O PODER DO GESTO EM FERNANDO LEMOS - MAURÍCIO MATOS

O gesto traz sempre no rosto
o seu significado

Fernando Lemos

Fernando Lemos nasceu em Lisboa, a 03 de maio de 1926, na Rua do Sol ao Rato. Cursou a Escola António Arroio e a Sociedade Nacional de Belas-Artes. Veio para o Brasil em 1953, onde fixou residência e permanece até hoje, naturalizado brasileiro. Segundo o próprio Fernando Lemos:

Fui estudante, serralheiro, marceneiro, estofador, impressor de litografia, desenhador, publicitário, professor, pintor, fotógrafo, tocador de gaita, emigrante, exilado, director de museu, assessor de ministros, pesquisador, jornalista, poeta, júri de concursos, conselheiro de pinacotecas, comissário de eventos internacionais, designer de feiras industriais, cenógrafo, pai de filhos, bolseiro, e tenho duas pátrias, uma que me fez e outra que ajudo a fazer. Como se vê, sou mais um português à procura de coisa melhor. (Lemos: 1994)

Analisando a produção dos poetas portugueses emigrados para o Brasil durante o regime salazarista, Graça Capinha aborda a poesia de Fernando Lemos, basicamente, sob o ponto de vista (semântico e sintático) da tensão provocada pelo contraste cultural experienciado pelos emigrados. Para tanto, a autora partiu da própria poesia de Fernando Lemos e de entrevistas com o poeta.

Se tivesse que procurar uma metáfora para traduzir a imagem que me ficou do encontro com este poeta, creio que teria de escolher a imagem do seu atelier, onde me recebeu com um imenso sol da tarde de Inverno paulista a iluminar, através da vidraça de uma parede inteira, a profusão complexa de objectos de arte cobrindo a totalidade do espaço de texturas diversas. De todas as entrevistas, foi esta a que mais clara e lucidamente se (auto-)debruçou sobre a complexidade de uma identidade e de uma arte construídas dentro de um contexto de múltiplas intersecções, ambiguidades e contradições. (Capinha: 1997)

Logo a seguir, a autora cita três versos do o poema “A linguagem é apenas um processo”, que, para sua análise, evidencia poeticamente a situação do emigrado:

[...] Entrando mal dentro de um

quadro, por exemplo, a gente pode cair num abismo alheio que
não foi feito para as nossas quedas
. (Lemos: 1985 – grifo nosso)

Portanto, diz-se o poeta entre dois abismos: um na memória, outro na realidade; um que o fez, outro que “não foi feito para as [suas] quedas”, mas que ajuda a fazer, como podemos ler em “Depoimento 1”. Todavia, não é esta a única possibilidade de análise dos versos. É evidente que o léxico poético de Fernando Lemos sofrerá profunda influência de suas atividades como artista plástico. Assim, vemos, segundo a análise de Graça Capinha, a palavra “quadro” utilizada como metáfora para pátria. Seguindo o poema, lêem-se ainda os seguintes versos:

Letra é um desenho mudo que começa numa ponta e acaba
noutra, produzindo, sempre que caminha, um som diferente
(Lemos: 1985 – grifo nosso)

Iniciada em Lisboa, a carreira artística de Fernando Lemos desenvolve-se, sobretudo, na área da pintura e do desenho. Tem hoje trabalhos expostos em museus e coleções particulares no Brasil, em Portugal, Espanha, Suíça, Polônia, França, Estados Unidos, Japão, Holanda, Argentina. Trabalhou, ou trabalha, também com tapeçaria, pastilha vidrada, vitrais, azulejos e esculturas em ferro; e ainda é fotógrafo e poeta.

Interessado pela actividade surrealista, participou, em 1952, na exposição realizada na Casa Jalco, que fez escândalo, e onde a sua pintura e as suas fotografias se impuseram por uma profundidade original da visão. (Sena, 1983)

A Casa Jalco era uma casa de móveis e decorações, na Rua Ivens, onde, em 05 de janeiro de 1952, foram inauguradas três “Primeiras exposições individuais”, dos artistas-plásticos Fernando de Azevedo, Vespeira e Fernando Lemos. O evento, de tão celebrado escândalo promovido no meio intelectual lisboeta de então, ficou mais conhecido, simplesmente, como a Exposição da Casa Jalco.

