RINALDO DE FERNANDES - UM LIVRO DE HOMENAGEM A "OS SERTÕES"

Depoimento
Os cem anos da publicação de “Os Sertões” são uma excelente data para lançar um livro sobre o texto de Euclides da Cunha. O processo de elaboração de “O Clarim e a Oração: cem anos de ‘Os Sertões’”, livro lançado em agosto último (São Paulo, Geração Editorial, 2002), do qual sou o organizador, foi trabalhoso – e muito gratificante. Primeiro eu procurei saber quais as pessoas que estavam trabalhando com Euclides. Isso só em certo sentido foi fácil, levando em consideração o fato de eu estar fazendo uma pesquisa relacionada ao escritor para a minha tese de doutorado (a qual versou sobre “A guerra do fim do mundo”, o romance do peruano Mario Vargas Llosa sobre Canudos e que teve como base “Os Sertões”). Em seguida, tendo em vista a importância de Euclides para a cultura brasileira, pensei em chamar nomes ilustres do jornalismo, da ficção, da poesia e do ensaísmo contemporâneo que pudessem escrever sobre “Os Sertões”. Fiz os contatos e me entusiasmei de imediato ao perceber que as pessoas com quem eu falava tinham uma grande disposição para produzir textos sobre o livro de Euclides. O resultado foi muito bom – a grande maioria dos colaboradores me enviaram trabalhos inéditos que, em certos casos, terminam lançando novas luzes sobre “Os Sertões”.

“O Clarim e a Oração” abre com um artigo de Ariano Suassuna (“Euclydes da Cunha, Canudos e o Exército”). Traz textos dos escritores Arturo Gouveia de Araújo e Moacyr Scliar; dos jornalistas Assis Ângelo, Percival de Souza e Roberto Pompeu de Toledo. Uma seção do livro contém poemas sobre Euclides e/ou “Os Sertões” de Adriano Espínola, Alberto da Cunha Melo, Augusto de Campos, José Nêumanne Pinto, Marcus Accioly, Mário Chamie, Ruy Espinheira Filho e Thiago de Mello. Consta ainda do livro, além de uma detalhada cronologia da vida e obra de Euclides da Cunha, uma série de entrevistas que os jornalistas Sandra Moura e Suênio Campos de Lucena fizeram com moradores de Canudos e região (foram entrevistados, entre outros, os já quase lendários Ioiô da Professora, João de Régis e Antônio de Isabel, que chegou a ver o Conselheiro).

São ensaios que integram “O Clarim e a Oração”: “‘Os Sertões’: modernidade e atualidade”, de Maria Alzira Brum Lemos; “Euclides e ‘Os Sertões’: entre a literatura e a história”, de Edgar Salvadori de Decca; “As mulheres de ‘Os Sertões’”, de José Calasans; “A construção do discurso científico de Euclides da Cunha: análise da geologia em ‘Os Sertões’”, de José Carlos Barreto de Santana; “Arqueologia de um livro-monumento: ‘Os Sertões’ sob o ponto de vista da memória social”, de Regina Abreu; “A cidade sagrada”, de Benedito Nunes; “Declives da Cunha”, de Flávio R. Kothe; “O lu(g)ar dos sertões”, de Gilberto Mendonça Teles; “Da transgermanização de Euclides: uma abordagem preliminar”, de Haroldo de Campos; “‘Os Sertões’: historiografia e esteticidade”, de Hildeberto Barbosa Filho; “Canudos – o marco amargo da memória”, de Lourival Holanda; “Presença das mulheres em Canudos”, de Luzilá Gonçalves Ferreira; “Cruzar a linha negra e desfazer a oposição”, de Miriam V. Gárate; “Euclides: ruínas e identidade nacional”, de Luiz Costa Lima; “Euclides e os outros”, de Regina Zilberman; e “Euclides da Cunha no vale da morte”, do Prof. Roberto Ventura (que infelizmente faleceu em agosto último sem ver o livro).

