do movimento vital e envolve em si, inteiramente, toda a afetividade. Não se trata, em Breton e em Baudelaire, de um modo exclusivamente literário. Menos ainda, do maravilhoso transcendente, de outro mundo, mas do imanente, concreto, que está aí e faz parte da vida vivida, desde que se saiba vivê-la.

A deambulação do flâneur, o caminhar ao acaso em estado de disponibilidade, seria transformada em valor, componente fundamental da atitude surrealista, signo da disposição de recomeçar a vida a cada dia. Conforme dizia Breton no início dos anos 20 em La confession dédaigneuse, texto de abertura da sua primeira coletânea de artigos e ensaios, Les pas perdus: A rua, que eu acreditava capaz de entregar a minha vida seus surpreendentes desvios, a rua, com suas inquietações e seus olhares, era meu verdadeiro elemento: lá eu recebia, como em nenhum outro lugar, o vento do eventual.

A mesma atitude, baudelairiana na origem, marcaria algumas das obras máximas do Surrealismo, escritas sob o signo da deambulação e da conseqüente abertura ao acaso, ao imprevisível, à irrupção do maravilhoso. Entre outras, Nadja, Os Vasos Comunicantes e O Amor Louco de Breton; O Camponês de Paris, de Aragon, e especialmente, pelo modo como a cidade é transfigurada em cenário de sonho, La liberté ou lamour! de Robert Desnos.

Passamos assim do aspecto mais evidente da obra de Baudelaire, os poemas de As Flores do Mal que o projetariam através do escândalo e da censura, ao pensador, às idéias subjacentes a essa poesia, expressas em sua enorme produção como crítico. Suas dilacerantes contradições e dramas íntimos, alternando orações a Deus e ao diabo, transformando sua vida em uma prodigiosa confusão entre amor sublime e degradação, dissipação e trabalho intelectual, tudo isso agravado pela doença que o corroía, a sífilis que acabaria por levá-lo à morte em 1867, aos 46 anos, não o impediram de, à sua maneira, ser consistente. Principalmente, pela posição central que ocupa em seu pensamento o elogio à imaginação, para ele a rainha das faculdades, e mais, rainha do verdadeiro, por ser aparentada com o infinito, pois, diz-nos, o possível é uma das esferas do verdadeiro (em Salão de 1859, de onde são extraídas as citações que se seguem). Assim como Novalis havia conferido o valor de verdade ao poético, Baudelaire atribuiu valor à imaginação, entendendo que compreendia e ultrapassava o real imediato.

Nessa e em outras passagens, toma partido, posiciona-se na grande polêmica que marcou a segunda metade do século XIX e perdura até hoje, cujas raízes podem estar na Antigüidade, em Platão e Aristóteles, e da qual um dos capítulos foi o colossal enfrentamento entre simbolistas e decadentistas, de um lado, e realistas ou naturalistas, de outro. Estava e continua em jogo a questão crucial da relação entre arte e realidade: se a arte é uma mimese, reprodução do real, como se diz que pretendia Aristóteles, ou se é uma realidade autônoma, produto da imaginação ativa.

Baudelaire está no centro desse confronto pelo modo como se declarou, radicalmente, em favor do artificial, produto da imaginação, e contra o natural: a natureza é feita, e prefiro os monstros de minha fantasia à trivialidade concreta. Rejeitou qualquer valor associado à cópia do real ou natural: Acho inútil e fastidioso representar aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz.

Esse é, também, o ponto de partida do Surrealismo: a rejeição da submissão da arte, declarada nas páginas iniciais do Primeiro Manifesto, em uma veemente crítica ao realismo, ao naturalismo, à literatura psicológica, enfim, à visão cientificista e mecanicista do mundo: a atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção (Manifestos do Surrealismo, Editora Brasiliense, 1985). Por isso, o Primeiro Manifesto começa pelo elogio à imaginação, identificada à maior liberdade de espírito. Caberia até mesmo o crédito ou referência a Baudelaire em trechos como este: Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar (como se fosse possível enganar-se mais ainda).

