DECLINAÇÕES


CURA-NOS

Cura-nos, Senhor
do temor e da incredulidade
da cegueira e da desesperação
da tristeza sem causa e do assombramento
do amor e das saudades

livra-nos pino do dia
em que te não esperamos
e pesada e inepta vai a alma

e que a asa da tua madrugada
nos acorde para o trabalho da fé
e a hora da compaixão que não tem hora


NATAL

entrai, irmãos, nas portas deste dia santo
o Deus-Medusa tornou-se o Deus-Menino
o Nome tornou-se o Filho,
a Imagem, a Glosa-Ícone

entrai com os pastores
e os Magos,
contraponde à obscuridade da noite
do coração
as visões dos vossos votos imperfeitos

entrai na aura deste dia
que como o de Páscoa
é já êxodo:
impossível apropriarmo-nos de Deus

dê-nos o Invisível
a graça de admirar
de fazer cantar a alma
e de voltar ao caminho
para acolher a Imagem feita carne
no meio de nós


EXPECTAÇÃO

abre os nossos sentidos, Deus
à palavra nova que corre do mundo da promessa
e toca o lume da nossa expectação

convoca o nosso luto e as nossas energias
para o monte onde sopra o vento da decisão
em que é preciso dar um nome
ao mal e à dor do mundo
afogado no poço sem regresso dos exílios

abre-nos, ó Fogo,
a via do abismo do Diferente e da Piedade,
tu que presides às fulgurações e aos paradigmas
e nos comunicaste o dom da criação
e do presente indemne

abre o nosso espaço de experiência
ao fogo da inquietude que dialoga e que fulgura

e que desta liça se abra em nós um espaço
para o acolhimento do Sopro
que cavalga o tempo redimido


SALMO DE ADVENTO

rasgue-se o céu, o teu olhar nos cubra
rodem os portais esquecidos e as sebes

secaram de excessivas as fontes do silêncio
só o desejo sai ao mar com algum lume a bordo

a mais estão as luzes alcandoradas
se para apagar as brasas deste chão se arvoram

desçam os teus barcos os rios do amargor
cegam-nos de evidência pântanos e vórtices

exorcizemos a impostura da língua
e as palavras amestradas que não andam

dá-nos o dom do seminal, não do sacrifício
que até os deuses compra e a nós desculpa

baste à vida como cais o limiar
e a intensidade dos afectos que responda à Voz

altere-nos o largo do dom e da misericórdia
que o rocio da noite que é a esperança nos afague

rasgue-se o tempo e o teu dom nos ritme
na dobra do Evangelho vigiamos: vem!

daremos a esta hora o nome: Expectação
e a noite e o sal em comum partilharemos

a sentinela que precede a luz e a epifania
nos disponha a viver na noite vendo o dia

fique-nos da tua passagem o traço e a cinza
e a crença de que o vazio é prenhe e habitado

de apurar o ouvido e os afectos
se pressente a nascente só da fé sabida

se perdemos a memória das feridas
como aguardaremos a face da justiça que caminha?

confirme o teu Anjo os vestígios
de mundos que os batedores do sopro prenunciam

que a flor da amendoeira aqueça esta vigília
e preludie o fim do inverno e a crueldade

entremos no Jardim como num barco
hão-de levar ao Rosto os poços visitados


DA PESCA DA NOITE E DA ALVA

Deus, a nossa vida conhece-te
da pesca da noite e da pesca de alva
da passagem do anjo que ora é dor
ora júbilo

converte a parte em nós
que é obra do desejo em Amor
transforma o que em nós é tolerância
em hospitalidade
e que o nosso devir acolha o teu advir

que acolhamos o arado da Palavra, vigilantes
e que o Espírito de fortaleza nos ensine
o abandono no amor
e a arte da passagem

>>>>segue>>>>>

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José Augusto Mourão é dominicano, semiólogo, professor na Universidade Nova de Lisboa (DCC)