CHIOGLOSSA, A SALAMANDRA
JÚLIO CONRADO


Convidado pela minha querida amiga Maria Estela Guedes a proferir algumas palavras de apresentação alusivas ao livro que escreveu em parceria com o químico Nuno Marques Peiriço, aceitei sem pestanejar o encargo antes mesmo de formar juízo sobre o que me esperava.

Razões de velha estima pessoal muito fortes contribuiram para consumar essa negligente anuência. Anuência que cedo se transformou em fundo arrependimento, depois de compulsadas as primeiras páginas da obra, ainda em provas tipográficas. Arrependimento que fui incapaz de levar às últimas consequências - agarrar no telefone, informar a ilustre convidante da minha incompetência para opinar acerca do que desde logo me pareceu tratar-se de um universo de cobras e lagartos muito pouco literário e oferecer os meus préstimos para fazer a apresentação, em futura oportunidade, de texto mais conforme à minha órbita de interesses: romance, novela ou colectânea de poemas. Pareceu então ter-me saído na rifa um produto altamente codificado, com alguma coisa de literário, é certo, mas vagamente ligado ainda àquela área da literatura que os críticos universitários, face aos desmandos dos tipos da crítica imediata, como eu, e para que eu efectivamente perceba que entre o que eu digo e o que eles dizem existe um vácuo de conhecimento absolutamente abismal, enfatizam nomeando-a de científica: a análise textual. Outra tivesse sido a origem do convite e a recusa seria inevitável.

igamos, pois, que o ter vindo aqui, além dos motivos enunciados, começou por ser uma questão de ordem prática. O livro em causa seria publicado dentro de breves semanas. O tempo corria, célere - ou corríamos nós, céleres, contra ele. Uma negativa retardada - pior do isso, o dar o dito por não dito - era capaz de embaraçar a Maria Estela numa teia de desesperadas tentativas para encontrar a desejável solução de recurso, ou seja, o meu substituto. Ora o que eu muito sinceramente ambicionava era não causar à querida amiga embaraços desses, até porque, por dever de ofício, lido com eles com alguma frequência e sei o que custa levar a nega depois do acordo de presença confirmado. Um caso típico de desamor à primeira vista que não sendo do âmbito da História Natural tinha seguramente a ver com a ordem natural das coisas nodia mesmo remeter para o grau zero da estima uma memória tecida de saudáveis aproximações de natureza intelectual e de convívio literário.

A braços com estes constrangimentos mutantes - porque ameaçavam passar de ligeiras incomodidades psicológicas a graves preocupações existenciais - e consciente de que a imperiosa vontade de desertar encon trava pela frente um adversário de respeito que era o desejo de ser solidário num quadro em que manifestamente me apresentava vulnerável, optei por me expor às inclemências decorrentes da aceitação do convite, confiando nas minhas intuições e partindo do pressuposto de que o que se esperaria de mim seria a opinião de alguém que se desembaraça à sua maneira do efeito de estranheza provocado pela colisão com um objecto insólito. Pus-me a raciocinar: os livros andam por aí, felizmente, à solta. A liberdade de leitura é direito reconhecido constitucionalmente. Posso ler o que me der na real gana sem que ninguém tenha nada com isso. E como também não há lei que restrinja a verbalização do que me vai na alma, sou soberano da minha voz e da minha escrita para dizer se gostei, se não gostei, o porquê de ter ou não ter gostado, se me pedem ou se eu resolvo manifestar-me em relação a qualquer obra que tenha lido. Tudo isto, repito, enquanto mero sujeito da leitura, receptor, destinatário - ou designação similar que a crítica universitária já tenha inventado para designar o vulgar de Lineu leitor e que eu ainda ignore - enfim, espectador tranquilo e avulso da palavra dos outros.

O certo é que a urgência do que me foi pedido abrandou por ter sido adiado o lançamento do livro. Mas então, eu já tinha avançado tanto na leitura de Carbonários que a necessidade de levar a carta a Garcia me subjugara fatalmente. E foi o que fiz, aliás, estou a tentar fazer, minado por receios de que a matéria a tratar me exceda e me danifique a imagem mais ainda do que já está. Enfim, o adiamento trouxe um dado novo que pode evitar a catástrofe.

