SOPHIA DE MELLO BREYNER: UMA LEITURA DE GRADES - HELENA CONCEIÇÃO LANGROUVA

Reprodução autorizada de artigo publicado na Brotéria/Cultura e Informação, 114 (2), 1982

INTRODUÇÃO

O objectivo deste trabaltho é .fazer uma leitura que permita, sobretudo, apresentar Grades, de Sophia de Mello Breyner Andresen, uma breve antologia publicada em 1971 (1) , numa fase de pleno esgotamento do povo Português, em Portugal e na guerra colonial de África. Sophia exprime, sobretudo, o tempo de opressão, agonia, morte, alienação, renúncia e exílio, as formas de injustiça, a marginalidade, a sua busca de Justiça e de Verdade. Alguns poemas exprimem também a tomada de consciência da crise da sociedade contemporânea em geral.

De 1944 a 1954, Sophia publicou as suas quatro primeiras colectâneas de poemas quo exprimem em variados temas e formas de linguagem a sua procura de união com a Natureza. Os títulos e os conteúdos confirmam que é o Mar o elemento da Natureza que Ihe é mais familiar, do ponto de vista naturalístico e simbólico. Nascida no Porto, em 1922, de famílias aristocráticas de ascendência dinamarquesa, viveu a sua infância entre Espinho, Miramar e Porto, onde o mar e as imagens da miséria da gente a marcaram para toda a vida. Mar Novo (1958) e sobretudo o Livro Sexto (1962) reflectem a sua viragem para temas da realidade portuguesa, expressos numa linguagem imune de tendências panfletárias. Sophia olhou desde sempre os factos e situações da realidade portuguesa e do mundo contemporâneo. Sem qualquer teoria, deixando-os por vezes suspensos, em permanente procura de uma linguagem adequada. Foi a experiência da angústia política e social de Portugal, e do mundo ocidental do pós-guerra, que a levaram a procurar uma linguagem directa e despojada para exprimir uma gama de múltiplos temas do quotidiano, no rastro da estética neo-realista. O aviltamento da vida humana e da sociedade, tão explorado pelos poetas neo-realistas, constitui o fulcro temático desta antologia.

Grades publica, nas páginas 47 a 51, as palavras de Sophia proferidas em II de Junho de 1954, na Sociedade Portuguesa de Escritores, no momento da entrega do Grande Prémio da Poesia atribuído ao seu Livro Sexto. Nelas sintetiza as principais linhas de força da sua concepção de poesia que apresentam uma notável coerência em si mesmas, estando profundamente enraizadas no conteúdo dos trinta e um poemas reunidos na antologia Grades. Transcrevemos alguns passos do seu discurso que é uma Arte Poética, também publicada na Antologia (2) :

«Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor.

E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras» ...

«Pois a justiça se confunde com aquelle equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência» (3) .

A procura de rigor, de justiça e de verdade é como a espinha dorsal da obra de Sophia, e particularmente patente na antologia Grades. A procura da unidade de consciência é também fulcral na poesia e nos Contos Exemplares. Consciência unilicada e unificante de luta, no plano interior, espiritual, nas suas relações com a natureza e os outros homens, no plano social e político. Consciência unificada ou saber que se aproxima da sabedoria. A leitura da sua obra é dilfícil, porque exige do leitor uma procura idêntica para nela penetrar quase por co-naturalidade. A leitura por co-naturalidade, que deverá também ser crítica, é adequada a alguns poetas que alcançaram uma Iinguagem despojada, limpa, clarificadora e densamente concentrada. Existe na obra de Sophia toda uma procura de sabedoria de viver, de luta contra o caos, a opressão e a injustiça.

Sophia rejeita a fatalidade, a submissão aos desastres, a herança do «pecado organizado», e acredita na força combativa da verdade que deve pertencer à «íntima estrutura do poema» (4). Defende também a intervenção da poesia, do poeta e do artista, na «formação de uma consciência comum», desde que se mantenha a procura de «rigor, de verdade e de consciência» (5). Por isso, a sua obra se filia numa tradição humanística clássico-cristã e toca a consciência de quem pretende auto-conhecer-se e conhecer alguns aspectos da identidade portuguesa contemporânea. Sophia consegue harmonizar pessoalidade e adesão despojada a evidências, filtrada por uma profunda experiência do corpo, do ollhar, do espírito. Daí a dificuldade de a enfrentar numa atitude estritamente crítica; isso tem motivado o silêncio dos críticos e dos que lhe têm consagrado algumas páginas.