A essa altura, depois de três meses do lançamento nacional, e tendo em vista as várias manifestações positivas que o livro tem recebido de intelectuais e acadêmicos brasileiros, acho que “O Clarim e a Oração” termina sendo uma boa contribuição para os estudos euclidianos.

É sempre bom lembrar, por outro lado, que “Os Sertões”, em certos aspectos, tem muito a ver com a realidade atual do Brasil. A importância do livro reside sobretudo no fato de Euclides ter focalizado de perto o problema das nossas disparidades sociais, regionais, ainda agora bastante visíveis. Euclides não só denunciou um crime (o do Exército contra os canudenses), mas fixou um problema que está na formação da sociedade brasileira – o do desprezo histórico às populações interioranas do país, que ainda agora se deslocam para virar miseráveis nas grandes cidades. E esse fluxo de pessoas para os grandes centros urbanos (que se intensificou desde o início da segunda metade do séc. XX) é, em grande medida, fruto do modelo econômico, da falta de uma reforma agrária.

Se se formula a pergunta: o que faz com que “Os Sertões” tenha status de literatura e, mais, seja aclamado em seus cem anos como uma das mais importantes obras da cultura brasileira? A resposta é: o estilo de Euclides. Sobre o estilo euclidiano já falaram em “jogo antitético”, em “barroco científico”, etc. É visível em “Os Sertões” uma mistura dos gêneros literários (o épico, o lírico e o dramático). Além disso, o esforço de Euclides em decifrar aspectos fundamentais da nossa nacionalidade é um atributo literário de imenso valor. Um outro fator é o da intertextualidade. Ou seja, a grande massa de informações com as quais Euclides trabalha no livro, apoiando-se amplamente nas teorias do seu tempo (algumas delas hoje já reconsideradas). Citando Walnice Nogueira Galvão: “Em A Terra, são mobilizados peritos em geologia, em meteorologia, em botânica, em zoologia, em física, em química. Em O Homem, o mais polêmico e que gera toda espécie de conjecturas, são passados em revista escritos de etnologia, de história da colonização, de folclore, de psiquiatria, de neurologia, de sociologia. Na parte d’A Luta, o autor recorre não somente a suas próprias reportagens e anotações em cadernetas de campo, mas também aos registros de outros correspondentes, às ordens do dia do Exército, aos relatórios de governo”.

A Guerra de Canudos (o leitor de “O Clarim e a Oração” terá um bom resgate dos fatos com a excelente reportagem de Roberto Pompeu de Toledo intitulada “O legado do Conselheiro: cem anos depois, Canudos é uma ferida e um emblema do Brasil”, que saiu primeiro na Veja em 1997, quando dos cem anos da guerra, e agora vem publicada em livro) – a Guerra de Canudos, que ocorreu entre 1896 e 1897 no interior da Bahia, com quatro expedições militares contra o arraial fundado por Antônio Conselheiro, foi um dos episódios mais sangrentos da nossa história. Ela se dá no momento inicial da República, tornando-se um conflito que revela bem o lado violento da modernidade. Euclides, em “Os Sertões”, elabora muito bem a “inversão de papéis” (aspecto que Roberto Ventura comenta com brilho em seu ensaio que consta de “O Clarim e a Oração”). Ou seja, em certos momentos Euclides caracteriza o Exército como bárbaro e os jagunços como civilizados. Assim, a importância de “Os Sertões” está ainda no fato de ser uma obra que abre o séc. XX (foi publicada em dezembro de 1902) fazendo uma das mais importantes interpretações do Brasil a partir da realidade específica do sertão.