Em pleno período salazarista e depois da provocatória exposição surrealista do Chiado, em que participou, resolve emigrar para o Brasil, onde se junta ao grupo dos exilados, vindo posteriormente a ser proibido de reentrar em Portugal, uma situação que se manteve até a Revolução de Abril. (Capinha, 1997)

A partir de então, a condição de emigrado deu lugar à de exilado político. Por esta seara, Fernando Lemos militou assiduamente como colaborador no periódico Portugal Democrático (1956-1975), o mais significativo veículo de oposição ao regime salazarista: “Um jornal português não submetido à censura”, era esta a “vinheta”, presente em cada número, que “assegurava ao leitor a credibilidade há muito ausente dos jornais [então] publicados em Portugal” (Santos: 1998). Segundo Gilda Santos, “os artigos encadeados, seriais, que se estendem por vários números, estabelecendo um pacto de leitura” seriam uma das constantes do Portugal Democrático:

A série do rato (rato = Salazar), com textos de Jorge de Sena e desenhos/caricaturas de Fernando Lemos teve grande sucesso. Aliás, no que se refere a ilustrações, os traços de Fernando Lemos em muito contribuíram para levantar a qualidade gráfica, nem sempre brilhante, do jornal. (Santos: 1998)

Na fotografia, foi na Casa Jalco que fez sua estréia, quando, além de apresentar 20 trabalhos a óleo, 22 guaches e 29 desenhos, Fernando Lemos expôs ainda um conjunto de 75 fotografias, resultado de um percurso iniciado em 1949. Destas, trinta eram retratos de personagens ativos na cena intelectual portuguesa deste período. “Do escândalo da exposição, filha do surrealismo recente em Portugal” – diria José-Augusto França quatro décadas depois – “rezam as crónicas do tempo e a memória da gente ainda viva.” (França: 1982)

Na poesia, Fernando Lemos publicou, em 1953, Teclado Universal: uma série de quatorze poemas, mais ou menos extensos, revelando um imaginário esteticamente surrealista. O volume saiu no último número da segunda série dos Cadernos de Poesia, veículo de inapagável valor histórico para a poesia lisboeta nas décadas de quarenta e cinqüenta, sem “quaisquer compromissos de grupo”, no dizer de Jorge de Sena, seu mais notório diretor. Em 1963, Teclado Universal é editado em livro, acrescido ainda de outros 48 poemas. Em 1985, é reeditado com o título: Cá & Lá, antecedido de Teclado Universal, um alentado volume contendo um total de 118 poemas, um prefácio de Jorge de Sena, um texto de E. M. de Melo e Castro e um poema de Haroldo de Campos, “Croquis do pintor-poeta”, em homenagem a “o fernando / lemos” que “escreve com um pincel / de riscos ferinos / não escreve / fere com seu traço / o papel” (Lemos, 1982).

O material fotográfico exposto em 1952 não representava, todavia, a totalidade da produção realizada em quatro anos. Parte de material foi apresentada, em exposições individuais ou coletivas, no Rio de Janeiro (1953), São Paulo (1968), Lisboa (1982), Montreal (1983) e Paris (1992). De 20 de julho a 9 de outubro de 1994, as fotografias foram expostas novamente em Lisboa, e reunidas num catálogo individual, composto por 113 peças, das quais mais de 50 % são retratos de pessoas ligadas direta ou indiretamente à nata da intelectualidade portuguesa de então; e, como em Portugal proliferam os poetas, são estes os mais fotografados. Segundo Perfecto E. Cuadrado:

No que se refere à produção do movimento surrealista português [...] haveria que assinalar: [...] o predomínio ofuscante da poesia sobre os outros géneros literários [...], ao que haveria que acrescentar a pintura ou poesia-pintura como âmbito de expressão predilecta por parte dos surrealistas portugueses, e a incursão noutras artes também de especial interesse para os surrealistas como o cinema ou a fotografia, esta última com aportações tão notáveis como as de Fernando Lemos. (Cuadrado, 1998)