Como as dimensões de um artigo não permitem fazer uma leitura analítica de trinta e um poemas, tivemos de optar pela apresentação e síntese dos principais conteúdos, uma vez que é nossa intenção corresponder à tentativa de encontrar Portugal dos anos 50 e 60, que Sophia exprimiu com profunda mágoa e revolta, embora filtradas por um raio de esperança.

1. Um único poema de esperança num «país ocupado»
Sophia vê o seu país como um país ocupado, que não poderá seguir a sua própria lei - condição para se manter vivo. É ocupado pela violência social e política que tudo proíbe, tudo impede, só encontrando silêncio, solidão, monstruosidade e fome. Sophia é particularmente atenta à exipressão dos rostos dos que sofrem. Utiliza com frequência a imagem do «desenho da paciência e da fome» no rosto da gente oprimida.

País ocupado
onde o medo impera
Num quarto fechado
As portas se fecham
Os olhos se fecham
Fecham-se janelas
As bocas se calam
Os gestos se escondem
Quando ele pergunta
Ninguém lhe responde
Só insultos colhe
Solidão vindima
O rosto lhe virara
E não querem vê-lo
Seu longo combate
Encontrar silêncio
Silêncio daqueles
Que em sombras tornados
Em monstros se tornam
Naquela cidade
Tão poucos os homens (6)
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
escreve o seu nome (7)


Grades apresenta quase em forma de epitáfio um único poema de esperança.

                   Um dia, mortos, gastos, voltaremos
                   A viver livres como animais
                   E mesmo tão cansados floriremos
                   Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

                   
O vento leva os mil cansaços
                   Dos gestos agitados irreais
                   E há-de voltar aos nossos membros lassos
                   A leve rapidez dos animais.

É uma esperança anunciada para um futuro totalmente imprevisto, impreciso e indefinido: «um dia». É uma esperança utópica porque aspira ao regresso ao estado de liberdade animal, com gestos rápidos e distensos, para aqueles que foram impedidos de se exprimirem e estão fatigados dos «gestos agitados». Sophia procura privilegiar a linguagem do corpo, mesmo em textos de conteúdo predominantemente problemático e não exclusivamente estético.

É uma aspiração de florescimento e fraternidade, não social, mas ontológiaa, entre os homens e a natureza («mar e os pinhais»), todos portadores da vida («irmãos vivos»). A vida como ressurgimento da destruição é uma esperança raramente expressa por Sophia. Ela canta, nos seus primeiros livros, a vida em si mesma, como vibração funda e ritmada pelo cosmos. Neste poema, a vida ressurgirá interior e imanente, depois de ultrapassada a barreira da destruição criada pela vida exterior. O desejo de «tornar claro o coração do homem» é formulado no poema «Ressurgiremos» (8) .

Este poema de esperança pressupõe a realidade do Tempo actual onde prolifera a agonia, a morte, a alienação, o pranto, a renúncia, o exílio, a traição, a podridão, a miséria e a degradação. Sophia denuncia estas realidades e propõe, seguindo as suas convicções poéticas e humanas, um compromisso na aventura de procurar permanentemente a Justiça e a Verdade, não no plano abstracto ou intelectual, mas em todos os planos da vida.

2. O tempo actual

A problemática do tempo, na poesia de Sophia, associa-se predominantemente à cidade, à experiência de duas guenas mundiais e da guerra colonial dos anos 60. Assim, o tempo associado à vida na cidade é o «tempo dividido», o tempo em que o homem se perdeu da sua unidade essencial, «daquilo que era eterno» (9); ele entrou num processo de desintegração, de destruição, de dispersão na cidade, contradizendo a voçação do seu corpo e do seu espírito para a unidade e a união consigo próprio e com a Natureza.

A experiência das duas guerras mundiais do século XX e da guena colonial dos anos 60 demarca o «tempo actual», de Grades, não através de factos, mas numa tentativa de percepção e de compreensão global das trevas, da negatividade, da destruição, da prisão, da violência, da ameaça, que devoram o homem de hoje, o homem português dos anos 60. Esse estado global negativo e opressor é percepcionado não como a projecção de forças inelutáveis, abstractas ou meta físicas, mas como obra humana, um estado de corresponsabilidade dos homens que criam, desenvolvem e projectam a violência.

