José Augusto Mourão

Ciência e religião: encontros e desencontros

A selva em que reina Pan

 A cultura é uma invenção do homem para curar o medo diante do aspecto primário da vida, aquilo a que Ortega chama a selva em que reina Pan. O homem inventou os seus mitos, o seu mundo de formas para tentar preservar a unidade do que está em baixo e do que está em cima, aquilo a que Raimundo Lúlio chama o “omnia in unum”. Já os pré-socráticos elaboram a primeira teologia racional, assimilando Deus com a Causa primeira, Causa entendida ainda como Causa material: a Água de Tales, o Fogo-Logos de Heraclito, o Ar de Anaximandro e de Diógenes de Apolónia (cf. As Nuves de Aristófanes). No século V a teologia é já uma ciência, como se pode ver em Platão e particularmente no Timeu ou nas Leis (1. X). Esta teologia vem ligada a um sistema astronómico e a uma doutrina do movimento: a demonstração da existência de Deus é um exercício da razão pura que pode e deve transformar-se em piedade, mas que, em si mesma, é da ordem da ciência e não da religião.  Já se disse que a religião era uma ilusão, uma ficção que salva. Recentemente, Dawkins, o biólogo que escreveu “O Gene Egoísta” ou “O Relojoeiro Cego”, escreveu “The God Delusion” que é uma defesa do ateísmo. Um desastre, porque presta um mau serviço à reflexão sobre a lugar da religião na sociedade contemporânea e à reflexão sobre a legitimidade epistémica e ética das crenças religiosas. Há, fundamentalmente duas visões da ciências: uma visão cientista e uma visão pragmática. A ciência é cientificamente justificável mas moralmente neutra, por isso a qualidade da ciência nada diz da sua qualidade moral. A ciência tem um pressuposto moral favorável porque ela é a verdade e que a verdade é melhor que o obscurantismo. O que divide os que acreditam no céu e os que não acreditam nele. Claro que podemos separar o sagrado do profano e restituir as coisas ao profano. O “sagrado” subtrai-se ao uso que fazemos das coisas, quando compramos, vendemos, emprestamos, damos, pomos ao serviço de. Aquilo que é “consagrado” está fora do direito humano. Já aquilo que é profano é algo que foi restituído “ao livre jogo dos homens” (Agamben). Até pode acontecer que as escolas religiosas sejam intoleráveis porque produzem estranheza e ódios religiosos. Perguntar o que distingue a crença em Deus da crença nos OVNIS é não saber que a crença e o saber não são a mesma coisa. Mas nada justifica hoje o encarniçamento de um resto que se diz ateu (M. Onfray). Perguntaram a R. Girard como se pode acreditar na ciência e em Deus ao mesmo tempo. Ele respondeu assim: “Acreditar em Deus não implica rejeitar a objectividade. A minha crença em Deus faz de mim um crente na objectividade de mundo. O que quero dizer é que no que toca às questões ditas importantes, opero ainda no quadro duma epistemologia tomista, que considera as coisas como reais e vê Deus como o garante desta realidade. Eu vejo as obras literárias como reflexões sobre as verdadeiras relações que têm curso na sociedade, e utilizei-as como instrumentos de observação científicos”[1]. O domínio do saber científico não elimina os velhos mitos que nos contam o começo das coisas e dos seres. Nota-se, porém, que o pensamento religioso de Israel, mesmo comportando vestígios de cosmovisões vizinhas, se desvia do seu imanentismo de base, tido como idolátrico. O Deus de Israel não tem um rosto do mundo, embora Deus só seja Deus na relação com o criado (M. Eckhart), o Deus de Israel é, “não um rosto do mundo, mas o mundo como rosto” (Remi Brague). A posição de Leão XIII, na Providentissimus Deus (1894) é a mesma que assumirá João Paulo II: verdade escriturística e verdade científica não podem contradizer-se; se a Bíblia parece contradita pela ciência, é porque foi mal interpretada; não é ela que é posta em causa mas uma das suas interpretações. Por trás desta questão estão Tomás de Aquino e Averróis. De resto, João Paulo II na Fides et Ratio lamenta as interferências das autoridades religiosas no curso do desenvolvimento do conhecimento científico.

[1]  René Girard, Les Origines de la Culture, Desclée de  Brouwer, 2004, p. 200.

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José Augusto Mourão, dominicano, escritor, é professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, presidente do ISTA - Instituto S. Tomás de Aquino, e coordenador do TriploV.