Se a minha exposição não for suficientemente sagaz, atrevida, suficientemente brilhante, suficientemente eficaz, suficientemente... suficiente, pode ser que isso não tenha muita importância, que não tenha, mesmo, importância alguma. Convido-vos a participar num exercício de realidade virtual. Convido-vos a entrar numa conspiração, no sentido de fazerem da minha pessoa - notoriamente uma espécie crítica, metade bancário, metade escritor, e esta segunda metade subdividida em ficcionista e crítico literário impressionista - a mentira do dia. Não ouso admitir que quem me seleccionou tenha escolhido deliberadamente o 1º de Abril para que eu pudesse salvar-me em caso de emergência. Mas a levar-se o drama ao seu máximo expoente de risco, isto é, a verificar-se, o que não é difícil, que a minha vinda a esta vetusta Casa para a finalidade que sabeis não passa de um tremendo mal-entendido só possível por beneficiar de um excesso de generosidade de que não me julgo merecedor, combinamos todos em que não estou aqui, não faço a apresentação de Carbonários, só existo virtualmente num pedacinho de papel cor-de-rosa cujo número de código é o 1. Perguntarão: onde aprendi esta arte de não estar onde se diz que estou, de não saber sequer onde fica o Museu da História Natural, de me armar em vítima para poder ser a mentira do Dia das Mentiras? Pois aprendi no próprio livro cuja apresentação me foi confiada ao ler aquela passagem em que Francisco Newton, segundo o Comércio do Porto, nunca esteve no Ateneu Comercial do Porto a proferir uma conferência no dia 29 de Maio de 1892 (como assevera o relatório do Ateneu) e sim a 30, sendo que este número 30 seria o código de reunião marcada para outro dia e lugar. Cito: «Em espaço de censura ou subversão, o discurso é simbólico. Estão a passar mensagens selectivas de leitores, só decifra o código quem possui a chave dele.». A nossa chave é o 1 do 1º de Abril, não hesitemos em recorrer a ela se a coisa der para o torto.

Antes de abrir o dossier Chioglossa, permita-se-me que deixe uma palavra de apreço ao Director do Museu de História Natural, o Professor Galopim de Carvalho, que assina o prefácio, a quem também chamam o pai dos dinossáurios, havendo, por outro lado, quem conheça os dinossáurios por «galopins». O professor Galopim prefacia este livro com a amarga serenidade daqueles que enfrentam dificuldades quotidianas esmagadoras sem nunca se renderem. O trabalho que vem desenvolvendo nesta Casa quase sem meios ao seu dispor e em que o recurso à imaginação acaba por ser o verdadeiro tesouro que garante a continuação da Obra, só poderia ser realizado por um sonhador, um criador, um ficcionista. E é-o, efectivamente, o professor Galopim, como muita gente sabe. Ele é um escritor. O que leva um homem de Ciência a tomar-se um homem de Letras é fenómeno que só ao próprio cabe iluminar, se a tanto se julgar obrigado. Na minha visão simplista destas coisas, desenho-lhe o percurso a arrostar com os preconceitos de quem propenda a zelar pelo prestígio institucional da sua área científica, cortando as amarras com outros ramos da cultura, especialmente as Letras. As Letras. Esse território habitado por gente tão inclinada aos desmandos da psique, do coração e da maledicência, avessa ao rigor e ao secretismo científicos, dada ostensivamente a sentimentalismos e refém dos mais inconcebíveis laços de ternura e das mais descontroladas emoções. E cujo objectivo primordial na vida é tagarelar. Uff! Como deve gerar anticorpos o cientista Galopim de Carvalho na pele do escritor Galopim de Carvalho, ou vice-versa! Como seu colega das Letras, alegra-me ter o Director do Museu de História Natural do nosso lado, o que aqui deixo consignado com aprazimento e comprazimento. Tagarelar faz falta e alivia que se se farta, pois não é, Professor?

Não menos raro é encontrar uma escritora - falo, claro, de Maria Estela Guedes - de quem já li excelentes ensaios, alguma poesia e estimulante literatura policial e fantástica, a escobichar em papéis velhos a génese de uma salamandra que a ela e a nós lança a toda a brida no encalço de sedutoras pegadas por caminhos onde a secura do texto contrasta com a exuberância do contexto. Reencontro inesperado, devo confessar, com uma escritora que esperava rever a explorar diferente filão temático e em diferente espectro produtivo. Reencontro inesperado, mas não chocante. Afinal já tinha assistido, em tempos, a uma conferência de Maria Estela Guedes na Associação Portuguesa de Escritores em que ela se tinha feito acompanhar por um lagarto dentro dum cabaz. Seria já o futuro Lagarto do Âmbar?