Os poemas Este é o Tempo e Data sintetizam a percepção do tempo actual

Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam (10)

    DATA

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão (11)


No 2º verso do primeiro poema ecoam versos de Dante (2), na metáfora da «selva obscura». Mas enquanto que na Commedia de Dante a «selva obscura» se insere inúmeras vezes num percurso iniciático, de procura de luz e de conhecimento, irrompendo das trevas, neste poema de Sophia, a mesma metáfora não pressupõe um caminho de luz, mas de trevas, de impureza e não de purificação, confirmado pelas metáforas da degenerescência do «ar azul» e da «luz do sol» e pela «noite densa de chacais». Como veremos adiante, Sophia escolhe todo um bestiário simbólico de violência - chacais, abutres, milhafres. Ainda neste poema, a presença do díctico este, esta acentua o aviltamento do tempo actual de trevas. A renúncia dos homens é a renúncia de ser, é o não-ser.

A construção simétrica do poema Data acumula, sob forma de enumeração gradativa, uma série de substantivos abst:ractos, repartidos por variados campos semânticos cujo denominador comum é a negação, o processo lento de aniquilamento. Verificamos que no primeiro verso das duas estrofes, a «solidão» (1,1) e a «cobardia» (2,1) têm uma conotação pelo menos parcialmente passiva que se desenvolve no sentido das actividades violentas, porque dilacerantes e geradoras de conflitos -«traição» (1,2) «ira» (2,1), «mascarada» (2, 2) e «mentira» 2,2) - para culminarem, no fim de cada estrofe, em formas de aniquilamento já instalado - «injustiça» (1, 3) «vileza» (1, 3) , «negação» (1, 4), «escravidão» (2, 4). A escravidão que está generalizada abrange implicitamente o oorpo, o espírito, a vida social, política e económica.

O tempo é, no poema Data, o tempo do comportamento humano no mundo actual denunciado. O único verbo - matar (2, 3) - está no presente durativo e tem como objecto directo o sujeito da denúncia - implicitamente a autora é quem ousa denunciar a violência.

3. Agonia, morte

A agonia e a morte perpassam em quase todos os poemas de Grades. Quatro poemas - Carta aos amigos mortos (18), Regresso (14), O Soldado Morto (15) e Camões e a tença (16) - concentram-se sobre este tema.

Na Carta aos Amigos Mortos, Sophia, sentindo a ausência dos amigos que morreram, mantém-se num aqui onde escollheu viver e onde terá de manter uma atitude de frontalidade e tenacidade.

              Porém aqui eu escolhi viver
              Nada me resta senão olhar de frente
              Neste pais de dor e incerteza


Sophia, embora não aceitando a «dor e incerteza» do seu país, procura salvaguardar a liberdade de escolha e a capacidade de o enfrentar sem se deixar destruir. Na sua poesia perpassa a capacidade de se comover e a de conter as emoções para se distanciar da realidade portuguesa e construir um olhar de espectador lúcido e crítico. A sua poesia é também um longo, repetido e aperfeiçoado exercício de olhar.

Os poemas Regresso e O Soldado Morto aludem com perplexidade à agonia lenta, à morte, à guerra colonial, à destruição da capacidade criadora do seu povo («a antiga linha clara e criadora»):

«Dos seus ombros desprende-se uma espera
Que dividida na tarde se dispersa»

«Porque agoniza morre e se desvia.
A antiga linha clara e criadora
Do nosso rosto voltado para o dia?»

Camões é invocado como símbolo de um povo agonizante, que nada tem a celebrar através do canto, mas a quem é exigida submissão, paciência perante a violência do país que o mata lentamente («a quem ousou mais ser que a outra gente»). A 2ª estrofe deste poema imita a 1ª quadra do soneto «Erros meus, má fortuna, amor ardente» de Camões

              Em tua perdição se conjuraram
              Calúnia desamor inveja ardente
              E sempre os inimigos sobejaram
              A quem ousou mais ser que a outra gente

A causa da perdição é sobretudo social e cívica, num país que «não nasce» e não sabe responder à dignidade a que o elevara o Poeta. Camões também é sfmbolo do passado que soube dignificar-se.
              Este pais te mata lentamente
              Pais que tu chamaste e não responde
              Pais que tu nomeias e não nasce

              Irás ao paço irás pacientemente
              Pois não te pedem canto rnas paciência

Está também implícita a realidade que já Camões denuncia no seu tempo: a falta de heróis para o seu canto (17), por ser difícil alcançar o estatuto de herói, satisfazendo as exigências de força física e interior associadas à cultura.