Fazem parte do mesmo extenso capítulo, das críticas ao realismo, idéias como as de Antonin Artaud, desdobramentos da posição surrealista, ao contrapor, em O Teatro e seu duplo, ao teatro ocidental, psicológico, que busca expressar sentimentos e paixões, um teatro oriental, metafísico, no qual a palavra adquiriria a materialidade como gesto projetado no plano universal. Contudo, surrealistas e afins não devem ser tomados por idealistas platônicos, a acreditar em um mundo de idéias puras, do qual a realidade seria o pálido reflexo. Mesmo a argumentação de Baudelaire, em que pese seu neoplatonismo, já é, de certo modo, dialética: o exercício da imaginação ativa nega a realidade imediata, mas pode projetar-se nela, transformando-a. Por isso, declarou-se sobrenaturalista, proclamando que dos gregos e dos romanos pode-se fazer românticos, quando se é romântico. Assim, o passado e a História poderiam ser refeitos pela imaginação ativa do sujeito.

Baudelaire, como ninguém, foi personagem de si mesmo. Daí interessar ao tema aqui proposto. Encarnou o que escreveu. Não ofereceu apenas uma obra escrita, mas uma biografia fascinante. Contribuiu para o exame das complexas e por vezes dramáticas relações entre poesia e vida, símbolo e realidade, o mundo da linguagem e aquele das coisas.

O modo como procurava fazer de vida e arte um todo pode ser melhor percebido comparando-se dois trechos. Um deles, dos poemas em prosa, é O Mau Vidraceiro, repleto de elogios a uma esplêndida coragem para executar os atos mais absurdos e, não raro, até os mais arriscados. Essa coragem é ilustrada pela história do inofensivo sonhador que ateou fogo a uma floresta; de outro que acendeu um charuto perto de um barril de pólvora; e do tímido que saltará de relance ao pescoço de um velho que caminha a seu lado. Culmina com o relato, na primeira pessoa, de como obrigou um vidraceiro a subir as escadas até seu sexto andar e, por ele não ter vidros róseos, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros paradisíacos, o empurrou escada abaixo; e, assim que o vidraceiro reapareceu na calçada, jogou-lhe um vaso de flores, estilhaçando seu estoque de vidros e vidraças, aos gritos de: O lado belo da vida! O lado belo da vida!

O segundo trecho é um episódio da sua vida, tal como narrado (por Ivo Barroso) na abertura de Charles Baudelaire - Poesia e Prosa: a fracassada viagem à Bélgica em 1863. Buscava recursos e editores que seriam, respectivamente, ganhos e atraídos através de conferências: o êxito da primeira conferência, devido em parte à constatação pelo público de que o conferencista não era o monstro de feira que todos esperavam, a soltar impropérios e a contrair esgares, faz com que a audiência da segunda, dedicada a Théophile Gautier, conte com um grande número de normalistas e jovens aristocratas do interior que vinham aprimorar seus estudos em pensionatos educacionais de Bruxelas. As professoras viram certamente na apresentação do poeta francês uma oportunidade para que suas pupilas pudessem ouvir o francês parisiense despido das asperezas dos sotaques locais. A estrela má de Baudelaire, que o levava a estranhas ações de que mais tarde se arrependeria amargamente, parece no entanto que brilhava em cheio nessa noite. Ele começou por agradecer ao auditório pela boa recepção de sua primeira conferência, dizendo que estava particularmente comovido por ser aquela a primeira vez que falava em público. Estou ainda mais comovido, continua ele, por ter perdido aqui minha virgindade de orador, uma virgindade aliás não mais lamentável que a outra. Pode-se imaginar a estupefação que essa frase causou sobre os ouvintes. As mestras levantaram-se ultrajadas e retiraram marcialmente suas alunas em fila indiana do local. Muitas outras pessoas seguiram-lhes o exemplo e o auditório ficou praticamente vazio...

O personagem na primeira pessoa de O Mau Vidraceiro, de outros Pequenos poemas em prosa, como aquele em que justifica haver espancado um mendigo para transformá-lo em seu igual, e o protagonista do vexame belga são a mesma pessoa, integrando vida e obra. O mau comportamento em público, sua marca registrada, justifica o comentário de Walter Benjamin: O que assim Baudelaire expõe poder-se-ia chamar de metafísica do provocador.