De Nuno Marques Peiriço, o químico, sei pouco, é um jovem, compete-lhe dar-se a conhecer e creio que começa a fazê-lo bem. Sei que foi aluno - e brilhante - da minha amiga Professora Raquel Gonçalves e esta fonte me basta por ora como referência e abonação.

Parece-me, pois, chegado o inevitável momento de passar à operação salamandra, depois de todo este fogo de artifício introdutório (lembro que o artifício é intrínseco à viagem em tomo do fantasma da Chioglossa e ao dia de hoje, pelo que me considero antecipadamente perdoado).

Grosso modo, Carbonários, Operação Salamandra aparece comprometido numa acção de elogio da variedade. À Macarronésia de Alice no País das Maravilhas, invocada como "terra de ricas misturas em que o imaginário hibrida com o real", corresponderá um território chamado discurso sobre a Chioglossa Lusitanica cujas surpreendentes paisagens virtuais condicionarão escritora e químico nas suas indagações a respeito do espírito e da letra daquele mesmo discurso. Fica-se a saber que a Chioglossa se chama Lusitanica «porque Bocage pensava que a salamandra só existia na Lusitânia". Quem é este Bocage? O Bocage das anedotas, como um pouco levianamente é tratado no texto o grande poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage? Não. Um primo dele, em 2° grau, ao tempo (1864) o responsável máximo pelo Museu da História Natural de Lisboa, instalado no Edifício da Escola Politécnica, este mesmo onde vocês estão e eu provavelmente também estou. Bocage , o zoólogo, mantinha ligações com os seus pares no estrangeiro, com quem permutava experiências e trocava informações e amostras das espécies e das subspécies que estavam no centro do seu labor. Bocage, o zoólogo, é autor moral deste livro; sem ele, a operação salamandra não teria encontrado autores materiais que a levassem a cabo.

Julgo evidente que, para lá das preocupações éticas subjacentes ao discurso sobre o discurso e para lá da seriedade posta na busca dos materiais, químico e escritora se divertiram à grande. Há indícios, uns mais elaborados, outros mais ténues, de que a malícia não andou arredia das tarefas de inquirição. Cito: «O espelho da verdade sempre revelou que a Branca é de Neve.» E poderia ser de outra forma? Já alguém ponderou que a Branca pudesse não ser de Neve, mas de Leite ou de Açúcar Pilé? O nosso Espelho da Verdade reconheceria legitimidade a qualquer Branca de Açúcar Pilé? Alguém se lembraria de dizer, Olha, vai ali a Branca de Leite e os Sete Anões? Não - e no entanto os nossos autores gozam que nem uns perdidos a levantar a hipótese de a Branca poder não ser de neve. É crível que sapos parteiros possam ter ido, aos pares, em peregrinação ao Bom Jesus de Braga? Não e não, irra! Pois a escritora e o químico, decalcando ou não palavras de Boscá, jogam alegremente com esse sentido figurado. Cito: «Foi no dia da romaria que Boscá explorou S. Julien de Tuy, à saída de Portugal, e sobretudo à despedida do Bom Jesus de Braga, em cujo escadório viu os sapos parteiros aos pares. Iam certamente rezar. Andam sempre aos pares, diz ele. Diz ele que foi nos patamares do escadório que melhor observou este costume dos sapos parteiros, apanhou-os em plena peregrinação.» Em suma: peregrinos que vão rezar é a imagem verdadeiramente peregrina dos sapos parteiros que faz deles, sem apelo nem agravo, umas santas almas. Agora uma de inspiração alquímica. Cito: «A história vai acabar nas antigas minas de ouro romanas de Valongo - os alquimistas não só sabiam que nem tudo o que luz é ouro, como fabricavam o ouro dos tolos". Sabedoria das nações? Alfinetada nos alquimistas? Perdoe-se-nos a ousadia da afirmação: os investigadores-autores brincam mesmo em serviço. Só que, ao contrário do que é costume, não se distraem nem são negligentes.