Uma pergunta que se costuma fazer é: sem o texto de Euclides, a Guerra de Canudos ganharia o alcance que teve? A resposta: é provável que não. O livro de Euclides, por sua construção, por sua qualidade literária, terminou fazendo com que a Guerra de Canudos permanecesse viva, permanentemente lembrada, amplamente discutida. De fato, o alcance do episódio foi muito maior com o relato agudo de Euclides. Se lembrarmos do Contestado, por exemplo, veremos que não houve um “livro vingador”, uma obra com força literária que fizesse com que esse episódio – tão violento quanto o de Canudos – permanecesse vivo como o conflito no interior da Bahia relatado por Euclides. De qualquer forma, a associação mais nítida que se tem feito de Canudos é mesmo com o Contestado, levante que se iniciou em 1912 e foi até 1916 na região Sul (Santa Catarina/Paraná). O líder desse levante, o profeta/curandeiro Miguel Lucena Boaventura, que adotou o nome de José Maria, tinha certas semelhanças com o Conselheiro. O Contestado e Canudos têm pontos parecidos – condenação à República, fundação de uma cidade santa, etc. Um e outro, fundados em bases messiânicas, tiveram como raiz problemas de natureza econômica e política. Mas, repito, o Contestado não teve o Euclides que merecia.

E como definir “Os Sertões” em termos de gênero? Nesse problema de classificação da obra há pelo menos três posições. Há aqueles que acham, como o historiador da literatura Alfredo Bosi, que não se deve enquadrar o livro em “determinado gênero”, já que “a abertura a mais de uma perspectiva é o modo próprio de enfrentá-lo”. Há quem viu, caso de Afrânio Coutinho, o texto euclidiano como “obra de ficção”. Há ainda aqueles, como Massaud Moisés, que entendem como “cômoda” a posição de não enfrentar a questão da classificação da obra – daí dizer que o livro se trata de um “ensaio recheado de elementos estéticos e literários” (em “O Clarim e a Oração” há um ensaio consistente do crítico paraibano Hildeberto Barbosa Filho sobre o problema da “esteticidade” do livro). Fico com a opinião de Bosi – é a mais coerente, é a que mais atende à natureza do livro. Isso porque a obra permite, efetivamente, várias entradas. Ela acata leituras a partir de vários pontos de vista. Vejo, por outro lado, que a leitura do livro como obra literária (ou pelo menos como “artefato verbal”, para usar uma expressão de Hayden White, historiador norte-americano) tem gerado bons trabalhos. Entre os bons ensaístas da questão literária de “Os Sertões”, aponto Roberto Ventura, Luiz Costa Lima, Walnice Nogueira Galvão, Leopoldo Bernucci e Berthold Zilly. A esse respeito, consta de “O Clarim e a Oração” uma lista de 60 trabalhos que, acredito, estão entre os mais significativos sobre “Os Sertões” (trabalhos que, evidentemente, se inserem nas várias perspectivas de leitura do livro).

Lembremos rapidamente de um livro de ficção baseado em “Os Sertões” propondo uma última pergunta: afinal, como Mario Vargas Llosa traduziu Canudos em seu romance “A guerra do fim do mundo”, de l981? Bem, a resposta aqui, sem a pretensão de ser definitiva, é também rápida: Vargas Llosa não decifrou tão bem o sentido da guerra como Euclides da Cunha. Ele viu mais “fanatismos” de todos os lados (os quais curiosamente se equivalem no seu romance) como causa do conflito. Entendo isso como uma redução da História. As causas da guerra têm raiz na formação da sociedade brasileira. Contudo, o livro de Vargas Llosa não deixa de ter um rico diálogo com “Os Sertões”. Mais detalhes dessa discussão estão no meu ensaio “´Os Sertões` na leitura de Mario Vargas Llosa: quatro personagens de ´La guerra del fin del mundo`”, que se encontra no livro que organizei.

Convido-o, assim, para um encontro com “O Clarim e a Oração”, que, em se propondo ser uma homenagem, e com as várias manifestações favoráveis que vem recebendo, termina sendo uma contribuição na forma de uma leitura plural de um dos principais monumentos da cultura brasileira.

2 de dezembro de 2002
(exatos 100 anos da publicação de “Os Sertões”)