Apesar da linearidade plástica, o catálogo pode, todavia, sugerir subdivisões temáticas, sendo a primeira e a última compostas por apenas uma fotografia: como prólogo, “A mão e a faca”; como epílogo, “Eu”, a imagem reproduzida na capa de uma coletânea intitulada sugestivamente “Fernando Lemos – À sombra da luz”. (Lemos: 1994)

O segundo trabalho do livro registra em tom cuidadosamente esmaecido o preto e o branco, todavia bem contrastados, de uma belíssima paisagem, “Rua do Sol ao Rato (minha primeira fotografia)”, cenário cujo significado Fernando Lemos informa em “Depoimento 1”: “Nasci na Rua do Sol ao Rato, [...]” (Lemos: 1994), a mesma rua onde renasceria, em 1949, como fotógrafo. Seguem-na mais doze outras paisagens inusitadas, percebidas mais ou menos sob um ângulo de visão surrealista, ou norteadas por uma estética que assim podemos aproximadamente definir e exemplificar no pronunciado contraste, semântico e plástico, de “Coincidência”, presente ainda nas árvores de “Jardim” e de “Hoje há passarinhos”.

A “Luz teimosa”, que atravessa as frestas de duas portas entreabertas, abre outra seção do catálogo, seguida por “Luz armada”, “Luz em obras” e etc, cuja temática é explícita no título destes trabalhos. Em “Nevoeiro de Moledo” e “Manequim do Vespeira”, vê-se a luz, literalmente, como o foco fotográfico sobre um fundo obscuro: uma rua margeada por um casario, com postes ao longo, no primeiro caso; no segundo, o vulto de uma imagem, possivelmente religiosa. Seguem-se a estas, “Natal do talho” e “Cena esfolada”: fotografias de um açougue, em que a luz, em contraste acentuado, deixa apenas sugeridas as silhuetas dos cadáveres dos animais. Tematicamente, a luz é ainda o foco do trabalho, mas é o quanto, através dela, revelam os corpos, que parece promover a plasticidade acentuada nestas fotografias; e talvez acrescentasse Manuel Bandeira: “Sente-se o pintor nas fotografias de Fernando Lemos. Mas advirta-se: não se trata de todo de um desses fotógrafos que se metem a pintores, espécie que não aprecio, pois o mais a que chegam é a uma falsificação da fotografia [...].” (Bandeira: 1994)

A parte seguinte, inicia-a o trabalho “Intimidade dos armazéns do Chiado”. Para além de tudo o que o Chiado pode sugerir neste título, vemos, provavelmente no interior de um de seus históricos armazéns, a imagem da cabeça de um manequim sobre uma bancada e, contrastando com a luz baça que atravessa uma janela muito suja, braços e pernas sintéticos pendem do teto. O tema é o corpo humano, explorado aos fragmentos, através de bonecos: sejam estes manequins, modelos de madeira para pintura (“Nu de ensaio” e “Cena humana”) ou brinquedos de criança (“Hospital de bonecas”).

Pinturas, fotografias e desenhos do corpo humano são fotografados, persistindo na busca indireta dos corpos, reconhecidos na produção simbólica de outrem, como em “Mão de sombra”, “Luz do olhar”, “Banho de sol” ou “Espreitando o quadro de Moniz Pereira”, que é a fotografia da pintura das costas de uma mulher nua, e peça inicial de uma série de onze belíssimos nus, anônimos todos, alguns conseguidos através dos recursos – ou da falta deles, o que naturalmente estimula a criatividade – da antiga câmera Flexaret. Em “Movimento”, “Nu lento”, Nudez dança”, “Colagem” e “Gesto emoldurado”, vemos o produto final de um processo descrito por Fernando Lemos nos seguintes termos:

As experiências feitas na duplicidade da imagem fotografada, cujos resultados são normalmente considerados como acidente devido à batida de uma foto sobre outra, foram no nosso caso e aí expostas, intencionais. A máquina usada na época, uma Flexaret, não era automática. Isso permitia tirar partido do espaço de um rolo de 12 módulos de 6 x 6, imprimindo-lhe várias imagens com combinações programadas, conscientes e, ao final, obter várias dezenas de opções para imprimir cópias ampliadas de detalhes que se tornavam entidades. Não se trata então de sobreposição de negativos [...]. (Lemos: 1994)