A integridade baudelairiana entre o que escrevia e fazia foi examinada por Breton na Antologia do Humor Negro, obra de especial interesse pelo modo como nela são traçados perfis, de Swift até Brisset, passando por Lautréamont e Jarry, inseparáveis dos comentários de seus textos. É comentado seu dandismo, o exibicionismo das luvas rosa-pálido de sua juventude faustosa, da peruca verde exibida no Café Riche, até o chale de seda aveludada escarlate, vestimenta suprema de seus maus dias. Breton menciona as provocações, como aquela a um burguês que se gabava das qualidades de suas duas filhas: e qual dessas duas jovens pessoas o senhor destina à prostituição? E chega aos enigmáticos episódios de seus últimos dias, quando, mudo e afásico, corroído pela sífilis cerebral, ao passar diante de um espelho sem reconhecer-se na imagem, cumprimentava-a. E quando, vencido pela afasia, depois de um silêncio de meses, pronunciou suas últimas palavras: à mesa, pediu, com total naturalidade, que lhe passassem a mostarda.

Por isso, conclui Breton, o humor negro, em Baudelaire, assim revela sua pertinência ao fundo orgânico do ser. É nada compreender de seu gênio fazer de conta que não se toma conhecimento dessa disposição eletiva, ou passar por ela com indulgência. Ela corrobora toda a concepção estética sobre a qual repousa sua obra, e em ligação estreita com ela é que se desenvolve, no plano poético, a série de preceitos que irá transtornar toda a sensibilidade posterior.

Observe-se como Breton faz o elogio do personagem histórico Baudelaire, do homem. Em uma aparente inversão, o que teria de mais dissipado e desregrado torna-se valor, argumento a seu favor. E, mesmo quando fala da poesia de Baudelaire, como em Le merveilleux contre le mystère, acaba nos levando também ao sujeito, à pessoa do autor, como neste trecho, que me parece especialmente significativo, como exemplo de uma crítica surrealista que integra autor e obra: Baudelaire só nos subjuga a esse ponto porque, dentre os poetas franceses, é o último, cronologicamente, a traduzir em uma linguagem sensivelmente direta, em uma linguagem que as molda, sem se deixar quebrar por elas, as emoções todo-poderosas que o possuem. Com ele, a coisa exprimida ainda não se distingue, quase nada, daquele que a exprime: ela preexiste, isto é o que importa observar, ao modo de sua expressão.

Quero grifar esta frase: a coisa exprimida ainda não se distingue, quase nada, daquele que a exprime: ela preexiste (...) ao modo de sua expressão. A criação é, então, algo pertencente à ordem ou à dimensão do sujeito, ainda antes de constituir-se em obra, exterioridade autônoma. Por isso, Breton não separa um texto de quem o escreveu, uma obra de seu criador. Vê em Baudelaire algo fundamental para a compreensão do Surrealismo: a busca da unidade entre vida e arte, autor e obra; a fusão entre sujeito e objeto. Essa é a raiz dos escândalos, provocações, questionamentos pessoais e outras manifestações dos surrealistas, como os manifestos com insultos a Anatole France e Paul Claudel, o modo hilariante como acabaram com um banquete em homenagem a Saint-Pol Roux, com um dos surrealistas pendurando-se nas cortinas do salão para despencar sobre a mesa, seguindo-se uma pancadaria e a intervenção da polícia encerrando a festa, e inumeráveis outros episódios. E, igualmente, da riquíssima crônica de experimentações não só no plano simbólico, mas da própria vida, como o alucinado período, ao final de 1922, do sono hipnótico, dos transes induzidos para produzir textos que eram um misto de profecia e escrita automática. E ainda, em uma aparente contradição, na exigência de uma ética, de uma conduta coerente, que resultou em exclusões como a de Salvador Dali e tantas outras. Em resumo, a busca da unidade configura aquilo que pode ser caracterizado como atitude surrealista, inseparável da atividade desse movimento e de sua produção artística e literária.

