José Augusto Mourão

Ciência e religião: encontros e desencontros

A religião e os seus actores

Se algo prova bem que o homem é um ser essencialmente social, ou, como dizia Aristóteles, um animal político, é que ele tenha feito da religião uma das instituições mais perviventes da humanidade. As religiões da humanidade, tanto as grandes religiões universais como as religiões confinadas nos limites de uma civilização determinada (v.g. a religião greco-romana) e as religiões dos povos ditos primitivos contêm um núcleo comum que se manifesta através de mitos e de formas culturais fundamentais. É na união universal entre religião e cultura, entre religião e governo da sociedade que a religião se torna realmente presente e tangível, e é nesse conjunção que a cultura e a ordem social adquirem uma força que se impõe ao homem. Não se conhece religião sem instituições (rituais, sacramentais, simbólicas, canónicas). A presença da religião e das instituições na construção das primeiras forma de civilização conhecidas, e em geral, na história de todas as culturas do mundo, é incontestável. A história das religiões comporta dois aspectos essenciais: as religiões enquanto démarche significada por ritos e por celebrações; o sentimento religioso analisado por numerosos autores como aquilo que constitui o homo religiosus compreendido através das suas manifestações[1]. De facto, e de modo geral, atribui-se uma real universalidade à ideia do homo religiosus e ao carácter unívoco da sua experiência: a experiência do sagrado. A teoria evolucionista na ciência das religiões, que se colocava na hipótese de uma evolução ascendente que ia do animismo ao monoteísmo, não conseguiu impor-se. As várias religiões partilham, por toda a parte, a crença na alma, a crença nos espíritos, a personificação da natureza, o animalismo, a crença numa força misteriosa, o culto dos antigos, o politeísmo. Para além da religião subjectiva, que tem a sua fonte na receptividade transcendental e na abertura ao Outro, o culto, enquanto forma objectiva (da oração, dos gestos, dos actos) vem contrabalançar a tendência que tem o sentimento religioso para se dissolver no inapreensível, suscitando no homem uma relação justa com Deus. É porém, enquanto fundamento da ordem jurídica e política e da cultura que a religião se torna ambígua. Não há ordem jurídica nem forma de governo que não procure fundar a sua legitimidade na religião. Por outro lado, a religião está intrinsecamente orientada para a criação de culturas (arte, poesia, música, filosofia) e para as diferentes formas de vida social.

Existe hoje entre os teólogos e os especialistas da religião um consenso para designar a finalidade e o fundamento da religião pelo termo salvação. “A religião é feita para curar os homens, isto é para que eles não se apercebam do que não vai bem”[2]. Ao lado das religiões de evasão e de salvação, abertas ao transcendente ou ao misticismo, houve sempre outras formas de agrupamentos religiosos que respondiam a preocupações terrestres de higiene, de saúde, de equilíbrio ou de curas. Os santuários do Egipto antigo, como os de Denderah, Dehir el-Bahari, Memphis eram lugares de peregrinação, dotados de instalações sanitárias, à semelhança dos asclêpieions de Epidauro e de Cós[3]. A vida coabita com a violência do desejo – o que os mitos, as religiões, Nietzsche, Freud; Girard e outros nos mostraram[4]. As religiões constituiram-se como “catarses” ou “purificações” das variantes do “mal” que são os diferentes destinos do ódio. Com efeito, o homem religioso é interpelado, ao longo da história, a purificar-se das suas manchas (que são diversas “matérias” no limite do “limpo” e do “estranho” e que remetem em última instância para o corpo maternal e para o sangue nas religiões ditas primitivas) para se purificar das abominações alimentares (no budismo, e de outro modo no judaísmo e no Islão), e a purificar-se dos seus ódios assassinos, sacrificiais ou fraticidas[5]. Uma perspectiva meramente externa (que visa explicar a religião) não vê aquilo que visa a consciência religiosa. Com efeito, a religião não visa explicar a forma da sociedade, nem a crença é o único modo de explicar a religião. A religião tem sido vista como o “ópio”, o “gemido dos oprimidos”, um instrumento de estabilização social (E. Durkheim, Max Weber) ou uma forma de dominar a contingência (H. Lübe). Para lá da salvação, porém, será necessário falar dum bem que é outra coisa que salvar e ser salvo (Platão), um bem que faz mais do que fazer bem, falando do sagrado, sem confundir a religião e a ética[6]