Ao mesmo processo serão submetidos um homem identificado apenas por “Engenheiro Pilar” e uma mulher, simplesmente “Teresa corista”, além de Augusto Figueiredo, Glicínia Quartin, Vespeira, José Viana, Sara Valle, Alexandre O’Neill, Nora Mitrani, Jorge de Sena, José-Augusto França, Maria Helena Vieira da Silva, Arpad Szènes, Jacinto Ramos, José Blanc de Portugal, Carlos Wallenstein e um homem, identificado pelo título “Eu”, a última peça do livro, que fecha uma longa série de retratos – iniciada por uma fotografia intitulada “Meus pais” –, cujos modelos são identificados, direta ou indiretamente, por seus respectivos títulos.

Após o primeiro impulso do automatismo, [...] as fotos que estão expostas, passaram também a ser dirigidas, controladas, programadas. Também nessa época, a colagem, sistema de emprestar a certas imagens já estabelecidas nalgum suporte a capacidade de adesão a outras sobre outros suportes, ocupou muito do nosso cuidado nas experiências. E, finalmente, a ocultação (não confundir com ocultismo) onde, por exemplo, a tinta da china se derrama coerente, desrespeitando as imagens já impressas, ora saqueando, ora desmistificando, ora resgatando o universo irónico das semelhanças e/ou das diferenças, ora na recriatividade de eliminar redundâncias num retrato, reduzindo-o ao que nele era achado essencial. (Lemos: 1994)

A conjugação pronominal do verbo derramar (“a tinta da china se derrama coerente”) pressupõe a intervenção do acaso; a percepção desta “coerência”, que pode haver ou não, é o papel do artista, o “primeiro impulso do automatismo”. Por trás de tudo isto, no caso da fotografia, a técnica e o senso estético orientam um processo em que as imagens são “dirigidas, controladas, programadas”. Revela-se, portanto, associada à escrita automática pela intenção de coletar elementos estéticos do inconsciente, a busca da essência do retrato através da intervenção, ainda que mínima, do acaso, processo cujo filtro será o senso crítico do poeta, do pintor ou do fotógrafo. No dizer de Fernando Lemos, de um “primeiro impulso de automatismo” deve resultar um mote, a partir do qual a obra será tecnicamente criada. Uma destas técnicas, a “ocultação”, consiste em deixar, “consciente[mente] ou tomado como tal”, o acaso intervir na matéria, para então lapidar o resultado desta intervenção, obtendo assim um resultado ainda diverso: a recriação da matéria original, reduzida ao que nela era “achado essencial”. Este processo pode ser percebido em “Nu de surpresa”, certamente uma das mais impressionantes fotografias de Fernando Lemos.

Deixar que o acaso intervenha na obra, ou até mesmo provocar a sua intervenção, para, a partir dela, chegar a imagens imprevisíveis, que todavia – ou por isso mesmo – confundem esteticamente o retrato e sua essência, é um processo descrito pelo pintor figurativo irlandês Francis Bacon (1909-1992) como a pedra fundamental de sua experiência criativa (Sylvester: s/d). Todavia, segundo ele, é preciso um apurado senso crítico para perceber se a tinta que caiu ou foi jogada na tela tem ou não coerência plástica com o contexto no qual foi inserida. Se a conseqüência do processo, por um lado, é a conquista da essência do retrato, por outro, é muita tela perdida, por “muita” intervenção do acaso, ou talvez senso crítico demais.

No caso da pintura, imagina-se com maior facilidade como se pode induzir a intervenção do acaso: diversas técnicas, pincéis, cores e tipos de tinta, diversas combinações de tudo isto e tudo mais – que de diversos instrumentos se serve o pintor, inclusive das próprias mãos, a talvez arremessar tinta sobre um fundo figurativo, por exemplo. Por outro lado, no caso da fotografia, porém, os limites da máquina tornam imperativo ao artista a criação de meios para permitir a intervenção do acaso no processo fotográfico – parte físico, parte químico –, se esta for a sua intenção. A superposição de negativos durante a revelação pode certamente gerar um efeito surrealizante. Todavia, quando dois ou mais negativos são escolhidos e justapostos intencionalmente para projeção em papel foto-sensível, o resultado da operação é previsível. Quanto ao material, a quantidade de lentes e filtros disponíveis podia já ser grande, mas o resultado de toda combinação será sempre igualmente previsível.