Talvez sua expressão máxima tenha sido Alfred Jarry, encarnação máxima desse anarquismo individualista que permeia todo o Simbolismo; por isso, um autor que já contém em sua obra extensa e complexa, o que mais tarde viria a ser denominado de vanguardas, surrealismo inclusive. Conforme já observei no artigo em Agulha 12, escreveu-se muito sobre ele, principalmente estudos biográficos, por suas características como personagem, figura excêntrica, e sobre Ubu Rei. Ensaios, estudos sobre boemia parisiense, configuram-no como excêntrico delirante, levando a seus extremos a provocação romântica e o dandismo convertido em farsa. Se Baudelaire chamou a atenção por pintar seu cabelo de verde, Jarry foi além, chegando a pintar as mãos e rosto de verde. Outra vez, compareceu ao teatro com uma gravata pintada no peito da camisa. Destaca-se sua paixão por armas, e a ausência de hesitação em utilizar-se delas. Assombração armada, chegava a percorrer Paris de bicicleta, outro de seus fetiches, equipado com dois revólveres e uma carabina. Ao empobrecer, depois de haver dilapidado sua herança, foi morar em um quarto minúsculo com um pé direito tão baixo que, nele, todos tinham que ficar agachados. Nunca deixava de expressar-se em um tom de voz especial, monocórdico, escandindo em um linguajar pseudo-aristocrático a fala do próprio Ubu, utilizando o plural majestático, o "nós", em lugar do "eu".

Hoje, comportamentos como esses, e de toda uma genealogia, de Baudelaire e Nerval a Artaud, fariam com que fossem classificados como performáticos, portanto modernos. Contudo, a série de episódios, cômicos ao serem tomados isoladamente, compõem, vistos em seu conjunto, uma vida paradoxalmente alegre e trágica. Pesadamente bêbado, de um alcoolismo insaciável, esse hábito, associados a privações pela falta de recursos, determinaram seu final precoce aos 34 anos, morto de meningite tuberculosa. O revólver e demais escândalos de Jarry foram comentados por André Breton na Antologia do Humor Negro: essa aliança inseparável de Jarry e do revólver () pode ser tomada como a chave final de seu pensamento. O revólver é aqui o traço de união paradoxal entre o mundo exterior e o mundo interior. Por isso, para Breton, ...dizemos que a partir de Jarry, muito mais que de Wilde, a diferenciação entre vida e arte, tida por muito tempo como necessária, vai se encontrar contestada, para acabar sendo aniquilada em seu princípio.

Assim como Rimbaud e Lautréamont foram inequívocos baudelairianos, Jarry e os expoentes do que medeia entre pós-simbolismo e vanguarda partilharam seu legado. Foram sucessores em um determinado tipo de coerência, uma ética às avessas. Acreditaram na correspondência entre signo literário e vida. A exteriorização exacerbada não foi, portanto, mera curiosidade, matéria de petite histoire. Mostrava o escritor apresentando idéias e símbolos nos dois planos, do texto e da vida. Jarry representou, de modo único, um modo de relação entre obra de arte e vida, símbolo e realidade, criação e delírio, promovendo a sistemática confusão entre os dois níveis. Na criação e encarnação de Ubu, e em tantas outras ocasiões e episódios, pôs em ação o pensamento mágico, ao identificar linguagem e realidade, querendo que o símbolo fosse ativo no plano do real. De modo assistemático e anárquico, um empreendimento assemelhado àquele do mago.

Não posso deixar de inserir mais alguns exemplos de fusão ou aproximação entre literatura e vida, como aquele narrado por Aragon em Lautréamont et nous (Ed. Sables, 1992), texto de 1967 que corresponde à revisão de sua relação com o Surrealismo. Em tom nostálgico, remonta à época de trincheiras e serviço em hospitais na guerra de 1914-18: Por mais que fosse um tempo de acontecimentos consideráveis, parece-me principalmente tomada por essa sombra crescente que Maldoror estendia sobre nós. Faltariam às novas leituras e estudos de Lautréamont o caráter vital, visceral, pois permanecemos aqueles que, em primeiro lugar, foram os seus defensores líricos. (...) Quando nem os Cantos, nem Poésies ainda podiam ser focalizados como uma linguagem. Porém, muito mais, como um grito das entranhas. Para não deixar dúvidas, relata como liam Lautréamont em 1917. Ambos, Breton e Aragon, revezavando-se a vocalizar o exemplar único que tinham nas mãos, em um cenário inverossimilmente maldororiano: à noite, no quarto andar do hospital militar de Val-de-Grâce em Paris, onde serviam como estagiários na ala dos loucos, daqueles sob tratamento psiquiátrico. Enquanto recitavam as blasfêmias - Eu fiz um pacto com a prostituição a fim de semear a desordem entre as famílias - ou alguma passagem mais lírica - Toda noite, mergulhando a envergadura das minhas asas em minha memória agonizante, eu evocava a lembrança de Falmer... toda noite -, os internados entravam em surto: Às vezes, por detrás das portas trancadas a cadeado, os loucos urravam, nos insultavam, batendo na parede com seus punhos. Isso dava ao texto um comentário obsceno e surpreendente. Houve noites que não se pode imaginar. (...) Os bruscos buracos de silêncio eram mais impressionantes ainda que o alarido demencial. Gritos e silêncios decorrentes do pavor partilhado por loucos, seus médicos e enfermeiros, provocado pelos alarmes de bombardeios aos quais Paris era submetida. Assim foram esses encontros entre o texto e uma realidade transformada em extensão de Os Cantos de Maldoror.