Brincadeiras e ironias à parte, os alquimistas vão estar no cerne de muitas das especulações vertidas para o texto. Das associações do discurso alquimista e do vocabulário da Carbonária à caprichosa itinerância da salamandra se ocupa boa parte da malha relacional do livro. A leitura de um naco de prosa mergulhado na mais desenxovalhada maquinação alquímica dar-vos-á a medida do alcance do braço político no seio dos naturalistas do tempo do Bocage zoólogo. Diz-se, textualmente:

«Aqui e ali, há irrupção da simbólica alquimista, o que identifica a maçonaria. A salamandra já por si tem carga esotérica muito forte, ela é híbrida de quente e frio, seco e húmido, água e fogo. Segundo Fulcanelli, a palavra salamandra significa sal de estábulo, sal de rocha ou sal de gruta. Em suma, sal, e o sal, mesmo quando é apenas verbo, pode queimar. Manifestação do fogo, a salamandra vive nele e extingue-o, por ser flama de água. Para os alquimistas, representa a pedra fixada ao rubro e era também o nome de um dos mais importantes elementos da obra, o enxofre. Alguém porá uma pitada de S na língua da salamandra, o que torna imperioso o seu aparecimento no Ribeiro do Inferno. Depois, já não espanta que de carbonária se transmute em rosa. Rosa é aliás o nome do descobridor dela, e não só Rosa como Rosa de Carvalho e ainda José Maria - nada de mais simbólico na linguagem botânica dos carbonários de um lado e de mais híbrido de outro.

A gruta é espaço habitual de montanha. Montanha foi a organização carbonária criada por Luz de Almeida. Havia sectores ligados a operações de montanha, e a Chioglossa é classificada como animal montícola.

Então, se alguém disser que foi observada em algum campo de batatas, o mais natural é essa pessoa estar a querer endrominar-nos, mas com a verdade - ela está a ser criada artificialmente numa quinta.

Em vez de gruta, os naturalistas optaram pela mina, e o que há na mina a não ser a matéria-prima da obra alquímica? A salamandra é o enxofre, tal como o ferro simboliza Marte,deus da guerra. E onde o ouro da trarismutação? No volfrâmio das minas achavam-se pepitas de ouro, mas a Opus Magnum em que estes homens laboram é a República.

Talvez só por deslumbrada inocência, Bocage vai repetir que a Chioglossa apresenta duas riscas no dorso pintadas com pó de ouro, e hoje ela é chamada salamandra dourada, quando antes não tinha nome vulgar (nome desconhecido do vulgo, inominada; inominável é o terrível ou estranho à experiência quotidiana, estrangeiro) ou a designavam por salamandra preta, por ser carvoeira e fusca (Spelerpes fuscus). A imagem do pó de ouro subsistirá como carácter dominante em várias descrições subsequentes. Num desenho recente dela, a cor é a da encarnação, Rosa."

Que a leitura um pouco longa do texto extractado vos possa ter sugerido um expediente da minha parte para não ter de me pronunciar sobre tão incandescente mistério, ou não tivesse a salamandra uma tão grande mítica com o fogo, é responsabilidade que não enjeito. Nenhuma palavra, conceito ou síntese eu encontraria que melhor suportasse aquilo que os autores quiseram transmitir. Dar-lhes a palavra foi cómodo para mim, que não tive de hibridar palavras às riscas verdes, ou vermelhas, feridas de artificiosidade mutante, susceptíveis de serem consideradas adições ao discurso pelas pessoas que me escutam; e para essas mesmas pessoas, que ficaram indiscutivelmente mais bem servidas, ouvindo o discurso natural.

