SURREALISTAS QUE SE IGNORAM (APRESENTAÇÃO DO DOSSIER) - MARIA ESTELA GUEDES


Aberto este dossier, graças ao protocolo de permuta estabelecido com a Agulha-Revista de Cultura e portal Alô Música, verifico, não sem alguma surpresa, que, em matéria de surrealismo, a América Latina está muitíssimo bem informada, mas sobretudo que um brasileiro como Claudio Willer sabe mais do surrealismo português do que eu. E no entanto eu entrei nas letras portuguesas pela porta do surrealismo, ou do abjeccionismo, aberta à minha juvenil perplexidade por Luiz Pacheco. Entrei pela porta do polemista, não pela do ficcionista. Não seria talvez a mais indicada porta para uma donzela, a da porrada...

Assim, bem ou mal ensinada, dei e levei, a começar pelo próprio Luiz Pacheco, o que o não impediu de me ter publicado em 1997 um livro na sua editora, a Contraponto, classificado o livro como surrealista por António Cândido Franco, ao rematar a sua recensão, e com toda a justiça (para o editor): "A publicação do trabalho pertenceu à editora de Luiz Pacheco, que deu à estampa em cinquenta anos de vida alguns dos melhores textos surrealistas portugueses (Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Natália Correia, Herberto Helder, Maria Estela Guedes)" (Diana, Revista do Departamento de Linguística e Literaturas, 1-2, Universidade de Évora, 2001, p. 191). Esse livro está afortunadamente em linha, é a história de uma espécie de Salamandridae da Península Ibérica, Chioglossa lusitanica, contada a partir de textos científicos, em que juro não ter inventado nada! De resto, o livro está bem firmado numa "Antologia de textos terroristas", que agora, já mais instruída, emendo para "surrealistas":-) Nuno Marques Peiriço, meu co-autor, também nada inventou, e se tal audácia lhe tivesse passado pela mente, levava!...

Nunca, apesar destas relações, me tinha sentido surrealista, aliás nunca tal questão me aflorou o espírito. No curso das minhas actividades, estabeleci frutuosas relações de trabalho e amizade com surrealistas como Carlos Eurico da Costa, na direcção da Associação Portuguesa de Escritores, conheci Natália Correia, em especiais circunstâncias surrealistas (fez um escândalo uma noite num hotel, porque não conseguia dormir com a luz que se coava pelas persianas, puxou com força a mais os cortinados e tudo lhe desabou na cabeça...), recebi muito honrada uma visita de Mário Cesariny e Hermínio Monteiro em minha casa, temos no TriploV poemas e textos polémicos de outro escritor português tangencialmente surrealista, Muhammad Rashid, também conhecido por António Barahona, escrevi um livro sobre outro para-surrealista, Herberto Helder, cuja poesia não deixou de ferir aquilo que na pouca minha se encontrava em sintonia com a dele, e até convivi com o saudoso João Gaspar Simões, de quem posso dizer que era o menos ortodoxo possível... Sim, não houve quem não tivesse dado porrada em João Gaspar Simões, porém, eu, que dei tanta e tanta levei, por excepção de algum acaso objectivo, nunca toquei no crítico, pelo contrário, e fui sua amiga, enquanto a amizade e ele duraram. João Gaspar Simões simplesmente odiava a crítica universitária, sentia horror pela semiótica e outras disciplinas que querem à força analisar cientificamente o que não é analisável nem sequer a-cientificamente, e nisto não podia ele ser mais surrealista, ou pró-surrealista, se não acharem bem a designação de tangencialmente surrealista:-) Afinal João Gaspar Simões tirou Fernando Pessoa do baú e não apenas esse mas quantos outros artistas da modernidade, plásticos incluídos. Um chato, João Gaspar Simões?! Pois, sim, claro... Tal como Camilo, escreveu a metro os seus "pastelões", como ele próprio chamava aos seus artigos no "Diário de Notícias", e por causa desses pastelões foi e é dos raros escritores portugueses a terem "vivido da pena" (continuo a citá-lo). Esse chato ultrapassado e ortodoxo, até mesmo ignorante, como alguns dizem, sabia aquilo que eles não sabem, e ignorava o que não quis ler, porque felizmente a literatura e o diálogo só são possíveis por não sabermos todos as mesmas coisas e ninguém é obrigado a ler à força o que não lhe apetece. E agora me apraz recordar o gozo que lhe dava guiar a alta velocidade o seu automóvel desportivo, vermelho, descapotável, pela estrada que ia dar à sua casa de praia, no Algarve, de paredes recobertas pela melhor pintura que se fazia em Portugal - surrealista ou tangencialmente isso, Vieira da Silva em primeiro lugar - ou não estaremos a falar de modernidade? E também a casa de Lisboa era um museu de arte contemporânea, sem esquecer um insólito pormenor de mobiliário que me exibiu um dia, orgulhoso, cheio de fino sentido crítico: "É a melhor cama de Lisboa!" Sim, seria, sem dúvida, acredito seriamente, pois tinha não um, sim dois colchões de penas...