Essas crônicas de sobreposições entre criação artística e vida pode ir muito mais longe. Interpolo outra passagem, desta vez de um artigo meu sobre os surrealistas portugueses (A permanência da anarquia, em Agulha 10): Pode-se enxergar um ímpeto quase suicida nas entrelinhas do trecho de Mário Cesariny, lembrando as atividades fortes e jovens no Café Herminius (as primeiras, de 1943/44): afixação a cuspo, do que resulta o lento escorregar da matéria afixada, de imagens de generais e almirantes franceses. Saltos mortais para cima das mesas. Uivos graduados por José Leonel Martins Rodrigues. (...) Pedro Oom assoma velhas às esquinas. Uma cai. Grande corrida noturna atrás de Jorge Pelaio, afligido de espíritos, até os montes do Areeiro. Mário Cesariny traz para o café a máquina de escrever e um robe que pertenceu a Conchita Grandella. Os ursinhos. Entrada de caçadores. Prisões de esperantistas. Foram ações e situações que podiam, se inventadas em vez de acontecidas, figurar em algum texto de escrita automática, dentre tantos que os participantes daquelas reuniões produziram. E que não pararam por aí, conforme mostra o trecho de António José Forte sobre a última das metamorfoses do grupo surrealista português, as reuniões no Café Gelo, no limiar da década de 60: Um verdadeiro escândalo, que não era provocado por um manifesto, por um grupo com nome próprio, por uma revista, mas por um grupo iconoclasta e libertário onde se falava de tudo, até de literatura e artes, e de rosas também. Um grupo de franco-atiradores, é verdade; um grupo de poetas, sem dúvida. Que disparava ao acaso sobre a multidão, que inventava os seus infernos e paraísos, que usava a liberdade de expressão ora voando, morrendo, desaparecendo, escrevendo às vezes.

Voltemos aos fundamentos e origens do Surrealismo. Marguerite Bonnet, em André Breton - Naissance de laventure surréaliste (Librairie José Corti, 1988), vê, com razão, os surrealistas como herdeiros do dandismo baudelairiano em sua, conforme disse Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna, necessidade ardente de alcançar uma originalidade dentro dos limites exteriores da conveniência, assim tornando-o um símbolo da superioridade artística de seu espírito. Pertencem à família dos que participam do mesmo caráter de oposição e de revolta, expressando, não apenas através de textos, mas da atitude e estilo de vida, a contradição entre arte e sociedade, e a condição de ser diferenciado, à parte e à margem, do poeta.

Nem é necessário referir-se, a propósito, ao extremado exibicionismo de um Salvador Dali. Basta examinar fotografias dos surrealistas na “fase heróica” da formação do movimento, de 1919 a 1923. Em um Breton de monóculo e na pose de seus companheiros são evidentes a permanência do dandismo, inspirado, segundo Marguerite Bonnet e outras fontes, por Jacques Vaché, morto em 1919, iniciador, segundo Breton, do Surrealismo, não só por suas cartas desvairadas, por seu modo de sobrepor a vida à arte, como ao fantasiar-se de oficial inglês para interromper a estréia da peça Les Mamelles de Tirésias de Apollinaire, em 1918.