Assim, para induzir a mínima intervenção do acaso e, a partir do reconhecimento plástico deste processo, fazer uma fotografia surrealista, houve de se recorrer à um artifício mecânico, que na verdade era um atraso tecnológico da câmera utilizada: a Flexaret, que não corria automaticamente o filme a cada exposição e não tinha trava no botão do disparador. Com esta câmera, foi possível sobrepor fotografias – não negativos. Assim, a quantidade de luz que entrava nas sucessivas exposições intencionais sobre o mesmo espaço do filme interferia na textura da imagem que estava já registrada, pois o filme não corria até que o fotógrafo decidisse passar para uma nova fotografia, e dar aquela por encerrada. Desta forma, cada fotografia é o resultado de uma sucessão de exposições do filme à luz, e não de apenas uma exposição, como normalmente ocorre no processo das convencionais câmeras Reflex. A sucessão de exposições será, portanto, o produto final da intervenção manifesta da memória sobre os olhos do fotógrafo. Na impossibilidade de fotografar o próprio imaginário:

A tomada de duas ou mais imagens propositadas num mesmo espaço do filme virgem elabora, por um sistema de anulação ou acréscimos cadenciados, a descoberta de novas texturas e organismos fornecidos pela luz, que é a matéria prima da fotografia. [todavia] A margem de acaso é mínima, uma vez controlada a Asa, a posição em relação ao campo visual, o diafragma, etc. Assim se procurou dar à experiência um cunho de plasticidade mais pictórica e descomprometida com a técnica fotográfica legislada pela máquina. (Lemos: 1994)

Na programação consciente e técnica da Asa do filme, da iluminação, do tempo do obturador e da abertura do diafragma, todavia, intervirá o inconsciente através da memória, único registro plástico da(s) última(s) imagem(ns) registrada(s), no mesmo espaço do filme. A decisão de quantas exposições serão feitas também compete ao fotógrafo, tecnicamente instruído para tornar a fotografia possível, ou seja, “não queimar o filme”, ao calcular o quanto de luz e quantas exposições o filme poderá suportar, antes de rodá-lo; cabe à sua intenção a escolha do(s) objeto(s) a ser(em) fotografado(s), esteticamente percebidos, ou captados, e preparados (ou não); e ainda, processa-se entre os olhos e as lembranças do fotógrafo a relação entre as imagens registradas intencionalmente, mas mnemonicamente sobrepostas. Imagem e imaginário sobrepostos, é o que se pode chamar de fotografia surrealista. Mas Fernando Lemos pode melhor resumir tudo isso, com a experiência vivida de quem o fez e, portanto, em termos mais poéticos:

Essas experiências e inquietações têm a ver com a Flexaret, com o botão de disparar desabotoado e livre, desautomático, capaz de assumir um erro de fotógrafo amador comum e nomeá-lo gesto operador na arte em liberdade, que foi o lado sagrado do surrealismo. (Lemos: 1994)

Além dos pais, de Lucília Farinha – cujo decote, com a sombra do braço ocultando o colo do seio, esconde o que, no dizer de Camões, “não é pera esconder-se” – e de muitos outros, como os artistas plásticos Fernando de Azevedo e Vespeira, compõem ainda esta série os retratos um grande número de escritores, hoje, notórios, naquele momento, ainda construindo a sua notoriedade – uns, através dos Cadernos de Poesia; outros, das veredas do surrealismo literário português, e de seu movimento; outros, ainda, tão-somente dos versos que iam fazendo, e que, no tempo, os fariam os poetas que hoje são, entre eles: Adolfo Casais Monteiro, Mário Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O’Neill, António Pedro, Jorge de Sena, José-Augusto França, José Cardoso Pires e Sophia de Mello Breyner Andresen. Seria arriscado afirmar que todos estes estão – com exceção feita apenas para um José Cardoso Pires ou um Adolfo Casais Monteiro – ou estiveram, em maior ou menor intensidade, de algum modo vinculados ao surrealismo, seja no processo literário de criação, seja no produto final de ao menos um período ou da totalidade de suas obras? Em “Depoimento 3”, diz Fernando Lemos:

Essas experiências e inquietações têm a ver com a Flexaret, com o botão de disparar desabotoado e livre, desautomático, capaz de assumir um erro de fotógrafo amador comum e nomeá-lo gesto operador na arte em liberdade, que foi o lado sagrado do surrealismo. (Lemos: 1994)

Nos anos quarenta, nós, então surrealistas, andávamos muito envolvidos com as experiências da escrita automática (que é o contrário automático das máquinas fotográficas de bom comportamento). Esta permitia colectar sobre o inconsciente os arquétipos-clichês, incorporando-os a imagens e matérias na área definida do consciente ou tornado como tal. Após o primeiro impulso do automatismo, a escrita, como as fotos que estão expostas, passaram também a ser dirigidas, controladas, programadas. (Lemos: 1994)

Sobre a exposição da Casa Jalco, escreveria Fernando Lemos, quarenta anos depois,: “Assumi na Casa Jalco, publicamente, a minha condição de surrealidade exposta...” Considerando, sobre esta afirmação, a quantidade de poetas mais ou menos surrealistas retratados e expostos neste evento e a associação que faz o “fotógrafo-poeta” Fernando Lemos entre a escrita automática e o seu processo de criação fotográfica, concebido a partir de opções declaradamente surrealistas, evidencia-se a relação entre o verbo e a imagem, neste caso, o poema e a fotografia, na obra de Fernando Lemos (1).

Pintor, desenhador e fotógrafo, a sua obra [...] patenteia uma forte personalidade, dotada de um rico sentido poético que da realidade abstracciona subtilmente os elementos de uma penetrante e rude visão da vida, que surgia também nos poemas com que colaborou em Cadernos de Poesia e na publicação Unicórnio e números subsequentes. Esses poemas trouxeram ao surrealismo um tom de decidida e vigorosa aceitação da vida, sem o desespero ou o sarcasmo negro que tem caracterizado algumas expressões deste movimento. (Sena: 1983)

Antes da primeira edição de Teclado Universal nos Cadernos de Poesia, em 1953, o catálogo da Exposição da Casa Jalco “comportava textos de dois dos expositores, F. Azevedo e F. Lemos (deste um poema), [...] em 600 exemplares especiais, [...] uma publicação excepcional no meio da modéstia então costumeira dos catálogos de exposições.” (França, 1994). O poema de Fernando Lemos, “Para o catálogo da minha primeira exposição por sinal surrealista, escandalosa, lisboeta”, só foi reeditado em 1963, na primeira parte, datada de 1952, do conjunto de poemas inseridos na segunda edição de Teclado Universal. Nele, como nas fotografias, não se vê “o desespero ou o sarcasmo negro que tem caracterizado algumas expressões” do surrealismo português, mas sim “um tom de decidida e vigorosa aceitação da vida”, expressa num lirismo imagístico que nos deixa sem palavras ao ver a beleza do

[...] Sol que vem cinicamente
todos os dias
verificar o bem e o mal ambos sem remédio

e, ainda no mesmo poema, “Para o catálogo da minha primeira exposição por sinal surrealista, escandalosa, lisboeta”,