Mas é do discurso natural que o livro faz o.elogio? Não, é do discurso extraordinário, do discurso da ciência extraordinária nas suas fintas persistentes às investidas do aparelho escolástico defensor da pureza da História Natural. Uma digressão de leitura sem dúvida cativante mas arrasadora obrigou o não-iniciado em ciência extraordinária a passar por atribulações sem conto para ficar minimamente a par das projecções históricas, filosóficas, políticas e científicas que o passado da enigmática salamandra suscita. O bicho que foi um belo dia descrito como «graciosa, pequena e delicada" não se sabe onde pára hoje em dia. Há terríveis advertências no livro. Ao chegarmos à tábua antológica somos confrontados com o seguinte aviso: «Como ler a antologia sem se tornar um anarquista". A história da Chioglossa, com efeito, comporta um caleidoscópio de imagens e conteúdos, qual deles o mais subversivo: conotações políticas, sociais, científicas; dúvidas existenciais e geográficas; suculentas controvérsias e cumplicidades entre oficiais do mesmo ofício, que pregam partidas uns aos outros e se insultam quando não cultivam o elogio mútuo, mas irmanados na luta pelo que pensam ser a verdade sobre a Chioglossa e no despiste da vigilância dos guardiões da ciência normal; viagens imaginárias aos esquemas mentais e operacionais que se oferecem à voracidade dos investigadores; excursos através dos jardins onde a crença dos alquimistas na sujeição da vida à simbólica dos números é pública e notória; acesso a labirintos conspirativos onde não raro se perpetra o ataque à bomba e a supressão física; deambulações inóspitos ou esquisitos por onde o híbrido possa ter-se insinuado, sejam os arredores de Coimbra, o Bom Jesus de Braga, as matas do Buçaco, a distante Galiza ou certo Alentejo setentrional, uma trajectória que os autores convenientemente diabolizam.

E ainda: o tu-cá-tu-Iá com a alta política internacional, sendo o mapa cor-de-rosa e o ultimato inglês centrais a uma caudalosa dinâmica de mudança na sociedade portuguesa que desaguará na implantação da

República; guerras entre Academias ( «Coimbra tem toda a gente a jogar contra Lisboa»; incursões no estranho mundo das combinatórias genéticas, consubstanciadas nas experiências do cientista espanhol Boscá, principal chave das espécies críticas de répteis e anfíbios não só na Península Ibérica como nas Baleares», o homem das adições à fauna responsáveis pelo alargamento da variedade das espécies, a fazer com que a História Natural de natural tenha muito menos do que se pensa.

Alvitram os autores que o enredo de Carbonários é mais um guião para um filme de James Bond do que uma antologia de textos zoológicos, que as motivações que, nesta perspectiva, o justificam - a política, os conflitos armados e as organizações secretas - sugerem prestações de serviço à República, assim como o lendário operacional de Ian Fleming teve, está e estará (pelo menos enquanto a saga continuar a dar dinheiro) ao serviço de sua majestade a rainha de Inglaterra.

Eu diria que sim, que em vários lances do texto James Bond faz as suas piruetas sempre tocadas daquele mágico poder de sobreviver às situações mais complicadas de que só ele tem o segredo, mas diria também que, cenas de pancadaria verbal, de tiros e de bombas à parte, é Georges Simenon, por via do seu alter-ego Maigret, quem parece estar presente a reflectir acerca de pistas às vezes tão contraditórias, a tentar juntar as pontas de conflitos tão distantes, a procurar reorganizar laboriosamente o puzzle dos valores estilhaçados por uma qualquer intensificação de pulsões de distúrbio. Estou agora a falar de ginástica mental inteligente e a não das cambalhotas de Bond, treinado para matar, não para pensar.

O pior é que, sendo a criação de híbridos artificiais uma manifestação de desordem científica tão vasta - condenada pela Igreja, censurada pelos poderes oficiais e perseguida pela nomenclatura universitária convencional - e sendo, por outro lado, Simenon/Maigret .e Bond, embora um inteligente e o outro mau como as cobras, leais defensores da ordem estabelecida, não estão estes últimos à altura de resolver o imbricado caso da Chioglossa, rematando a coisa ao menos com a revelação do paradeiro actual do bicho. As informações que tenho apontam para que a salamandra errará por parte incerta, literalmente a monte, podendo já não apresentar as características de quando foi descrita - «pequena, delgadinha, negra, com duas faixas doiradas nas costas, ovípara e sem pulmões» e ser «ovovípara, estar maior e mais encorpada e apresentar apenas um sulco amarelo a meio do dorso.» A fé é um dos motores anímicos de Maria Estela Guedes e Nuno Marques Peiriço. Cito: «A Chioglossa foi introduzida em vários locais da Península Ibérica, de alguns já desapareceu e em outros temos fé que há-de aparecer ainda.» Não creio que Simenon e James Bond sejam homens de fé. São homens de espírito racionalista e pragmático, pelo que o caso excede nitidamente os seus limites.