Examinemos, ainda, as diferenças, aquelas posições onde ambos, Baudelaire e Surrealismo, são inconciliáveis. Há as diferenças óbvias no plano da expressão literária: Baudelaire, formalmente, foi um tradicionalista. Procurou expressar conteúdos transgressivos, inovadores, através de formas e estilos beletrísticos, propositadamente arcaicos, recuperando um classicismo francês. O tradicionalismo baudelairiano é reflexo de idéias, expostas em sua produção como crítico literário. Seguindo a Edgar Allan Poe, a quem tomou por modelo, ele queria a escrita a frio, o controle da emoção pela razão. Chegou a comparar a escrita a uma luta, à esgrima, à lapidação do diamante, ao trabalho árduo, em uma posição totalmente antagônica à identificação surrealista da criação à espontaneidade, ao livre ditado do pensamento (a definição de Surrealismo, no Primeiro Manifesto). Criticou a invasão do sentimento no domínio da razão. Defensor do esteticismo, acabou por exercer influência sobre os dois ramos divergentes que comporiam a poesia francesa do final do século XIX, Simbolismo e Parnasianismo. Além disso, defendeu os belos raios de sol da estética contra a doutrina da indissolubilidade entre o Belo, o Verdadeiro e o Bem que, para ele, não passava de uma invenção do filosofismo moderno. Entenda-se, do pensamento iluminista, da ideologia da Idade da Razão, com a qual, por considerá-la (acertadamente) constitutiva da sociedade burguesa, promoveu um permanente acerto de contas através de invectivas como esta: O que me entedia na França é que todo mundo se parece com Voltaire.

Portanto, para Baudelaire haveria separação ou independência entre três esferas: uma delas, a da estética e da arte (o Belo, em seus termos); outra, da ética e por conseguinte da política (o Bem); e a terceira, do conhecimento, principalmente científico (o Verdadeiro). Em sua crítica de 1862 a Os Miseráveis, de Victor Hugo, a argumentação é a mesma. Naquela obra de denúncia da opressão e da miséria, Victor Hugo teria posto a literatura a serviço dos bons sentimentos, do politicamente correto (para usar o termo contemporâneo), ignorando a irremediável e definitiva separação entre as três esferas.

Elogios a Gautier e demais precursores ou inventores do Parnasianismo, Théodore de Bainville e Lecomte de Lisle, e as críticas a Victor Hugo, também podem ser entendidas como defesa da autonomia da arte. Equivalem à recusa da sua instrumentalização, da submissão à “mensagem” que culminou na degradação promovida, no século XX, pelo “realismo socialista” e afins. No texto já citado sobre Gautier, reclama que a França tenha sido providencialmente criada para a procura do Verdadeiro, de preferência ao Belo, (e) mais ainda de que o caráter utópico, comunista, alquímico, de todos os seus cérebros só lhe permita uma paixão exclusiva, a das fórmulas sociais. Investe contra a correção política: Com efeito, de alguns anos para cá, um grande furor de honestidade apoderou-se do teatro, da poesia, do romance e da crítica. Deixo de lado a questão de saber que benefícios pode a hipocrisia encontrar nessa confusão e funções, que consolos pode tirar disso a impotência literária. Na seqüência, reserva boas ironias ao realismo ingênuo: Onde só é preciso ver o belo, nosso público só busca o verdadeiro. Quando é preciso ser pintor, o francês se faz homem de letras. Um dia, vi no salão da exposição anual dois soldados que contemplavam perplexos um interior de cozinha: Mas afinal, onde está Napoleão?, dizia um (o catálogo trazia um erro de número, e a cozinha estava assinalada com o algarismo legitimamente pertencente a uma batalha famosa). Imbecil!, disse o outro, não vê que estão preparando a sopa para quando ele voltar? E lá se foram os dois, contentes com o pintor e contentes consigo mesmos.

O pensamento literário de Baudelaire é inseparável de sua posição filosófico-religiosa. Por hipostasiar o mal, conferindo-lhe dimensão metafísica ao vê-lo como força que rege o mundo, achava inútil tentar solucionar os abismos prodigiosos da miséria social, conforme diz na crítica a Os Miseráveis. Via como irremediáveis as contradições entre sujeito e objeto, imaginação e realidade, símbolos e coisas, por mais que tentasse projetar um sobre o outro, tomando o partido do sujeito, da imaginação, do simbólico, mas esperando, contudo, que viessem a configurar o objeto, as coisas, o real.