Acordar lentamente
a todas as quatro horas das manhãs
para surpreender em flagrante
os idílios amorosos na pintura antiga
e assistir ao pudor
........ que sei que há
do lado de lá de todas as figuras pintadas (Lemos: 1985)

ou, nos versos de “Cepti-cidade”, primeiro poema de Teclado Universal,

Fumar um cigarro entre duas dificuldades
como se fossem dedos

Os mesmos dedos pintam, desenham, fotografam e escrevem. Semanticamente, o “pintor-poeta” Fernando Lemos, como lhe chamou Haroldo de Campos, revela-se em flagrar “os idílios amorosos da pintura antiga / e assistir ao pudor [...] / do lado de lá de todas as imagens pintadas”; o “fotógrafo-poeta”, no espreitar intimamente o Sol, cuja luz é fundamental para um trabalho em que os “retratados” receberam “iluminação de uma só lâmpada, quando era de noite e do sol (que também é só um) nas operações diurnas.” (Lemos: 1994)

e lâmpadas....... muitas lâmpadas!
Muitas lâmpadas a sobrarem do vidro que resto dos dias
Lâmpadas que se comem através dos vidros das janelas
porque os olhos vidrados de cinza....... do vizinho
queimam as curiosidades
[...]
Lá tão longe por já não haver lâmpadas
no peito azul do luar de pedra um seio sorri
lançando estrelas aos pés descalços e quentes da rapariga

Pedras muitas pedras
lâmpadas muitas lâmpadas
quando no contorno do rosto
passeia o arlequim de vento

E as horas são mais lentas
porque o sol não quis chegar
as almas côr de noite
guardam âncoras de gelo no peito
olhando o lago vazio de caravelas de pau
[...]
na noite em que já não há mais lâmpadas

Em “Escadinhas da Saudade”, sol e lâmpadas, como metonímias do dia e da noite, em contraponto, fazem o pano de fundo para um enredo narrativo marcadamente surrealista: no plural, as lâmpadas, “muitas lâmpadas! / [...] a sobrarem do vidro”, são anaforicamente comparadas às “Pedras muitas pedras”; no singular, o Sol “não quis chegar”, fazendo “as horas [...] mais lentas” e prolongando a obscura contemplação das “almas côr de noite”.

Insistindo na análise semântica da poesia de Fernando Lemos, percebe-se portanto que, neste poema, a presença e a ausência das lâmpadas e do sol iluminam e obscurecem, alternadamente, a história da “rapariga sem história”, que “jurou [...] / [...] cumprir o cheiro de segredos que ouve nos passos”, que “já vai descalça para sentir / o frio das pedras”, que “sorri” e

[...] sentada na própria sombra
ouve os passos
na testa branquíssima onde lhe nasceu a lâmpada (Lemos: 1985)

É esta a única “lâmpada” singularizada que aparece no poema e, se lhe nasceu na “testa branquíssima”, soa como uma idéia, entre a sinestesia e a metáfora, talvez “o cheiro do segredo que ouve nos passos” e que vai “pela noite fora”, “enquanto / está realmente noite”, “noite em que já não há lâmpadas”. Desta forma, como quem tem uma idéia, com “uma só lâmpada” – enquanto o Sol, “que também é só um”, não viesse “cinicamente / [...] / verificar” o “sem remédio” do cotidiano – Fernando Lemos iluminou seus retratos internos e/ou noturnos.

Essa precariedade era em parte conseqüência da pouca verba que sobrava da pobreza, de um lado e da mensagem, pelo outro, que estava implícita na ética surrealista, ou seja, a simplicidade, o abaixo o luxo, na tal operação de colecta sobre o inconsciente que apresentava sempre o lado milionário da nossa imaginação e sonho [...]. (Lemos: 1994)

Como as “Gentes que distantes a sonhar na ponte do salário / ardem em chamas” (Lemos: 1985), Fernando Lemos, no período em que realizou as fotografias da Exposição da Casa Jalco, partiu da simplicidade e do sonho – este, imaginação e desejo – para compensar as faltas materiais de então. Assim, em “Saudades”:

Eu sonho dormir com o poder do gesto
aproveitando esta hipótese pequeníssima
de me quebrar em memórias tuas
mais que o conhecimento que tenho da saudade (Lemos: 1985)