3.1. Pranto pelo dia de hoje
Em ti choramos os outros mortos todos
Os que forarn fuzilados em vigílias sem data
Os que perdem seu nome na sombra das cadeias

 ...

Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

             
No poema Pranto pelo dia de hoje, Sophia denuncia com firmeza a impossibilidade de verdadeiramente chorar quando vê a audácia de criar e de lutar ser destruída por artifícios e violências, traduzíveis e intraduzíveis em palavras

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruido
Por troças, por insldias, por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão sLLbtis e tão peritas
Que neln podeln sequer ser bem descritas

A destruição da capacidade criadora do povo português é uma realidade que preocupa Sophia e que justifica alguns aspectos da despersonaJização do mesmo povo, impedido de se exprimir pela violência instituída.

No poema Pátria (p. 29), depois de exaltar a beleza natural do país («por um país de luz perfeita e clara / pelo negro da terra e pelo branco do muro»), de se referir ao silêncio e miséria do povo, conclui exprimindo a dor de ver a sua pátria marcada pelo exílio

                   E o exílio se inscreve em pleno tempo

Neste mesmo poema, Sophia acumula um conjunto de metáforas relativas ao seu país, as quais sintetizam a relevância de Portugal na sua poesia, «atenta como uma antena» à realidade.

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó meu pais e meu centro

4. As formas de injustiça
Sophia enumera e denuncia inúmeras injustiças que têm a sua justificação e origem na violência instituída, a que mais tarde chamará «degradação da vida que a direita pratica» (18) .
4.1. A miséria, humilhação e escravidão
A miséria material está patente no breve poema Lusitânia: os pescadores vivem «de pouco pão e de luar». Sophia é bastante .breve, neste poema, na denúncia desta forma de miséria. Prefere deter-se demoradamente no canto da miséria moral, filtrada pela humilhação e condicionada pela escravidão social

                 
  ...em frente desta gente
                   Ignorada
e pisada
                   Como a pedra do chão
                   E mais do que a pedra
                   Humilhada
e calcada
                                
 (Esta Gente, p. 57-58)

Nestes versos sintetiza-se um processo lento de violência que se arrasta na gente portuguesa, deixando marcas visíveis de extrema humilhação. A acumulação intencional de adjectivos pertencentes a campos semânticos cujo denominador comum é a humihação - ignorada, pisada, humilhada e calcada - é reforçada por duas comparações gradativas ascendentes - «como a pedra do chão / «e mais do que a pedra». Convém notar que Sophia encara sempre de frente esta e todas as formas de injustiça, numa atitude de atenção e de força combativa.

Um idêntico processo de impregnação se realiza no plano da miséria moral, do sofrimento silencioso e da paciência submissa

                   
Pelos rostos de silêncio e de paciência
                   Que a miséria longamente desenhou
                                               
   (Pátria, p. 29)

No poema O Hospital e a Praia (pp. 27-28), Sophia alude a uma dualidade - o caminhar na praia «quase livre como um deus» / a «dor absurda e desmedida» que viu no hospital. O seu pensamento, que é fundamentalmente procura de essência e de unidade, é particularmente sensível à dualidade e ao contraste que reconhece no quotidiano, sem procurar uma explicação lógica, mantendo um constante discernimento, recorrendo, por vezes, à memória - «eu caminhei nas praias e nos campos / vi a dor absurda e desmedida» (ibid.).

O flagelo da escravidão social é referido em alguns poemas de Sophia, com uma certa amliguidade, porque a gente que é escrava sabe também por vezes mostrar força e dignidade no rosto e nas atitudes. Assim no poema «Esta gente»:

                          
Esta gente cujo rosto
                          Às vezes luminoso
                          E outras vezes tosco

                          Ora me lembra escravos
                          Ora me lembra reis

No poema intitulado Retrato de uma Princesa Desconhecida o tema da escravidão não é ambíguo porque há uma nítida oposição entre o esplendor da princesa retratada e a paciência da mão de obra escrava. Além de oposição, há uma relação de necessidade, porque nunca uma princesa pode ser tão bela e tão isenta de sofrimento e de desgaste se não se realiza o trabalho exaustivo e repetido dos escravos que sustentam uma sociedade hierarquizada, na qual as classes privilegiadas vivem de ócio e de requinte.