Não basta uma definição substantiva da religião que tem o seu centro, como R. Otto sustentava, na experiência religiosa como experiência do sagrado[7]. Uma religião é também uma maneira de se vestir, de se lavar, de se casar, de se cuidar e de pôr a mesa – uma religião comporta uma dietética, ritos, festas, procissões, peregrinações, ex-votos. A palavra latina religio é retomada pelos cristãos para definir o cristianismo como a vera religio, em oposição às falsas religiões. Os filósofos têm outra definição: “A religião é a resposta”[8]. Não há resposta sem princípio de responsabilidade: é preciso responder ao outro, diante do outro e de si. E não há responsabilidade sem juramento, sem sacramentum. Porém, não há filosofia da religião na Europa antes do século XVII (K. Feiereis). Até lá, a filosofia confundia-se com a teologia, isto é, uma teoria de Deus (dos deuses, do divino), fosse segundo o modo da recusa (em nome da liberdade e da autonomia humanas), da crítica ou da afirmação (teologia natural, deísmo). As Luzes, que nunca falam de luz, mas de Aufklärung, vão deixar de se concentrar na deidade, no Ser, no Um, para se concentrarem no homem na medida em que ele se refere à deidade. Os intelectuais começam a falar do poder da imaginação humana (Schiller, Shelley), ao tempo em que a caridade cristã se transforma em Liberdade, Igualdade, Fraternidade[9]. Ao longo do século XIX detectamos posições por ou contra a religião mas agora sob um ponto de vista empírico-científico nas suas dimensões históricas, sociológicas, psicológicas, fenomenológicas. É neste contexto que nascem as ciências religiosas. Uma forma particular desta abordagem é a filosofia da religião que retoma todos os pontos de vista anteriores. Se numa primeira fase desenvolve teses positivistas sobre a ausência de sentido dos enunciados religiosos, numa segunda fase atém-se a clarificar metodicamente os pressupostos, verificabilidade, racionalidade, justificação teórica e prática (L. Wittgenstein, A. Flew-A. MacIntyre, I. U. Dalferth).

[1] D. Hervieu-Léger, La religion pour mémoire, Cerf, Paris 1993. A. Vergote, Religion, Foi, Incroyance. Étude psychologique, P. Mardaga, Liège 1993.

[2]  Lacques Lacan, Le Triomphe de la Religion, Paris, Seuil, 2005, p. 87.

[3] R. Peel, Spiritual Healing in a scientific age, San Francisco, Harper and Row, 1987.

[4] S. Freud, Le malaise dans la culture (1930), tr. Fr. Pierre Cotet, René Lainé, Johanna Stute- Cadiot, in Oeuvres complètes, volume XVIII, PUF, 1994.

[5]  J. Kristeva, La haine et le pardon, Paris, Fayard, 2005, 369.

[6] E.Lévinas, Éthique et Infini, Dialogues avec Philippe Némi, Paris, Fayard, 1982; Of God Who Comes to Mind, Stanford University Press, 1998. Soren Kierkegaard, Concluding Unscientigfic Postcript to Philosophical Fragments, eds. Howard V. Hong e Edna H. Hong, Princepton University Press 1992,

[7] R. Otto, Le Sacré, Paris, 1949.

[8] J. Derrida, Foi et Savoir, Points, Paris, Seuil, 1996.

[9]  Richard Rorty/Gianni Vattimo, El futuro de la religión, Solidariedad, caridad, ironia, Paidós Studio 165, 2006.

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José Augusto Mourão, dominicano, escritor, é professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, presidente do ISTA - Instituto S. Tomás de Aquino, e coordenador do TriploV.