Assim, o cerne da diferença entre Baudelaire e Surrealismo não está nem mesmo no esteticismo, ou no reacionarismo baudelairiano, a enorme quantidade de opiniões e julgamentos os mais indefensáveis, conseqüência de seu pessimismo. O Surrealismo não foi um movimento otimista, nem um materialismo do tipo cientificista. Negou o realismo ingênuo, e indicou suas diferenças com relação ao racionalismo de fundo iluminista. Nada mais antagônico, porém, ao espírito surrealista do que a doutrina da separação dos campos ou esferas. No Segundo Manifesto, Breton, depois de denunciar as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita por parte do homem, fez a afirmação famosa: Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios.

Com lucidez e clareza, Octavio Paz, em seu ensaio sobre Breton e o Surrealismo, La búsqueda del comienzo, afirmou que, para Breton, pecar e nascer não foram sinônimos. Por isso, por sua vida e sua obra, não foi tanto um herdeiro de Sade e Freud como de Rousseau e Eckhart. (...) A crença no pecado era incompatível com sua noção de homem. Assim como o poeta mexicano distinguiu Breton de Sade e Freud, podia tê-lo diferenciado, com os mesmos argumentos, de Baudelaire, para quem o mundo em que vivemos era aquele resultante da Queda, regido pelo anjo caído: daí prestar-lhe tributo. Seu pensamento se aparenta, nesse aspecto, à doutrina herética do gnosticismo, segundo a qual o mundo é regido por um deus decaído, o Demiurgo. O contato com o plano superior seria possível através do conhecimento revelado, da experiência mística, que em Baudelaire, assim como nos simbolistas que o sucederam, é convertida em iluminação poética. Assim, o gnosticismo, perseguido e combatido como heresia no século III, acabou por retornar, nos séculos XVIII e XIX, e até mais recentemente, através das doutrinas ocultistas e da voz de autores como Baudelaire e Gérard de Nerval, e na modernidade, de modo inequívoco, em Bataille e Artaud.

Impressiona, em Baudelaire, a constante reflexão sobre a dualidade de caminhos, da ascese e da dissolução, expressa em declarações como esta: Há em todo o indivíduo duas postulações simultâneas: uma em direção a Deus, outra a Satã. Esse dualismo, levando-o a acender velas alternadamente a Deus e ao diabo, justificava suas contradições e, mais ainda, sua célebre e reiterada defesa do direito de contradizer-se. O certo é que essa polaridade aguda, essa intensa vivência de antinomias, para ele dotadas de peso ontológico, impulsionaram sua criatividade e estão na base de suas idéias e intuições. Arquétipo do poeta maldito, curiosidade ou aberração para seus contemporâneos, hoje o autor de As Flores do Mal pode ser examinado como um dos grandes revolucionários do século XIX; um daqueles que mudaram nosso modo de ver o mundo.

Falar de Baudelaire, e do período da literatura que ele representa, obriga a falar de Gérard de Nerval, seu quase contemporâneo, 12 anos mais velho, com quem teve tanta afinidade. A exemplo de Baudelaire, porém em maior grau, de modo mais sistemático, teve ligações com a cultura ocultista de seu tempo, a ponto de transparecerem em sua poesia, especialmente na série final de sonetos, As Quimeras, influências e idéias da Cabala, Hermetismo e Gnose. Em comum com o Surrealismo, e sem dúvida com o misticismo, a idéia de que o ser humano é parte de um todo. Em um de seus poemas mais conhecidos, Versos Dourados, duvida que sejamos o centro do universo e o detentor exclusivo da razão: Homem! livre pensador! serás o único que pensa/ Neste mundo onde a vida cintila em cada ente? Expressando a visão pagã, vitalista ou panteísta, de um mundo vivo, animado, diz ainda que um mistério de amor no metal reside dormente, e um espírito puro medra sob a crosta das pedras (tradução de Augusto Contador Borges na edição brasileira de Aurélia, Iluminuras, 1998).