             
 Para que a sua espinha fosse tão direita
              E ela usasse a cabeça tão erguida
              Com uma tão simples claridade sobre a testa
              Forarn necessárias sucessivas gerações de escravos
              De corpo dobrado e grossas mãos pacientes

No poema «As pessoas sensíveis» (pp. 39-40) denunciando quem come com o trabalho dos escravos, Sophia Iembra o versículo do Génesis

                
   «Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
                   Assim nos foi imposto
                   E não:
                   «Com o suor dos outros ganharás o pão»
4.2. A traição e a podridão moral
A traição é aludida no poema A Veste dos Fariseus, a propósito do comportamento de Pilatos e dos Fariseus no juIgamento de Cristo. Trata-se de uma denúncia subtil da engrenagem do «poder que lava as mãos» e que, escondendo as suas responsabilidades, quer sempre manter uma aparência de impecabilidade e de não-comprometimento na violência que prepara. Os Fariseus em cuja veste «nem uma nódoa se via» pela sua isenção traidora são também aqueles que guiam a polícia («a polícia o perseguia / guiada pelos fariseus») e manipulam o povo («Crucificai-o depressa / lhe pedia toda a gente I guiada por Fariseus»).

Sophia aproveita a alusão bíblica para fazer uma alegoria do poder que procura destruir quem recusa a violência e acaba também por ser atraiçoado pelos amigos

                   
Era um Cristo sem poder
                   Sem espada e sem riqueza
                   Seus amigos o negavam (pp. 39-40)

A autora recorre com frequência à Bíblia para introduzir alegorias e símbolos que remetam para valores permanentes, como a justiça e a procura de autenticidade. Por isso, no mesmo poema dirige uma invectiva aos «vendihões do templo» que na sua falta de autenticidade, constroem «grandes estátuas balofas e pesadas» e vivem da ciência dualista que mistura devoção e procura consciente de proveito:

                  
 Ó cheios de de devoção e de proveito
                   Perdoai-lhes Senhor
                   Porque eles sabem o que fazem

Sophia enumera veladamente alguns artifícios humanos que ocorrem na cidade, no mundo moderno e que começam a invadir-nos:

              
Há um murmúrio de combinações
              Uma telegrafia
              Sem gestos sem sinais sem fios
              
O mal compra o mal e ambos se entendem
              Compram
e vendem

A podridão e a degradação são detectadas frequentes vezes pela sua atenção, ao longo da sua obra (19). O símbolo do abutre associa implicitamente o artifício, o gosto da podridão e a degradação

              
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
              A podridão lhe agrada e seus discursos
              Têm o dom de tornar as almas mais pequenas (p. 41)
5. A Procura de Justiça e de Verdade

A Justiça e a Verdade não são, no pensamento de Sophia, um ponto de chegada, mas um percurso permanente de quem procura eliminar a injustiça e a mentira do comportamento humano, cujos valores estão sempre a mudar, inserido na engrenagem da violência que vai perpetrando ao longo dos séculos.

A procura de Justiça é um combate permanente para quem ousa enfrentar as forças destrutivas instaladas no interior do homem, na sociedade e no poder. A positividade de Sophia manifesta-se no incentivo de lutar sem violência, com força interior, traduzida em actos, para intervir na vida do seu país. Vejamos o que nos diz o poema Esta Gente (pp. 57-58) .

Esta gente...
Faz renascer meu gosto
de Iuta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
E em frente desta gente...
Meu canto se renova
e recomeço a busca
dum pais liberto
Duma vida limpa
e dum tempo justo

Os valores liberdade, nitidez/limpidez e justiça pertencem à esfera da luta num «país ocupado» «cheio de mágoa», na «vida suja, hostil inutilmente gasta» da cidade impregnada de injustiças. País, vida e tempo são convergentes para se deixarem transformar positivamente através da luta e do combate pela justiça. Os inimigos estão simbolizados nos animais portadores de morte e podridão - o abutre e o milhafre -, de viscosidade traiçoeira e mortífera - a cobra - e de sujidade.
O risco que envolve a aventura deste combate, de quem «vive e canta no mau tempo», está presente na alegoria da procelária que

«não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento»
(Procelária, pp. 53.54)

 «voa firm e certa como bala»
(Ibidem)
           

A própria autora, no final do mesmo poema, considera a procelária como a imagem justa de quem ousa lutar arriscando-se permanentemente a ser destruído

             «Por isso me parece imagem justa
              Para quem vive
e canta no mau tempo»
             
(Ibidem)