Tendo ficado por deslindar que destino levou a salamandra, este livro tem como outro especial atractivo uma espantosa representação do espírito do tempo, fornecendo retratos caracterológicos muitíssimo ricos, ligados às mutações sociais contemporâneas das grandes controvérsias à volta da Chioglossa. Recriam-se tipos humanos contaminados pelas ideias que esfervilhavam no país e que faziam esfervilhar as gentes do país. Reciclam-se as linguagens, por exemplo, dos cientistas, cerzidas de mensagens cifradas relativamente aos seus convénios de actuação profissional e às suas opções cívicas. Exploram-se as contradições da Ciência de maneira a retirar-se delas um efeito de ficcionalidade capaz de se dar a ler como um enredo, aqui em expressão já tangível, mas ainda, de certo modo, embrionária. O caos sobre o qual operam a arte e o engenho de Estela Guedes e Nuno Peiriço leva-os a dizer que «a informação contraditória anula a fronteira entre o real e o imaginário» e que «nós relatámos e analisámos os factos do discurso científico, a ciência é que criou a ficção.»

Poderia imaginar- mais do que imaginar: desejar - que da aparente prolixidade factual emergisse um romance cuja estrutura estivesse ao rés dos apetites do clássico leitor do género. Algo que servisse um projecto narrativo mais conforme ao modelo consagrado de um bom policial ou de uma boa novela de acção. Algo cujo estilo se aproximasse do do trepidante Lagarto do Âmbar ou de que a fluidez narrativa seguisse de perto a economia textual de Crime no Museu de Philosophia Natural. Isto é: um texto, se assim me é permitido dizê-Io, que reficcionasse a ficção que a Ciência propõe, num nível de construção romanesca fomentador das empatias e simpatias que fazem da literatura não só um lugar de aprendizagem da vida como também uma fonte de prazer. Mas isto, se calhar, é estar a ser mais papista que o papa. Isto é talvez pretender influenciar com a minha subjectividade a subjectividade alheia, quando o que porventura os autores quiseram foi contar a história tal qual está em Carbonários, e acabou-se.

Tenho, portanto, para mim, que escritora e químico decidiram dar voz à estória da Ciência remetendo-se discretamente ao seu papel de investigadores e analistas e renunciando à sua própria criatividade ficcional no teatro da operação. Nesta medida, estou com os autores: este imenso trabalho fica a pertencer ao domínio do ensaio, aquela categoria de ensaio aberto de nunca esgotada interpelação do real que embora muitas vezes confinando com a ficção, desta se diferencia por um processo de rigorização discursiva e analítica mais exigente, menos lúdico e menos emotivo do que é intrínseco à arte da efabulação, mas ainda assim provocatório q.b. para nos excitar intelectualmente. Lanço, em todo o caso, um repto aos autores, principalmente à escritora: o de que a massa de informação recolhida e observada com tanta autoridade crítica os inspire e os conduza à realização do romance das ficções da Ciência, roubando a esta a vanglória de se apresentar como único veículo comunicacional daquelas, já que o caminho foi arduamente desbravado e a coisa está mesmo a pedir o golpe de asa a partir do qual se possa dizer com toda a segurança: melhor é impossível.

Felicito vivamente os autores pelo trabalho realizado, o Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade pela protecção que dedica às espécies críticas, como eu, e o professor Galopim de Carvalho pela sua perseverança e para que continue a abrir o seu Museu às mais extraordinárias iniciativas, jurássicas ou não, incluindo alguma tagarelice literária pouco mediática, porque os escritores que não sabem estar em palco também têm direito à vida. Um agradecimento muito especial vai para a Maria Estela Guedes por ter descoberto alguma utilidade em que fosse eu a apresentar Carbonários, Operação Salamandra. Foi para mim um privilégio e uma honra vir a este local emblemático onde a nossa salamandra fez valer a sua natureza, resistindo ao fogo, pelo menos nos papéis que se salvaram do incêndio de há vinte anos e aos quais este livro dá efectivamente uma existência nova.

E, a finalizar, deixo-vos à vontade para accionarem, se acharem conveniente, os mecanismos de ciência extraordinária que conferem poderes ficcionais ao 1º de Abril, conforme combinado.

Lisboa, Museu de História Natural, I de Abril de 1998