Breton, por sua vez, nos Prolegômenos a um terceiro manifesto do Surrealismo ou não, de 1942, voltando-se novamente contra o que denomina de pensamento racionalista, e, frisa ele, sem dar atenção às acusações de misticismo de que não serei perdoado, retoma a mesma ordem de considerações. Procura convencer o homem de que ele não é obrigatoriamente o rei da criação, como se vangloria. Pergunta sobre a oportunidade de revelar um novo mito, o dos Grandes Transparentes. Observa que o homem não é talvez o centro, o ponto de mira do Universo. E, no último dos Manifestos, intitulado Do Surrealismo em suas obras vivas, de 1953, reapresenta essas idéias como crítica ao antropomorfismo, à crença em que o mundo encontra no homem o seu acabamento. Declara, finalmente, que, a esse respeito, sua posição (do Surrealismo) se uniria à de Gérard de Nerval no famoso soneto Versos Dourados.

Dentre os motivos para o interesse por Nerval, está o de haver pertencido à família dos escritores loucos, e mais, dos que, enlouquecendo, conseguiram, a exemplo de Hölderlin, converter seu delírio em obra. Aurélia, livro inacabado, encerrado por sua morte ao enforcar-se em um surto de melancolia em 1855, aos 37 anos, é uma narrativa regida por mecanismos do sonho e do delírio psicótico. Nerval quis relatar a efusão do sonho na vida real, o modo como o onírico transborda, ultrapassa limites. Predomina a metamorfose, um princípio de mutação, de uma coisa sempre se transformar em outra. Por isso, poderia ser tomada como surrealista, da mesma ordem das transcrições de sonhos, poemas com imagens livres, anotações de estados semelhantes ao transe e registros da escrita automática produzidos a partir de 1920 por Breton, Éluard, Péret, Desnos, Aragon, Soupault e outros. É como se nessa obra, bem como em Sílvia, se confundissem antecipações do que viria a ser revelado pela psicanálise e adotado pelo surrealismo, através de dois modos do pensamento mágico: um deles, expressão de sua formação ocultista; outro, manifestação de seu distúrbio psíquico.

Aurélia se inicia com esta frase, que poderia ser uma epígrafe para um surrealista como Robert Desnos: O sonho é uma segunda vida. E que foi adotada quase nesses termos, quando Breton, no Primeiro Manifesto, pede o reconhecimento da onipotência do sonho, para conceder ao sonho o que recuso por vezes à realidade, além de esperar do indício do sonho mais do que espero de um grau de consciência cada dia mais elevado.

Um tema a ser retomado é o do Surrealismo como instrumento de leitura, criador de condições de melhor interpretação ou aceitação de obras literárias e de outros campos artísticos, mesmo quando não pertencentes ao âmbito desse movimento, incluindo aquelas que o precederam. O principal exemplo dessa contribuição reside, sem dúvida, no prestígio ganho ao longo do século XX por Lautréamont e Os Cantos de Maldoror. Mas também Aurélia, graças à valorização surrealista do delírio e da produção do inconsciente, passou do estatuto de documento de alucinações ao de obra de peso, com destaque no conjunto do que Nerval deixou. Ofereceu um fundamento, ou um dos fundamentos, às diatribes e impropérios contra os psiquiatras e a instituição hospitalar, como no final de Nadja de Breton e, com maior veemência, em passagens da obra de Artaud, bem como às simulações da loucura, das quais o principal registro é LImmaculée Conception de Breton e Éluard.

Vê-se que, assim como Baudelaire, Nerval foi personagem de si mesmo. Promoveu a mesma confusão entre literatura e vida, através de atitudes estranhas, desregramento, provocações e excentricidades (a mais famosa, sair pelas ruas de Paris conduzido uma lagosta pela coleira como se fosse um cão). Sua biografia, relato de uma vida agitada e trágica, culminando com a miséria e o suicídio, traz um fascínio adicional à leitura da obra poética e em prosa. Encarna tudo o que, no âmbito do Surrealismo, nisso fiel à herança romântica, se escreveu (e se viveu) sobre amor louco, sublime, absoluto. Foi um dos loucos do amor, dos que levaram a idealização da amada ao limite, a ponto de sua exacerbada paixão pela atriz Jenny Colon e sua loucura se confundirem, e ser impossível determinar onde termina uma e começa a outra. Por isso, foi mais um grande representante da continuidade surrealista entre arte e vida.

[Adaptação de palestra apresentada no Congresso Internacional O SURREALISMO: ATUALIDADE E SUBVERSÃO, Araraquara, agosto de 2001]