A justiça como tema de reflexão, como prática realizada por uma heroína popular do Alentejo e como busca contínua, está admiravelmente sintetizada no poema Catarina Eufémia (vide também in Dual, p. 75) cujo primeiro verso tem um carácter didáctico e imediatamente introduz o discurso dirigido a Catarina

              «O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
              E eu penso nesse instante em que ficaste exposta...
              estavas grávida porém não recuaste
              Porque a tua lição é esta: fazer frente»

Todo o poema desenvolve a sua lição de intrepidez, de superioridade de espírito em relação ao comum das mulheres ( «não ficaste em casa a cozinhar intrigas»), a recusa da manipulação, da calúnia no momento da luta, a sua «inocência frontal que não recua». A figura e a lição de Catarina insere-se na escassa tradição dos que lutam sem violência, para restabelecerem a justiça; é incentivo para continuar a procurar a justiça. Daí a seguinte conclusão do poema

«Antígona poisa a sua mão sobre o teu ombro no instante [em que morreste
E a busca da justiça continua» .

Intrepidez envolve tarnbém a eliminação do abuso, da mentira e, implicitamente, a procura de verdade, não revelada, mas adquirida lentamente através da luta pela justiça. Encontramos referências em fragmentos do poema Catilina (p. 11), por exemplo:

                  
 Caminho sem medo e sem mentira

 6. A coerência marginalizada
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque ou outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
          
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não

Utilizando paralelismo de construção, estabelece a oposição entre o comportamento colectivo («os outros» ) e o comportamento raro de quem procura coerência entre palavras e actos.

O espaço mais vasto do poema é, logicamente, o do comportamento da maioria, sendo a minoria («tu» ) a dizer não ao culto da aparência, à falsa virtude (20) , ao medo, à podridão moral disfarçada, à submissão injusta, ao aviltamento de se comprar e de se vender, ao artifício hábil, à excessiva autoprotecção, ao abuso do cálculo nos actos.

Todo o poema está impregnado de valores morais, que analisámos, por exemplo, na figura de «Crsto», e também de Catarina Eufémia; esses valores postos em prática por uma escassa minoria, por vezes uma pessoa isolada, que põe na base da sua luta a crucial procura da eliminação progressiva da violência no contexto social e culturral em que vive. Esta parece-nos também ser o centro da procura de Sophia de Mello Breyner.

A introdução e o conteúdo deste artigo confirmam a afirmação de Sophia que «toda a poesia é uma moral».

A poesia de Sophia é duplamente formativa porque ajuda o leitor a tomar consciência da realidade social e política, e a procurar formas de luta que procuram não redobrar as cadeias da violência mas eliminá-la progressivamente.

O ponto de partida é a frontalidade de ser, a coragem de ser, a integridade moral que irá Iprojoctar-se na vida social. Sendo a poesia, para Sophia de Mello Breyner, a expressão da «inteireza, do ser, o de estar na terra» (21), são possíveis outras dimensões de leitura diferentes da envolvência moral, no plano individual e social.

«Porque propõe ao homem a verdade e a inteireza do seu estar na terra toda a poesia é revolucionária» (22) .

NOTAS

(1) Publicações D. Quixote, edição proibida pela censura.
(2) 3ª ed., Moraes, Lisboa, pp. 233-235.
(3) Sophia, Antologia, 3ª ed., Moraes, Lisboa, pp. 233-234.
(4) lbid., Antologia, 3ª ed., Moraes, Lisboa, p. 234.
(5) lbid., Antologia, 3.. ed., Moraes, Lisboa, p. 234.
(6) In «Cantar», Grades, pp. 45-46.
(7) In «Esta gente», ibid., p. 58.
(8) In Livro Sexto, 4ª ed., Moraes, Lisboa, p. 25.
(9) Cfr. o poema «Marinheiro sem Mar», em O Tempo Dividido.
(10) Grades, p.13.
(11) Ibid., p. 35.
(12) Sophia traduziu O Purgatório de Dante.
(13) Grades, p. 25.
(14) lbid., p. 19.
(15) lbid., p. 15.
(16) lbid., pp. 71-72.
(17) Cfr. finais do Canto.
(18) «Nestes últimos tempos», in O Nome das Coisas, p. 71.
(19) Cfr. por exemplo, «Marinheiro Sem Mar» in Mar Novo.
(20) Cfr. «As vestes dos Fariseus», Grades.
(21) In O Nome das Coisas, p. 78.
(22) Ibid., p. 79.