Saltando alguns capítulos a esta nota biográfica de quem está no surrealismo sans le savoir, até porque há surrealistas que se auto-excluem do movimento, outros por ele são excluídos, outros nunca ousaram aproximar-se de quem apadrinha, etc., detenho-me neste outro espantoso acaso objectivo de comandar uma nave espacial chamada VVV, sem me ocorrer que era surrealista (1), e aliás o nome tem pai, não fui eu quem pôs esse ovo, o pai é Ernesto de Sousa, autor que muito usou as práticas surrealistas, como essa da apropriação do texto amado sem a devida referência bibliográfica - "O teu corpo é o meu corpo é o teu corpo", eis a doutrina, e mesmo as artes raras sabia, como demonstra a exposição "Esse ouro dantes", ou o livro inédito em papel editado no TriploV ("33 Folhas"), sem que nunca à vanguarda em que se movia tivesse eu ouvido chamar surrealismo. Um dos amados de Ernesto de Sousa era Marcel Duchamp, e receio que seja surrealista a Gioconda de bigode que usou como emblema da "Alternativa Zero" (2).

Saltemos todos os dispensáveis capítulos desta reminiscente conversa, pois começa a ser claro para mim que um movimento, se o é, não pára, por isso não tem princípio nem fim, apenas pontos de referência mais ou menos marcados, que nós mesmos estabelecemos, para guias de uma jornada que se compadece pouco com as veleidades objectivas de alguma balança de alta precisão. Isso é no lado das ciências que mora, não no das artes. Em teoria, claro. E teoria defendida pelo lado da ciência.

Claro que há então os surrealistas que se ignoram a si mesmos, os que ignoramos, e gostava de dar alguns exemplos, estranhos à minha pessoa, susceptíveis de deixar nervosos os surrealistas e estudiosos do movimento que têm a complacência de me seguir: os naturalistas... Sim, os naturalistas são surrealistas, e surrealistas puros, António Cândido Franco acertou em cheio, não apenas tangenciais... Não me refiro a Zola, refiro-me a Bocage - não, não é esse, é o primo... Tal como é surrealista o Nobre - não, não é o António, é o irmão -, e ainda o Newton, o Gray, o Baltasar Osório, o Visconde de Cayru, que salvo erro é uma personagem da História brasileira... Enfim, tantos naturalistas-surrealistas que abrilhantam este portal com enunciados cuja dimensão esotérica é objecto de estudo especializado nas letras, em especial surrealistas, por Richard Khaitzine, presente no TriploV. Richard Khaitzine tem-se dedicado ao estudo da língua das aves, um dos elementos do discurso surrealista, pertencente à esfera das artes raras ou ocultas, como a alquimia. Essa língua das aves, a que pessoalmente dou o nome de língua das gralhas, por os enunciados se exprimirem por erros, é usada pelos naturalistas, e a parte mais substancial dos conteúdos do TriploV está ocupada com eles. Apenas para não deixar sem algum exemplo os leitores, direi que chamo língua das gralhas a um discurso que produza este tipo de enunciado: "Coimbra situa-se na Foz do Douro". Foi produzido pelo cientista Augusto Nobre, aliás ministro da Instrução Pública, mas talvez se aceitasse melhor em António, apesar de este grande poeta português não ser considerado sequer tangencialmente surrealista... Leia, se lhe interessa o assunto, os textos de "As gralhas", em linha no TriploV.