Certamente, “o poder do gesto”, Fernando Lemos o tem em seu imaginário estético, seja literário, seja plástico. Segundo Jorge de Sena, “seria um simplismo ver [na] recorrência” da palavra gesto nos textos de Fernando Lemos a “denúncia de quanto são escritos por um homem que, pintor e desenhista, não pode deixar de ter o ‘gesto’ como essencial função”, pois “pintar ou desenhar não pressupõe mais gestos do que escrever.” (Sena: 1985). Todavia, em português, a palavra gesto é bissêmica: seu significado mais comum é “movimento do corpo, especialmente da cabeça e dos braços, ou para exprimir idéias ou para realçar a expressão”, e de fato é redutor perceber, na presença do significante gesto na poesia de Fernando Lemos, apenas a interferência da atividade de pintor, que tem nos “gestos” um registro patente. O outro significado da palavra gesto é restrito, no século XX, a um pequeno número de especialistas, mas corrente, por exemplo, na poesia de Camões: “semblante” (Ferreira: 1972) ou, aproximadamente, “rosto”. Desta forma, o objeto do “sonho” será o “gesto” em “Saudades”, e “gesto” será, possivelmente, “semblante” no poema “Outra apresentação em forma de conversa (do catálogo de uma Exposição)”:

Há em todas as coisas expectativas
O gesto traz sempre no rosto
o seu significado (Lemos: 1985)

Apenas um gesto (movimento) pressupõe a fotografia, mas a repetição deste gesto pelo “fotógrafo-poeta” Fernando Lemos registrou a “expectativa” de inúmeros gestos (semblantes), em retratos que adquiriram autonomia estética através do que “neles era achado essencial”. Muitos destes, como já foi dito, tiveram parte na exposição de 1952, em cujo catálogo António Pedro apresentava o então jovem surrealista, nos seguintes termos:

Quanto a querer dizer coisas que não têm nada que ver com a pintura, o Fernando Lemos é felizmente daquela espécie de gente que é capacíssima de as coisas dizer quando não está a pintar. Pintando, com a máquina fotográfica ou com os pincéis, age como quem ama devagar: descobrindo aos milímetros e enternecendo-se a cada descoberta – desmultiplicando o enlevo do pormenor até ao esquecimento de tudo. (Pedro: 1994)

Nota:

(1) Além de muitas referências à imagem de um modo geral, explícitas ou implícitas nos versos de Fernando Lemos, sua poesia reunida em 1985 é encerrada por uma seção sugestivamente intitulada “Poemagens”. “Desígnio”, que a antecede imediatamente, é uma série de sete poemas, seis deles acompanhados por desenhos, em que a relação entre o objeto plástico e o literário é patente e definitiva (Lemos: 1994). Todavia, este trabalho focaliza exclusivamente a produção fotográfica e poética do primeiro movimento da trajetória de Fernando Lemos: as fotografias realizadas entre 1949 e 1952 e os poemas incluídos até a segunda edição de Teclado Universal, de 1963.

Referências Bibliográficas:

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CUADRADO, Perfecto E. A única real tradição viva – Antologia da poesia surrealista portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1998.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972.

FRANÇA, José Augusto. In: “Folhetim artístico” do Diário de Lisboa, de 20 de março de 1982. In: Fernando Lemos – Á sombra da luz. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 1994.

_____. “Azevedo, Lemos e Vespeira, 1952”. In: A arte portuguesa, anos quarenta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982.

LEMOS, Fernando. Á sombra da luz. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 1994. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 1994.

_____. Cá & Lá antecedido por Teclado Universal. Lisboa: INCM, 1985.

PEDRO, António. “Texto de apresentação do catálogo da Exposição [...] na Casa Jalco”. In: Fernando Lemos – Á sombra da luz. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 1994.

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SENA, Jorge de. “Prefácio”. In: LEMOS, Fernando. Cá & Lá antecedido por Teclado Universal. Lisboa: INCM, 1985.

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Mauricio Matos (Rio de Janeiro, 1973) é jornalista, poeta, ensaista. Como ensaísta, tem textos sobre poetas de língua portuguesa publicados no Brasil e em Portugal. Como poeta, recebeu bolsa da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (2000) e menção honrosa da União Brasileira de Escritores (2002) pelo livro inédito Aquem das Retinas; tem poemas publicados em periódicos especializados como Poesia Sempre e Jornal de Poesia (http://www.jornaldepoesia.jor.br). É mestre e doutorando em literatura portuguesa. Atualmente, maio de 2003, exerce o cargo de professor assistente de Literatura e Comunicação.