Sinto-me feliz com este delicioso acaso que fez com que da confluência das letras, artes, ciência, alquimia e religiões tivesse eclodido do triplovo esta Fénix surrealista, a conferir uma singular e inesperada unidade de sentido a todo o portal. Seja eu ou não surrealista, dois pontos parecem não deixar dúvidas: foi-me entregue um testemunho de duas faces, cunhado de um lado com o emblema traditio, do outro, aventura, e ele aqui está, feito uma casa em que vos recebo com alegria - é o TriploV. O ouro ponto é a resposta às perguntas: por que motivo os surrealistas se escondem, ou se ignoram, ou não são considerados como tal, sendo-o à evidência? Porquê falar-se de surrealismo como se dissesse respeito apenas aos outros e não a nós? Porquê não usar a palavra, como se fosse ignominiosa ou estivesse muito além do dizível? Alexandrian, que foi surrealista, e escreveu sobre o movimento a partir da experiência pessoal e convívio com os mais representativos dos seus mentores, mas que também publicou obras sobre ocultismo, diz, em "Surrealismo", que só era surrealista quem Breton nomeava como tal, e que nos seus últimos dez anos de vida ocultou o surrealismo numa sociedade secreta (3). E no entanto Breton desejava que o movimento permanecesse para além da sua morte... Só não tem contradições o que está morto, e o surrealismo sobrevive, como fica bem patente neste conjunto admirável de textos.

REFERÊNCIAS NO SITE:

Richard Khaitzine - Lingua das aves e linguagem do brasão
Maria Estela Guedes - Richard Khaitzine e as palavras veladas
Maria Estela Guedes - As gralhas
Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço - Operação Salamandra

NOTAS
(1) "André Breton chegou a Nova Iorque em Agosto de 1941; dois meses depois, a revista View, dirigida pelo poeta Charles-Henri Ford, publicava um número especial sobre o Surrealismo, a que se seguiu uma série de fascículos testemunhando a sua actualidade. Em Junho de 1942 foi fundada a revista surrealista VVV, tendo os três V como significado a tripla vitória «sobre tudo o que se opõe à emancipação do espírito, cuja condição prévia é a libertação do homem» e a tripla Visão, resultando de uma síntese da visão do mundo interior e do mundo exterior, «para uma visão total VVV , que traduza todas as reacções do eterno sobre o actual, do psíquico sobre o físico e mostre o mito em formação sob o véu dos acontecimentos». O chefe de redacção de VVV foi David Hare, autor de curiosas fotografias feitas pelo processo do «aquecimento», que consistia em fazer derreter a gelatina dos negativos depois da revelação. Tornando-se mais tarde escultor, Hare irá do fantástico à abstracção." Sarane Alexandrian, "Surrealismo", Editorial Verbo, Lisboa, tradução de Adelaide Penha e Costa, 1973, pág. 170.

(2) A Gioconda de bigode da "Alternativa Zero" é essa que usamos no logotipo deste dossier, mas pode ver uma imagem dela no programa da colectiva se visitar a página "Ernesto de Sousa", no TriploV.

(3) "A ocultação profunda, autêntica do Surrealismo, ou seja, a sua transformação num meio secreto, fechado, encarregado de cultivar num clima ideal as ideias-força do mundo moderno, da mesma maneira que foram praticadas as ciências esotéricas na Idade Média - essa ocultação que Breton reclamava já no Segundo Manifesto foi plenamente realizada durante os últimos dez anos da sua vida. A maior parte das liberdades conquistadas pelos surrealistas tinham-se tornado verdades correntes, assimiladas em parte pelos costumes e de que aproveitavam em todo o caso o pensamento e a arte de vanguarda, por vezes sem o confessar. O Surrealismo quis dirigir-se a partir de então a iniciados e agir de tal forma que aqueles que viessem até si fossem obrigados a passar por uma iniciação para poderem atingi-lo. André Breton esforçou-se por manter, com um grupo renovado, os princípios fundamentais do movimento e pôr em discussão ao seu nível os factos da actualidade e o futuro da criação artística. Sucederam-se revistas como Médium, Le Surréalisme même e La Bréche, para testemunhar a actividade deste colégio espiritual." Alexandria, opus cit.., p. 229.